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3.2 A proposta menorista: um coração na balança

3.2.3 O juiz de menores

Finalmente, como importante elemento na caracterização do menorismo, tem-se a (auto)imagem construída pelos juízes de menores, que transparece das obras de Alyrio Cavallieri e Liborni Siqueira.

O juiz de menores, segundo tais autores, era o juiz das relações humanas, com atribuição para intervir no coração dos conflitos existentes entre os menores e a sociedade, entre eles e sua família; era um juiz a quem competia ir além dos julgamentos, acompanhar as medidas decretadas e ser uma autoridade real e reconhecida. Para isso, faziam-se necessários atributos particulares: o juiz de menores deveria ter uma situação familiar definida, preferencialmente, com filhos menores de 18 anos de idade; espírito de liderança; bom relacionamento e facilidade de comunicação (CAVALLIERI, 1978, p. 254-255).

O papel do juiz de menores era o de educador, pois, após o cometimento de um ato antissocial, o menor estava submetido a um sistema de tratamento psicopedagógico que objetivava a sua reintegração sociofamiliar (SIQUEIRA, 1992, p. 52).

A amplitude dos poderes dos juízes de menores é passível de demonstração por meio de dois exemplos. O primeiro diz respeito à criação do Serviço de Liberdade Assistida do Juizado de Menores do Rio de Janeiro. Conforme depoimento de Cavallieri a Cláudio Figueiredo (2005, p. 80-81), as décadas de 1960 e 1970 foram a “era da onda da droga e da pornografia [...], do gap entre as gerações, da desobediência, das atitudes agressivas”, quando começaram a surgir casos de “meninos e meninas” e “moços e moças” que não se encontravam em estado de abandono nem tinham cometido crimes, mas

desobedeciam aos pais, que procuravam o juizado de menores para resolver essas situações, muito embora este, legalmente, tivesse competência apenas em relação aos menores abandonados e delinquentes.

As experiências de aconselhamento levaram à criação, sem que houvesse uma lei para isso, de uma seção, no Juizado de Menores do Rio de Janeiro, que foi chamada de Serviço de Liberdade Assistida, funcionando, à época, com um assistente social e um psicólogo, no prédio do próprio juizado. Segundo Cavallieri, o serviço se voltava para o atendimento de casos que não exigiam processo, nem prisão, resolvidos por meio do uso de persuasão: o jovem era informado pelo assistente social que deveria dizer a verdade, “pois o juiz estava ali em cima” 20

.

Os bons resultados obtidos por meio da persuasão foram considerados pelo grupo de juízes que, em 1970, elaborou um projeto de Código de Menores para substituir aquele de 1927 e incluiu no elenco de casos que seriam da competência do juiz “um tipo novo de problema”, o chamado menor com desvio de conduta. “Isso existiu de 1979 até o malfadado ano de 1990, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente eliminou este título, naturalmente com grave prejuízo para a população” (CAVALLIERI, 2005, p. 80-81).

O segundo exemplo é a Portaria 09/90 de 23/02/90, emitida por Liborni Siqueira, à época, ainda exercendo as funções de juiz de menores do Rio de Janeiro, a qual determinava o recolhimento de crianças (indiscriminadamente chamadas de “menores” e “pequeninos” pelo autor) de até seis anos de idade que se encontrassem em estado de abandono e marginalização social.

Nos textos que publicou a respeito no Jornal do Commercio, Siqueira defendia a portaria não só sob o argumento de que se alcançara um nível de “saturação da patologia social”, causada pela “deseducação, desagregação familiar, miséria, fome, degradação moral, droga e

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É interessante trazer, nesse sentido, a posição de Cavallieri acerca da importância dos profissionais de outras áreas das ciências sociais, como Psicologia e o Serviço Social. Para ele, o suporte técnico era imprescindível à decisão, mas não poderia servir de subterfúgio para que o juiz não julgasse. Ainda, acerca do conteúdo dos laudos psicossociais elaboradas sob a égide do sistema menorista, cumpre conferir a obra Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, de Vera Malaguti Batista, a qual, sob outro enfoque, servirá de aporte teórico à discussão do estereótipo de “menor”.

prostituição”, mas também porque o projeto era integrado por fundações e voluntários técnicos, bem como pela Divisão de Segurança e Proteção do Menor e pelo Núcleo Especializado de Atendimento ao Menor da Polícia Militar, todos voltados para a aplicação de técnicas adequadas de proteção dos infantes, com a elaboração de um estudo da família e, em últimos casos, com a internação da criança.

Contudo, o enfoque dos artigos publicados era a indignação de Siqueira diante dos protestos contra a portaria de recolhimento, ocorridos na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a qual sobressaía no tratamento sarcástico que dispensava aos “grupos de interesse” em “defesa” da criança. Atingia seu ápice, porém, ao citar o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, ao proibir o tipo de medida preconizada pela referida portaria, teria garantido às crianças carentes o “direito” de, tal qual “os perambulantes, vadios e sem rumo na vida” (SIQUEIRA, 1992, p. 100), permanecerem na sarjeta, uma vez que somente poderiam ser recolhidas quando em flagrante de ato infracional.

O autor ainda afirmava que o recolhimento das crianças não era atribuição sua enquanto magistrado, mas que o fazia de acordo com os princípios da solidariedade humana e cristã. Mencionava, como caso análogo, a paralisação, pela Polícia, do combate aos menores infratores e asseverava como a “proteção” do Estatuto (as aspas são do autor) levaria a sociedade, em pouco tempo, a exigir a redução da responsabilidade penal do menor.

Em outro texto, sua indignação para com a recém-promulgada Lei nº 8.069/1990, se concretizou em alerta aos pais, novamente evidenciado nas aspas e expressões entre parênteses:

Como dizem os „Estatutistas‟, o Estatuto colocou os Juízes de Menores (fariseus da criança e do adolescente) no seu devido lugar. O Código de Menores (instrumento fascista e produto do regime ditatorial) foi revogado. Surge uma nova era, sem disciplina, sem censuras, sem limites, com o Município atingindo sua maioridade e repleto de recursos. Os pais que se cuidem. Quem viver verá... (SIQUEIRA, 1992, p. 82).

Confirma-se, assim, a descrição da (auto)imagem e dos poderes do juiz de menores já comentados acima.