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5.1 Apresentação do Sistema Nacional de Atendimento

5.1.4 Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo

O Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo constitui previsão da Lei nº 12.594/2012, mas neste trabalho ganha tópico específico para que a abordagem não fique limitada aos dispositivos legais – que preveem, dentre outros, a competência da União, em parceria com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, para elaboração desse documento (art. 3º, II) –, mas possa explorar ainda o teor do próprio Plano, apresentado pela SED/PR no ano de 2013.

De acordo com o arts. 7º e 8º da Lei nº 12.594/2012, o Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo deve apresentar um diagnóstico da situação do Sistema Nacional (SINASE), além de diretrizes, objetivos, metas, prioridades, formas de financiamento e gestão das ações de atendimento socioeducativo, abrangendo as áreas da educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho

e esporte, observando as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente, para um período de 10 anos. E é em conformidade com o Plano Nacional que Estados, Distrito Federal e Municípios devem elaborar seus respectivos planos estaduais, distrital e municipais de atendimento socioeducativo, num período de até um ano a partir da aprovação do Plano Nacional.

Assim, no ano de 2013, com base no diagnóstico situacional do atendimento socioeducativo, nas propostas da IX Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, no Plano Decenal dos Direitos da Criança e do Adolescente e no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH III), o Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo foi apresentado pela SED/PR, definindo expectativas e estratégias, a serem alcançadas a curto, médio e longo prazo51, nos seguintes eixos: gestão, qualificação do atendimento, participação cidadã dos adolescentes e sistemas de justiça e segurança.

Os princípios e diretrizes constantes do Plano Nacional foram extraídos do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Resolução nº 119/2006 do CONANDA e da Lei nº 12.594/2012, todos já discutidos neste capítulo e no precedente. Assim, sob pena de tornar o trabalho enfadonho, destaca-se apenas, dentre os princípios que orientam o Plano Nacional, o reconhecimento da condição de sujeito de direitos do adolescente, a quem deve ser assegurada a proteção integral, assim como a territorialização do atendimento socioeducativo, sua gestão democrática, intersetorialidade e responsabilização dos órgãos que compõem o sistema.

Quanto às diretrizes, tem-se, de um conjunto bem mais amplo, o incentivo ao protagonismo, participação e autonomia dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, assim como de suas famílias; a humanização das unidades de internação “garantindo a incolumidade, integridade física e mental e segurança do/a adolescente e dos profissionais que trabalham no interior das unidades socioeducativas” e a criação de mecanismos que sirvam à prevenção e mediação de conflitos e o estabelecimento de práticas restaurativas – não existindo, aqui, porém, qualquer aprofundamento quanto à natureza ou conteúdo de tais práticas.

O marco situacional geral do sistema socioeducativo brasileiro é o ponto de partida para a elaboração das metas e, na apresentação desse

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O Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo estabelece, para o alcance das metas fixadas, três períodos: o primeiro, de 2014 a 2015; o segundo, de 2016 a 2019; e o terceiro, de 2010 a 2023.

diagnóstico, encontra-se um alerta não só acerca dos direitos e garantias e crianças e adolescentes que não saíram do papel – o sistema socioeducativo ainda não incorporou na prática os avanços legislativos já alcançados –, mas também quanto à dificuldade acentuada que se verifica nesse sentido quando se trata de adolescentes envolvidos com a prática de atos infracionais. Em outros termos, se já é difícil, por exemplo, assegurar os direitos de crianças e adolescentes à saúde e educação52, quando se trata de assegurar os direitos de adolescentes aos quais se imputa a prática de um ato infracional, prevalece no senso comum a percepção de que eles, os “menores”, não são merecedores de direitos e garantias, vide as propostas de rebaixamento da idade penal, tema que não poderia ser mais atual53.

Feito o alerta, o Plano volta-se à apresentação dos dados de realidade, atualizando algumas das informações constantes do marco situacional do documento aprovado pela Resolução nº 119/2006 do CONANDA: dos 20 milhões de adolescentes brasileiros, em 2011, havia quase 20 mil cumprindo medidas de meio fechado e 88 mil cumprindo medidas de meio aberto. Compara-se o aumento da taxa de restrição e privação de liberdade de 2010 para 2011 com o aumento do número de atos infracionais relacionados ao tráfico de drogas para se concluir que “[...] por um lado, que os principais motivos de internação estão diretamente relacionados à vulnerabilidade social a que estão expostos os adolescentes. Por outro, deixam claro que os atos cometidos não são contra vida” (BRASIL, 2013, p. 11), o que parece corresponder assim a um emprego maior da internação-sanção, em desacordo com as previsões legais.

Por sua vez, em relação às medidas socioeducativas de meio aberto, observa-se que, por meio da Resolução nº 109/2009 do Conselho Nacional de Assistência Social, o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade

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Por ocasião do aniversário de 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 2015, a Fundação Abrinq relacionou 25 desafios para o Estatuto, dentre os quais se destaca o acesso à educação infantil. A taxa de cobertura em creches no Brasil, no ano de 2012, era de apenas 22,6%, o que significa que menos de ¼ das crianças de 0 a 3 anos tinham acesso à creche. A esse respeito, conferir: 25 desafios do ECA. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-

HUMANOS/492067-25-DESAFIOS-DO-ECA.html Acesso em: 29 jul. 2015.

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Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade foi tipificado como serviço de responsabilidade do CREAS – Centro de Referência Especializado em Assistência Social. Em 2012, de acordo com o Censo SUAS/CREAS, 72% dos centros de referência ofertavam o serviço de medida socioeducativa de LA e PSC.

Nesse contexto, verifica-se que é fundamental à elaboração das metas de gestão do Plano Nacional a precisa identificação dos problemas do SINASE e, assim, são elencados, a partir de levantamento realizado durante o processo de discussão do Plano, todas as dificuldades dos operadores, sejam elas de caráter geral ou específico, como a execução das medidas de meio aberto ou fechadas.

Destacam-se, entre os problemas de caráter geral, relativos ao sistema de justiça e segurança e a recursos humanos, a “falta de entendimento sobre a situação de exclusão social que condiciona a trajetória do/a adolescente a quem é designada a autoria de um ato infracional”; a “carência na formação e capacitação dos operadores do Direito e da Segurança Pública e dos demais operadores do Sistema de Justiça da Infância e Juventude” e, particularmente, a necessidade específica de capacitação continuada das equipes técnicas e da gestão das unidades de atendimento socioeducativo; a “ausência de Defensoria Pública de atuação expressiva, em todas as unidades federativas”; a “subutilização da remissão ministerial e judicial e de mecanismos de solução de conflitos na esfera extrajudicial”, a “falta de escuta dos adolescentes em todas as etapas do processo” e quadro insuficiente de profissionais – seja nas varas especializadas, promotorias e defensorias, seja nas unidades de atendimento.

Em relação ao atendimento de meio aberto, por sua vez, identificam-se como problemas a “falta de entendimento sobre as diferenças entre as medidas protetivas e as medidas socioeducativas”; a “ausência e/ou insuficiência de políticas de inclusão que sejam atraentes para os adolescentes e para os jovens, e evitem a reincidência” e a “ausência de práticas restaurativas que incluam a comunidade e atendam às necessidades das vítimas (Lei 12.594, art. 35, III)”.

Já quanto ao atendimento socioeducativo de meio fechado, observam-se, dentre outras, as seguintes dificuldades: “violações constantes aos direitos dos adolescentes”; “superlotação nas unidades socioeducativas”; “inadequação de instalações físicas: condições insalubres e ausência de espaços físicos adequados para escolarização, lazer, profissionalização, saúde e outras políticas necessárias”; “baixa efetividade na apuração e responsabilização dos agentes públicos nos casos de violação aos direitos dos adolescentes, ocorridas no interior das

unidades de privação de liberdade” e a “permanência dos adolescentes em unidades distantes do domicílio de seus responsáveis e de sua comunidade”.

Ante tal diagnóstico, as metas estabelecidas pelo Plano Nacional incluem desde o incentivo, pela SED/PR, à construção dos Planos Estaduais Decenais, através de cursos e apoio técnico, e a universalização da oferta dos serviços de medidas socioeducativas em meio aberto, no eixo de gestão do SINASE, até o “reordenamento das varas da Infância e da Juventude, com: a) separação das áreas de proteção e de apuração de atos infracionais/execução de medidas socioeducativas; b) fixação do número de feitos em tramitação para garantir a celeridade da prestação jurisdicional exigida; c) disponibilização dos recursos materiais e humanos compatíveis com as atribuições”, no eixo de fortalecimento dos sistemas de justiça e segurança pública.

Do conjunto de mais de 70 metas, organizadas nos quatro eixos operacionais já mencionados acima, destaca-se, do eixo de qualificação do atendimento socioeducativo, o incentivo e a divulgação de metodologias de atendimento com base em práticas restaurativas, de responsabilidade da SED/PR, e a desativação das unidades de meio fechado impróprias, a ser efetivada pela SED/PR e pelos sistemas socioeducativos dos Estados e Distrito Federal, até o final do primeiro período, assim como a implantação de forma regionalizada de unidades de internação, levando em consideração a densidade demográfica da região, visando à garantia do direito à convivência familiar e comunitária.

Não se apresentam aqui todas as metas do Plano, porque se entende que, para os fins da análise proposta, o diagnóstico dos problemas e dificuldades de implementação do SINASE mostra-se mais importante do que a definição das metas. É na descrição dos problemas que se desvela a preocupação com a formação dos profissionais que operam o sistema a fim de que compreendam o adolescente com quem trabalham não a partir do ato infracional praticado, mas de um contexto mais amplo, que considere os aspectos objetivos de produção da vida por aquele indivíduo – condições familiares, sociais, econômicas. E, nessa preocupação, identifica-se um referencial crítico a guiar também a elaboração do Plano Nacional.

As limitações do emprego de tal referencial, contudo, mostram-se ao longo de todo o texto e se fazem particularmente notórias quando, ao se concluir o diagnóstico do SINASE e antes de se apresentar as metas de cada eixo, com a identificação dos responsáveis pela execução e

respectivos prazos (metas de curto, médio e longo prazo), reafirma-se o objetivo do Plano Nacional nos seguintes termos:

A adolescência é uma fase da vida de grande oportunidade para aprendizagem, socialização e desenvolvimento. Atos infracionais cometidos por adolescentes devem ser entendidos como resultado de circunstâncias que podem ser transformadas e de problemas passíveis de superação, para que exista uma inserção social saudável e de reais oportunidades. Os adolescentes precisam ser protegidos de novas violências, a exemplo do que representaria a convivência com criminosos adultos em prisões superlotadas, além do estigma do encarceramento.

O Plano Nacional do SINASE visa superar todos os fatores aqui mencionados como impeditivos da consolidação do Sistema de Garantia de Direitos dos adolescentes, permitindo que eles reconstruam seu projeto de vida e se reintegrem socialmente (BRASIL, 2013, p. 20, grifo nosso).

Destaca-se o presente excerto porque ele permite visualizar a questão da seleção e estigmatização de adolescentes e o papel do sistema socioeducativo sob outro viés: o referencial teórico crítico que se emprega na elaboração no Plano Nacional e mesmo na Resolução nº 119/2006 do CONANDA mostra-se limitado na medida em que este parece valer apenas para os adolescentes. Em nenhum momento, de acordo com a redação de tais documentos oficiais, os adolescentes submetidos ao sistema socioeducativo são identificados como “infratores”, mas sim como “adolescentes em conflito com a lei” ou “adolescentes autores de ato infracional” e nunca são referidos como “menores”. De fato, percebe-se um cuidado constante para evitar qualquer estigmatização nesse sentido.

Eis, contudo, a afirmação acima, em que se preconiza a não convivência de adolescentes com “criminosos adultos em prisões superlotadas” para evitar novas violências e o estigma do encarceramento. A referência aos “criminosos adultos”, que segue a mesma lógica de termos como “adolescentes infratores” ou “menores”, é, nesse sentido, de caráter claramente estigmatizante.

Trata-se de uma limitação comum a parcela significativa da produção nacional pós-Estatuto da Criança e do Adolescente: quando se identifica um referencial crítico, este parece valer apenas para um determinado contingente populacional, delimitado pela sua faixa etária, isto é, os adolescentes, quando, na verdade, o objeto da Criminologia crítica é primordialmente o sistema de justiça penal de adultos, e a construção de categorias como seletividade e estigmatização ocorreu a partir desse sistema.

Não se pretende, a partir disso, ignorar as peculiaridades dos processos de seleção e estigmatização da população adolescente. Não se olvida que há peculiaridades da etapa de desenvolvimento dos adolescentes que os colocam em circunstâncias distintas daquelas em que se encontram os adultos, mas não a ponto de justificar, coerentemente, que se evite um termo estigmatizante para uma parcela de indivíduos e se utilize termo equivalente para outra.

5.2 As hermenêuticas da socioeducação e o SINASE: quem precisa