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Abordagem técnico-musical do personagem Desdemona

5. Alguns aspectos da ópera Otello, de Gioachino Rossini

5.3. Abordagem técnico-musical do personagem Desdemona

Depois da devida tradução e contextualização das árias escolhidas, achei pertinente inserir este capítulo mais técnico, de forma a perceber a importância de trabalhar simultaneamente o lado técnico e musical, o que permitirá chegar à essência do personagem.

Quando incialmente me foi dado o desafio de trabalhar o personagem Desdemona, já tinha estado anteriormente a estudar o personagem Romeo, penso que por 2 anos. A minha voz, talvez como acontece com muitas outras, em especial em mezzosopranos, demorou algum tempo a encontrar o seu centro, a sua naturalidade e a sua igualdade entre registos. Ressalvo que isto é algo que não

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acontece de um dia para o outro, é um trabalho de uma vida; a voz está em constante evolução e mudança, pois o nosso corpo é diferente todos os dias. Tal como referiu o grande tenor Franco Corelli (2003), “Com o tempo, estabelecerás o teu “sítio” ideal, um bocadinho mais à frente, um bocadinho mais atrás… tens de o encontrar e isso leva tempo. Mas devagar, devagar, irás encontrá-lo.”18 O que quero

tentar aqui explicar é que Romeo e Desdemona pedem dois requisitos bastante diferentes. Quando me foi dado Romeo para estudar, foi com o intuito de desenvolver a minha voz em toda a sua extensão e precisamente tentar encontrar mais densidade vocal. Nenhum dos personagens que aqui refiro será para eu cantar no imediato. Serviram, sim, como ferramenta de trabalho para me ajudar a crescer tecnicamente e, à posteriori, emocionalmente.

Ao começar o meu estudo de Desdemona, deparei-me com algumas diferenças. Enquanto que em Bellini sentia que a linha do bel canto me pedia mais sustentação, mais corpo, quando olhei para a linha de Rossini, principalmente na ária “Che smania? Ahimè!”, ainda antes sequer de a cantar, achei que não seria capaz. Lembro-me de pensar “isto é muito agudo, não chego a estas notas”, pois logo quando começa a ária, como podemos ver na Figura 9, a primeira frase consegue ser bem desafiante: quase um grito de socorro, mas sustentado e sob o legato. São notas curtas que requerem um “corte” diafragmático, algo que nunca deve ser feito na garganta. Este é um problema que acontece, caso não pensemos na técnica. Principalmente quando existe uma palavra entrecortada e com pausa a meio, como em “soc-cor-re” (ver Figura 9, novamente), há que ter o dobro da atenção e não cometer o erro de fechar a garganta com a consoante, sobretudo porque a nota a seguir à pausa é mais aguda e será impossível de a cantar, caso se comece a fechar a articulação.

Para meu espanto, percebi que tudo pareceu bem mais fácil depois de experimentar cantar a ária, sendo que foi também neste momento que cheguei a duas conclusões. Primeira, que muitos de nós, cantores, temos imensos conflitos interiores connosco mesmos e que, se não forem calados, nos impossibilitam de cantar, uma vez que o nosso corpo é o nosso instrumento. Tal como referi anteriormente, ainda nem sequer tinha experimentado cantar e já estava com medo de não conseguir. Em segundo lugar, porque realmente não há nada como experimentar. Aliás, normalmente, se nos sentimos confortáveis a cantar algo e, claro, se já temos uma técnica minimamente sedimentada, é porque estamos no caminho certo e isso é das melhores sensações para um cantor, na minha opinião.

18 Gravação áudio captada numa aula particular dada por Franco Corelli a Pietro Ferretti, aluno seu, em 2003. Tradução feita por mim do inglês para o português. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=230wGBTFEDM.

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Esta ária ajudou-me a desenvolver o meu legato mas, acima de tudo, a minha resistência física. Existem muitos saltos, coloraturas, notas longas na região aguda e tudo isto num registo ofegante e um tanto dramático. O que quero dizer é que (e já o referi anteriormente no capítulo destinado às vozes rossinianas) esta ária, apesar de ter muita coloratura, não pode ser feita da mesma maneira do que, por exemplo, “Una voce poco fa” (Rosina em Rossini). Em Desdemona, é importante encontrar uma cor um pouco mais aveludada e triste, mas sem perder o brilho da voz. E aí é que está a verdadeira dificuldade do repertório mais sério: continuar com o brilho e com a voz “em máscara” que deverá sempre existir, mas dar-lhe o caráter mais dramático e escuro de que o personagem necessita. A ideia de “cantar para dentro” ou “canta para ti” foi algo falado nas aulas de Canto e foi algo também que me ajudou a encontrar um outro tipo de sonoridade. Como as professoras de Canto me explicaram, o ar deverá fazer todo o seu percurso desde que é inspirado até que chegue às cordas vocais e as faça vibrar, produzindo assim um som aperto, ma coperto (consultar também o capítulo 4). Deste modo, o ar deverá girar, passando pela parte de trás da garganta e saindo pela boca, depois de ter atingido o palato mole e duro, que deverão estar sempre altos e em forma de cúpula. E aí deverá permanecer, girando e ressoando nas cavidades nasais e craniais, ficando “em máscara”. Enquanto que, anteriormente, sentia que fazia força nas cordas vocais e tentava de forma inconsciente “fazer o som sair”, ao me ser explicado o mecanismo e tentando procurar um som mais redondo dentro da boca, fez com

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que o mesmo saísse de forma muito mais livre. Aliás, notei ainda que não estava a exercer a pressão correta no diafragma, o que me deixava sem apoio e, consequentemente, toda a pressão era exercida incorrretamente na zona superior do corpo. Nunca, em momento algum, deverá o ar ser empurrado para fora. Pode parecer um tanto controverso mas, citando novamente Franco Corelli (2003), o cantor explicava como devemos pensar no som dentro de nós e não com a ideia de o querer empurrar para fora:

“O som é como uma bola de ping-pong, flutuando num repuxo de água. Então tens de pensar na voz assim, sem empurrar para fora, porque senão, se começares a pressionar muito para a frente, mais tarde ou mais cedo fechas (…) Uma boa observação ao cantar é que o devemos fazer nos dentes, assim como na mente. Parece contraditório, mas a voz precisa de permanecer atrás, mas livre.” (ver nota de rodapé nº 18, pág. 57)

Desdemona, como já descobrimos, é uma mulher apaixonada, crédula, de um carácter muito próprio. A nível vocal, das versões pesquisadas e encontradas por mim, verifiquei que este personagem é normalmente atribuído a um soprano. Pelo menos é encontrada essa designação no início das óperas, quando se determinam quais as personagens e a tessitura onde cada um irá cantar. Verifica-se também que a tessitura que lhe compete abrange uma escala que vai de Si2 até Dó5. Por norma, a extensão de um mezzosoprano vai desde o Lá2 ao Sol4, “podendo prolongar-se em ambas as extremidades do intervalo.” (Bourne, 2008):

“Em termos práticos, os mezzo-sopranos, no topo da sua extensão, podem cantar papéis escritos para, ou geralmente cantados por, sopranos (tais como o compositor, em Ariadne auf Naxos, de Strauss, ou Cherubino, em Le Nozze di Fígaro, de Mozart).” (Bourne, 2008)

Será este um desses casos em que um papel que normalmente terá sido escrito para um soprano lírico de coloratura pode, neste caso, ser cantado por um mezzosoprano ligeiro de coloratura. Uma das razões para este personagem em específico poder ser feito por ambos os tipos de voz é, na minha opinão, a questão da extensão, já abordada acima. Facilmente um mezzosoprano com ligeireza e agilidade vocais consegue cantar com naturalidade na tessitura apresentada em Desdemona. Outra observação parte, do meu ponto de vista, da questão interpretativa. Tal como já foi abordado em capítulos anteriores (ver ponto 2.1. – “Os personagens Desdemona, Romeo e Gertrude à luz de Shakespeare”), Desdemona apresenta características como fragilidade e ingenuidade, sendo para isso necessário “incutir” vocalmente tais características, apresentando uma voz

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doce, com feminilidade e subtileza. É necessário pensar nestas questões, principalmente nas mezzosopranos que fazem muitos papéis travestidos, de forma a que também vocalmente se consigam diferenciar quando são interpretados papéis masculinos e/ou femininos, ressalvando que não é a voz que muda, mas sim o caráter e a expressividade que se imprime. Mas, partindo das minhas conclusões a respeito deste personagem, Desdemona apresenta características mais profundas, não representando por isso o arquétipo da menina pura, inocente e infantilizada. Desdemona simplesmente aceitou o destino que neste caso Otelo lhe quis dar. Aceitou de forma cega o amor, sim, mas com a consciência de que, quando lhe deu a sua palavra, ao ser para sempre sua, o aceitou para o bem e para o mal. Mas, na minha opinião, Desdemona apresenta tais características assumindo a sua posição desde o princípio e cumprindo também o papel que lhe cabia enquanto mulher na sociedade do seu tempo. Tal como referiu a soprano Jessica Pratt, no questionário do capítulo seguinte, “Numa época em que era quase impossível para uma mulher fazer as suas próprias escolhas em relação ao casamento ou a qualquer outro assunto relacionado com o tema, Desdemona poderá ser vista talvez como uma rebelde feminista, no seu começo”.

Também é preciso força de carácter para assim sucumbir à sua própria crença, sucumbir ao amor. Tais características um pouco mais dramáticas, que encontramos ao longo da ópera, talvez com “uma pitada” de loucura, mostram algo mais profundo, um caráter não tão débil e frágil como se pensa. Por tudo isso, o facto de o personagem poder ser interpretado por um mezzosoprano poderá dar essas características não tão óbvias à interpretação e, ao mesmo tempo, manter a frescura e a linha própria do belcanto, com frases melódicas apoiadas no legato absoluto, aspeto este tão importante para qualquer tipo de vocalidade, mas em especial para Desdemona, personagem com uma ascensão social nobre, diferenciação essa muito tida em atenção em tempos passados. Claro que, como em toda a arte, tudo é discutível e para nós, intérpretes que estamos muito dependentes da própria interpretação do encenador e do director da produção, resta-nos apenas ser corpo para este e outros personagens poderem continuar a renascer.

Por este aspeto da vocalidade e pelo facto de realmente ser um personagem com uma linha melódica mais sobre a região média-aguda, há por vezes uma tendência em aligeirar um pouco a voz nas passagens agudas e levá-las um pouco para a voz de cabeça. Algo que me foi muito incutido nas aulas de canto foi pensar na igualdade vocal, que só tenho uma voz e esta deve soar sempre minha, desde a região grave à região aguda; devo pensar na largura e comprimento do meu tubo vocal e que ele é sempre igual, de forma a que o ar passe livremente de uma extremidade da voz à outra. Acima de tudo, é necessário aproximar os registos, sem que haja um buraco entre a zona aguda e a grave, ou seja, pensar que as notas graves sobem e que as agudas descem. Este é um pensamento que ajuda a não deixar cair a colocação nas notas graves e a não subir a laringe nas agudas. Como

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se pode ver na Figura 10, ao fazer o salto de oitava (mi a mi), é preciso ter o pensamento de que o ar deve continuar a caminhar e que a nota mais grave se situa, na realidade, mais próxima do agudo. Caso pense que a seguir vou cantar uma nota grave, a garganta fecha e fica um som apertado. Ou seja, basta pensar que todas as notas dessa frase se situam no “Sol” em [co-sì], e logo todas as notas “Mi” passam a estar bem mais próximas, sem que haja a necessidade de pensá-las num registo grave. Acho ainda necessária uma atenção duplamente redobrada, pois a palavra que se encontra na passagem da oitava (mi a mi), é [per-der]. Ou seja, existirá uma tendência para o fecho da garganta no [e], sendo esta mais uma razão para pensar nessa nota para cima. Mas esta questão da equalização dos registos será algo que abordarei mais à frente, quando falar no personagem Romeo.

Apesar de não ter estudado este personagem na sua totalidade, as grandes dificuldades que encontrei foram principalmente o controlo da energia a ser utilizada, uma vez que a primeira ária é muito mais empenhativa e virtuosa, mas é necessário também imenso controlo para cantar “Assisa appiè d’un salice”. Na realidade, penso que a nível técnico os problemas encontrados nesta ária são os mesmos da primeira. A diferença é que a energia é totalmente diferente. Encontrar o ambiente certo, este “cantar para dentro” falando anteriormente, o pensar nas coloraturas mais internamente, a enorme linha de legato, o suporte físico que a ária exige foram as minhas maiores dificuldades. É necessário um controlo vocal muito difícil, pois o personagem vive dessa energia melancólica, triste e cansada. Mas é preciso cantar pois, apesar dessa energia ser vital, não poderá prejudicar nunca a performance do cantor. Como tal, decidi elaborar dois questionários: um através da opinião de um ator e outra na perspetiva de um cantor. O meu intuito é

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perceber um pouco melhor, qual a principal diferença entre apresentar o mesmo personagem na versão teatro versus ópera.

5.4. Recolha do testemunho de performers nas vertentes: