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Registo, cor vocal e repertório específicos de um mezzosoprano ligeiro

4. Os mecanismos básicos de um cantor – breve explicação

4.1. Registo, cor vocal e repertório específicos de um mezzosoprano ligeiro

São várias as denominações que existem para classificar uma voz. Restringindo- me apenas às vozes femininas, podemos considerar o contralto, o mezzosoprano e o soprano. O tipo de voz que me caracteriza é o mezzosoprano, uma voz intermédia, com um registo central-grave mais sonoro e mais extenso do que o de um soprano, mas também com um registo agudo mais amplo e evidente, em comparação com o contralto. Normalmente, um mezzosoprano abrange uma extensão que vai desde o Sol2 até ao Dó5, mas a tessitura encontra-se normalmente entre o Lá2 e o Fá4, variando consoante o tipo de voz. É importante referir que, ainda dentro de cada um destes tipos de voz, existem sub-tipos. Falo do mezzosoprano ligeiro, do lírico e do dramático. Dentro destes, uma voz também poderá ser classificada como de coloratura.

A classificação de uma voz como mezzosoprano ligeiro poderá ser difícil, levando por vezes à confusão com o soprano dramático de coloratura. Não é uma identificação óbvia, principalmente quando se trata de vozes jovens que a princípio não terão grande dificuldade em alcançar nem o registo grave nem o agudo. Mas a questão fulcral na designação de qualquer tipo de voz é realmente perceber onde é que esta ganha mais brilho. Apesar de a extensão entre um soprano e um mezzosoprano ser praticamente a mesma, será evidente que o primeiro terá de sobressair mais na sua região aguda, apontando para uma linha melódica que estará quase sempre nessa tessitura (ver Figura 5), enquanto que o segundo fará a sua região média-grave sobressair mais, havendo apenas pequenas notas de passagem ou simplesmente excertos que eventualmente pedirão uma ou outra nota mais aguda (ver Figura 6). Normalmente, a coloratura neste tipo de vocalidade está sempre presente, devido à clareza e agilidade típicas de um mezzosoprano ligeiro. Por essa razão, personagens mozartianas e personagens presentes nas óperas de Rossini, pricipalmente de caráter buffo, são aqueles que mais evidenciam a flexibilidade e o brilho deste tipo de voz.

Um mezzosoprano ligeiro demonstra menor intensidade vocal do que um soprano dramático e possui um timbre muito menos metálico do que este último. No entanto, predomina uma cor aveludada, clara, de caráter ágil e virtuoso. A desigualdade entre registos é algo notório e confesso ser essa uma das minhas maiores dificuldades. Comparando com o mezzosoprano lírico - o timbre, por exemplo, do personagem Carmen, de Georges Bizet, considerada a voz típica de mezzosoprano -, este possui uma cor escura e ao mesmo tempo brilhante, com grande aptidão para o legato expressivo e igualdade de registos. No entanto, a agilidade nas coloraturas não é algo tão natural, em comparação com o mezzosoprano ligeiro.

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Figura 5 - Excerto da ária final de Ophélie, da ópera Hamlet, de Ambroise Thomas (desenho melódico mais sobre

a região centro-agudo, insitindo nas notas Ré4, Mi4 e Fá4) (Heugel, s.d.)

Figura 6 - Excerto do dueto entre Romeo e Giulietta, da ópera I Capuleti ed I Montecchi, de Vincenzo Bellini (linha

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Algo também importante, e que sinto que é pouco falado e transmitido aos cantores da minha geração, é a questão do tipo de corpo que possuímos e a sua influência no tipo de voz que cada um apresenta. Como referiu a soprano Sheri Greenawald, “(…) whether you have a Stradivarius or a Suzuki cello, you walk into the same music store and purchase the same string. So, it’s not about the string, it’s about the box”.16 O tipo de corpo que possuímos, se somos mais altos ou mais

baixos, a altura do pescoço, a largura, o formato da cabeça, tudo será fundamental para o tipo de voz que produziremos. Um violino nunca poderá soar a um violoncelo. Mesmo que fosse possível colocar umas cordas de violoncelo no violino, este nunca iria soar igual. Com as vozes passa-se o mesmo. Claro que poderão existir exceções mas, voltando à minha vocalidade de mezzosoprano ligeiro, este tipo de vozes é muito requerido para personagens travestidos, outrora feitos por castrati. Apresentam estas cantoras normalmente corpos esguios e magros, sem muitas curvas, e pescoços consideravelmente altos. O típico “corpo de rapazinho” em nada se assemelha ao porte alto e largo de um soprano dramático, o que logo à partida acabaria com as confusões de classificação vocal. Claro que tudo isto é a regra geral, havendo sempre exceções, não esquecendo que o fator idade é muito importante e que a voz está sempre em constante mudança.

Assim, é fundamental compreender que cada corpo e cada voz nasceram para fazer um determinado repertório, sendo realmente importante respeitar essa mesma natureza. Há que cantar de modo a preservar a nossa voz o máximo de tempo possível, pois “tu vuoi cantare solo per una sera, o per tutta la vita?” (Oliveira Lopes, 2011, p. 87). Certamente que, especialmente numa fase mais académica, é necessário cantar vários géneros, desde ópera ao lied e até à mélodie. Mas, inevitavelmente, a voz começará a caminhar para certo ponto, pedindo o que lhe é natural. Poderá ser uma vocalidade mais propensa a cantar em língua francesa, pode ter a leveza, o ritmo ou o brilho de uma voz italiana, ou até a percussão e introspeção da música germânica. No que toca ao repertório de um mezzosoprano ligeiro, com certeza não poderão ficar de lado personagens como Cherubino, Sextus, Dorabella, das óperas mozartianas; Isabella, Cenerentola, Rosina, das óperas de Rossini; Siebel de Gounod; Urbain da ópera Les Huguenots, entre outros. Tal como já referi, é necessário respeitar o tempo de cada cantor e cantar o repertório adequado à idade. Os personagens que referi acima poderão não ser os mais adequados à minha voz daqui a 10 anos, mas também ainda o poderão ser. E isso não tem problema nenhum. Há apenas que ter essa consciência e ir percebendo o que o corpo e a voz pedem.

Em última instância, quero esclarecer que, realmente, os personagens que defendo neste trabalho, como explorei noutro capítulo, não são aqueles que farei no imediato. Há que ter a noção de que é possível cantar uma ou duas árias de

16 Palestra pela soprano Sheri Greenawald, dada a 14 de maio de 2015, com o título “The Basic Elements of Singing and the Physiology of Opera Singers”, disponível em:

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determinada ópera em forma concerto ou recital, mas é impossível fazer o personagem inteiro na ópera, pois o corpo ainda não está preparado. De qualquer das maneiras, tanto Romeo, como Desdemona e Gertrude são personagens que me ajudaram a nível académico a conquistar a técnica e a vocalidade que hoje tenho. Haverá sempre personagens e obras que servirão apenas como ponte para realmente chegarmos àqueles que verdadeiramente nos servirão. Mas tal faz parte do processo de crescimento e é isso mesmo que pretendo demonstrar.

Assim, e considerando Desdemona, consegui trabalhar imenso a questão da coloratura, tão presente em todo o meu repertório. Como se trata de Rossini, decidi dedicar um breve capítulo às diferenças existentes dentro do repertório rossiniano.

4.2. Aspetos importantes e diferenciadores de um