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O contributo de Ambroise Thomas na ópera francesa oitocentista

3. Breve introdução da história da ópera romântica

3.2. O contributo de Ambroise Thomas na ópera francesa oitocentista

Faço a mesma abordagem que no capítulo 3.1., mas agora a respeito da ópera francesa oitocentista, de forma a enquadrar o mundo em que foi criado Hamlet. Para melhor entendimento da obra em questão e do personagem Gertrude, recolhi também informações no que toca à ópera francesa e ao contributo que o compositor Ambroise Thomas possa ter dado neste período da história.

Será importante informar que existiram neste período três grandes géneros operáticos. Foram eles a opéra comique, semelhante à opera buffa italiana; o drama lyrique, um género mais dramático, normalmente sem crítica social e sem momentos de dança; e a grand opéra, mais parecido com a opera seria italiana. A opéra comique e o drama lyrique tinham em comum o facto de serem maioritariamente géneros mais baratos e acessíveis, com menos produção cénica, com menos artistas em cena e com uma linguagem musical bastante mais simples. A opéra comique, ao contrário da grand opéra, utilizava o diálogo falado, em vez do recitativo. Georges Bizet e Jules Massenet foram compositores que adotaram estes dois estilos.

O género mais romantizado de opéra comique deu origem ao drama lyrique e poder-se-á dizer que é um meio termo entre a opéra comique mais ligeira e a grand opéra, sendo que Mignon de Ambroise Thomas e Fausto de Charles Gounod são dois grandes exemplos deste género. O grande impulsionador da grand opéra francesa foi o compositor Giacomo Meyerbeer (1791-1864) e o libretista Eugène Scribe (1791-1861), que, inspirados pela anterior tragédie lyrique (estilo utilizado na música do século XVIII), implementaram novas características que viriam a contribuir para o desenvolvimento deste novo estilo, com especial relevo nas óperas Robert le Diable (1831) e Les Huguenots (1836).

Com a grand opéra houve um grande investimento ao nível do espetáculo e foram introduzidos mais efeitos de contraste e de surpresa. A ação irá avançar muito mais rapidamente, sendo que o enredo passa a ser explicado com grande detalhe e o nacionalismo, a religião e histórias moralistas e sentimentais passam a ser temas muito desenvolvidos pelos compositores. Devido ao papel central que Paris teve no século XIX, tornando-se quase a capital da Europa, este género

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operático irá internacionalizar-se, permitindo que vários compositores de outras nacionalidades também queiram compor grand opéra, como são exemplo Rossini (Guillaume Tell), Wagner (Tannhauser – versão parisiense) e Verdi (Les vêpres siciliennes e Don Carlo). Este era o género operático ideal para a burguesia pagante, ao contrário dos outros dois estilos acima referidos, que eram algo quase “fast fashion”.

O elemento da dança, sempre muito utilizado na cultura francesa, vai ser também introduzido neste novo estilo (podemos verificar isso na ópera em questão, Hamlet, do compositor Ambroise Thomas: no IV acto, foi composto um pequeno intermezzo com danças variadas, que muitas vezes é eliminado das produções que se fazem hoje em dia).

Será difícil comparar a importância que Gioachino Rossini ou Vincenzo Bellini tiveram para a ópera italiana com a que Ambroise Thomas (1811-1896) assumiu na francesa. Apesar disso, o compositor em questão ficou especialmente conhecido pela sua ópera Mignon (1866) e Hamlet teve quase um sucesso idêntico. Segundo Mário de Sampayo Ribeiro, “têm-se notado as afinidades existentes entre a música de Ambrósio Thomas e a de Carlos Gounod, mas será em vão que buscaremos nas partituras de Thomas as páginas de intensidade dramática pungente, que possam chegar às culminâncias de certas situações” (Ribeiro, 1950), sendo difícil ao compositor “libertar-se de todo o convencionalismo e amaneiramento de que

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enfermava a música francesa sob o influxo de Meyerbeer” (Ribeiro, 1950). No entanto, a música de Thomas está cheia de rara delicadeza e de requinte harmónico, próprios da música francesa. Mas também encontramos inspirações da música italiana napolitana, pela qual Thomas terá evidentemente sido influenciado, aquando da sua estadia em cidades italianas, de 1832 a 1836.

3.2.1. O estilo, a sonoridade e a fonética adequados a um cantor francês na época oitocentista

Ao falar tecnicamente de como deverá ser o estilo da música francesa na ópera oitocentista, verificamos que, tal como referi no capítulo anterior, a grand opera estaria a ser o estilo predominante. A leveza, doçura e delicadeza fazem da música francesa, na minha opinião, o género operático mais semelhante ao ballet. Quando se trata de cenas mais tristes e dramáticas como, por exemplo, na “Mad scene” de Ofélia, em Hamlet, uma ária que mostra a completa loucura do personagem, podemos escutar a densidade da música de Thomas, mas ao mesmo tempo o contraste entre os diferentes ritmos e uma melodia doce e melancólica, que difere da fugacidade e energia presentes, por exemplo, na música rossiniana. A música francesa é apaixonante e facilmente nos transporta para o ideal de “conto de fadas”. No entanto, para se encontrar esse ambiente tão especial, tão único e realmente fazer entender-se o texto, é necessária uma articulação precisa, sem, consequentemente, fechar a garganta ou anasalando demasiado o francês, o que torna a tarefa do cantor mais difícil. Como foi dito pela mezzosoprano Joyce DiDonato em entrevista, “french is the trickiest language to sing in. You can be correct and absolutely wrong at the same time”12. Todas as vogais e toda a sintaxe

podem estar corretas, mas a maneira como tudo flui pode estar errada. A nasalidade no francês é muito particular e, se não estiver realmente posicionada no local certo, a voz poderá adquirir uma cor demasiado escura ou demasiado estridente, perdendo o equilíbrio vocal e até a clareza das próprias palavras.

Para tentar entender como cantar em francês, será importante conhecer alguma da fonética base da língua. Sendo uma língua latina, tal como o italiano, também se encontram semelhanças com o português em alguns vocábulos. Das 26 letras que perfazem o alfabeto francês, o que mais difere para a língua portuguesa serão os sons nasais. Existem, então, as seguintes vogais orais: [a] – anterior e aberta, como em “má”; [a] – posterior e aberta, como em “ato”; [e] – anterior e aberta, como em “pé”; [e] – anterior e fechada, como em “medo”; [e] – anterior e muda, como em “sede”; [i] – anterior e fechada; [o] – posterior e normalmente aberta, como em “nó”; [o] – posterior e fechada, como em “nome”; [u] – não tem correspondência para o português, mas lê-se como se existisse um trema (ü) por cima da vogal- pronuncia-se com os lábios bem fechados e é mais alto dentro da boca do que o [u] normal, que em francês aparece com a fusão de [o] + [u]. De seguida, temos os ditongos, que podem ser orais ou nasais. Muito sucintamente, os orais podem ser: [ai], que se poderá ler maioritariamente como um [e]; [au], que se

12 Entrevista feita por F. Paul Driscoll à mezzo-soprano no ano de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1o6PKxDSedI&index=62&list=PLLHBweSEZPxIJASe03xY0qnahGDxHUb 3U&t=17s

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lê como um [o]; [ei], som [e]; [eu], que tem o som [oe], mas que não apresenta correspondência para o português; [oi], que se lê como [w] +[a]. Como ditongos nasais, reparemos que em -in, -im, -ain, -aim, -ein, -eim, -ien, lê-se sempre como em “matin”, mas um pouco mais prolongado, e que em -on ou -om se poderá ler como em “chanson”, mas com um som um pouco mais aberto. Temos depois os ditongos -un e -um, que não têm correspondente em português, mas podemos dar como exemplo francês a palavra “perfum”. Nota para o som [ã], que se encontra imenso em palavras terminadas em -ent e que, quando pertencentes à 3ª pessoa do plural, apresentam uma terminação que não se lê.

As consoantes no francês são semelhantes ao português mas, ao contrário, por exemplo, do alemão, em que todas elas são bem marcadas e cantadas, no francês são muitas vezes omitidas, como é o caso da palavra “plomp”, em que o [p] final é mudo; em imensas palavras terminadas em -ment, como em “enchantement”, também não se ouve o [t] final.

Ao cantar o francês, é necessário considerar a chamada liaison13, normalmente quando uma palavra termina em consoante e a seguinte começa por vogal. Para não existir corte da frase ou do fluxo do texto, ligam-se essas palavras, como, por exemplo, em “passer comme ͜ un ͜ éclair”, expressão que se lê com as respetivas ligações, sem existir corte algum na frase musical.

Ainda a respeito da sonoridade dentro da música francesa, há também que ter em atenção os efeitos vocais ou alguns portamentos, mais usados, por exemplo, na ópera italiana. Na música francesa o ataque das notas deverá ser direto, sem grandes artifícios, sem “voltinhas”. As coloraturas deverão ser também mais sobre o legato, mantendo a sua leveza, mas sem ser tão destacada, como, por exemplo, na coloratura rossiniana. Deveremos ter em atenção que os franceses sempre foram mais “sensíveis”, por assim dizer. Por exemplo, o final trágico de Hamlet da tragédia shakespeariana, onde este, juntamente com Claudius e Gertrude, é morto, foi alterado, de modo a não ferir suscetibilidades do público francês. Deste modo, enquanto que a música italiana, por exemplo, pretendia mostrar o verdadeiro, principalmente com o Verismo, considero que a música francesa é talvez mais contida- mesmo na loucura há um controlo, a busca de uma perfeição que está sempre adjacente.

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4. Os mecanismos básicos de um cantor – breve