• Nenhum resultado encontrado

Abordagens conceituais e políticas do Catatau

Consideramos até agora em grande medida a parte da crítica que aborda o Catatau em sua imanência material; mas também devemos ressaltar, junto com a direção apontada em nosso trabalho, as indicações teóricas de que o texto do livro possui uma relevante dimensão política, como modo de diálogo representacional e singularmente mimético com as tensões de seu tempo. São artigos ou ensaios que consideram ou sugerem os temas do Catatau e as nuanças metafóricas presentes na fragmentariedade da obra como elementos fundamentais e norteadores do projeto estético, conseguindo articular os procedimentos icônicos e materiais internos com os temas que fazem referência objetiva à realidade histórica ou conceitual. Da exploração deste viés, cremos, ressalta um livro em suas dimensões políticas, pois entrevemos no experimentalismo literário e na discussão sobre a racionalidade uma obra que coloca em movimento o projeto “político” das vanguardas, instaurando-se no interior da problemática da técnica, esta tomada como elemento fundamental da pesquisa estética.

Em Catatau: um gabinete de raridades Maurício Mendonça (2007) ressalta, na direção de nossa hipótese, que “o poeta forneceu algumas informações que "pegaram" e ainda hoje permanecem como as únicas pistas de leitura e interpretação do romance-idéia; isto porque sua leitura coloca em questão a dimensão histórico-filosófica do texto, pois seria preciso “levar em conta o Catatau "obradobra": uma intrincada tessitura de sentidos que entrelaça História, Filosofia, Ciência e Literatura, discutindo as imagens do pensamento dos séculos XIV, XV, e XVII de modo elegante e sofisticado” (2007). O que ainda se pode compreender é que em direção ao real há um processo de alegorização que aproxima o tempo histórico da narrativa, o Séc. XVII, do tempo histórico vivido durante a escrita do livro, os anos 60/70 do Séc. XX., bem como há uma comparação da dura razão cartesiana - no pensamento de Cartesius -, com a razão ocidental repressiva do regime de exclusão. Notamos essa aproximação, por exemplo, no uso da palavra de origem latina que se refere ao Brasil, que é Brasília, já que para o passado histórico da língua latina Brasil é Brasília, mas para o

tempo histórico da composição Brasília é a capital do Brasil, uma ambigüidade explorada politicamente a partir do léxico.

Em Descartes maconheiro?, Carlão Kaspchak comenta a conferência proferida por José Miguel Wisnik durante um evento em homenagem a Leminski, o Perhappiness'99. No artigo, os autores concordam que Catatau é um tipo de ficção que se refere ao real de forma estilizada e contundente, abordando a realidade política brasileira não só no período da composição do livro, mas sim realiza toda uma interpretação da história do país a partir de uma novidade estética:

Catatau traz questões fundamentais e antecipa, de forma original, uma interpretação da realidade brasileira a partir do mote central do texto: a hipótese de Descartes (filósofo francês René Descartes) ter vindo ao Brasil com Maurício de Nassau (militar holandês que ocupou o Nordeste no século XVII). Esta intuição do Leminski tem conseqüências filosófico-literárias que o colocam entre os grandes intérpretes do Brasil, como Machado de Assis, Mário e Oswald e Andrade e Guimarães Rosa (KASPCHAK, 2007)

Ainda afirma que:

Não me interessa o folclore. O que eu fiz foi uma análise do texto e me ficou uma impressão muito forte de que se trata de uma obra que coloca questões importantes e que, por isso, deve ser lida com atenção", explica. Para ele, Leminski faz um jogo com Catatau e, ao deslocar Descartes (nomeado Renatus Cartesius no texto) para fora do eixo e colocá-lo no Brasil, ele interpreta o Brasil à luz desse deslocamento. (KASPCHAK, 2007)

Este deslocamento, portanto, seria do discurso em relação à história, ou ainda um deslocamento da história a partir da fragmentação do discurso.

Uma outra sugestão de análise política está em Catatau: o estandarte da insubordinação. Trata-se de um artigo no qual Paulo de Toledo (2007b), a partir do conceito de carnavalização de Bakhtin fala de uma atualidade ideológica do livro, pois lê uma sátira

histórica presente nos planos temporais do Brasil holandês do Recife, no Séc. XVII, e o Brasil da ditadura militar do presente histórico do escritor. Fala ainda de um “posicionamento crítico” carregado de “humor carnavalesco” sobre a histórica a partir de um procedimento cômico-sério da escrita. Assim, defende o autor:

Voltando ao plano temporal relativo ao presente do escritor, acreditamos que o contexto histórico, ou seja, o Brasil da ditadura militar, está retratado com uma originalidade jamais alcançada por nenhum outro escritor brasileiro. Esta originalidade deve-se à forma “cômico-séria”, carnavalizada, com que Leminski aborda a questão do domínio militar. Diferentemente da maioria dos romances políticos que tiveram como tema o Brasil da ditadura, mas tratavam esse tema dogmaticamente, apresentando apenas uma visão politizada e ideologicamente sectária do fenômeno, o Catatau, através do riso destronador (provindo da força criativa das ruas), realiza, em nossa opinião, o mesmo feito de Rabelais, ou seja, registra o que há de caduco, de vetusto na hierarquia vigente. Estas palavras de Bakhtin a respeito de Rabelais podem ilustrar bem nossa idéia sobre como a obra leminskiana retrata o período da repressão militar. (TOLEDO, 2007b)

Para o autor, Catatau é um “instrumento pedagógico com funções libertadoras”. A partir dessa afirmação, indaga a crítica sobre a ausência da leitura política do livro, sugerindo ainda alguns motivos para o desvio das análises:

[...] por que essa obra leminskiana ainda é tão mal aceita nos meios literários oficiais e, principalmente, por que os estudiosos do chamado “romance político” brasileiro deixam essa obra à margem, quando ela, mais do que qualquer outra, mostra-se como a mais subversiva prosa que já teve como tema a ditadura militar iniciada em 1964? Provavelmente, a resposta à última pergunta seja: no Catatau, os temas (e o tema da “Ditadura”, no Catatau, é apenas um entre muitos) são escamoteados por grossas camadas de linguagem inventiva, o que acaba exigindo um esforço de escafandrista ou de mineiro para que sejam alcançados os tesouros ocultos, as preciosas pérolas irregulares lapidadas pelo gênio leminskiano. (TOLEDO, 2007b)

É o que entreabre, inusitadamente, por exemplo, a leitura que Haroldo de Campos faz da obra, no mesmo artigo já citado anteriormente, que filia o poeta a uma linhagem formal. Trata-se de uma leitura sugerida nas entrelinhas, tanto por Leminski quanto pela crítica, indo de encontro às visões que compreendem o Catatau somente como uma obra de filiação concretista. Mesmo reconhecendo, com justiça, a dimensão formal dos procedimentos da obra e as ligações estruturais e históricas com outros textos literários, Haroldo de Campos lê uma possibilidade de geração fabuladora e referencial do texto:

[...] trata-se, fundamentalmente, de um projeto de prosa. Um projeto ambicioso, levado minuciosamente à consecução, no qual a poesia (para falar como W. Benjamim) é apenas o método (não-cartesiano) da prosa. Uma prosa que pende mais para o significante do que para o significado, mas que regurgita de vontade fabuladora, de apetência épica, de estratagemas retóricos de dilação narrativa. A poesia, ao contrário, ainda quando se sirva da prosa como “excipiente”, parece dar-se melhor com a imagem, com a visão, com o epifânico. É uma distinção tendencial, ressalve-se, não categórica. As fronteiras são móveis, podendo tornar-se mais e mais rarefeitas. (CAMPOS, 1992, p.218)

Nota-se a cautela do autor sobre ênfase na leitura formal (justamente Haroldo de Campos, o “concretista”), admitindo e matizando as linhas entre um interno autocitativo e um externo fabulador e épico do texto, exatamente, esta última alternativa de análise o que ora nos interessa, o que não quer dizer que a filiação textual não passe por autores marcadamente atentos à elaboração metalingüística, mas, pelo contrário, não se esgota num universo de referências que abstraem a realidade histórica no Catatau.

Portanto, a leitura política da obra, bem como o reconhecimento de suas indicações referenciais, nos projeta um campo em que a linguagem de vanguarda concebe o texto como um instrumento autônomo, porém também nos possibilita reconhecer as marcas históricas dissimuladas pelo projeto estético dentro de sua especificidade textual.

Evidentemente as influências dos textos tidos como ícones do formalismo são notórias, os procedimentos de linguagem contidos num Ulisses ou em Finnegans Wake de Joyce certamente são referências obrigatórias para o poeta. A lição de Pound de que “os artistas são antenas da raça” (POUND, 1976, p.77) e a criação do poeta e crítico literário norte-americano de uma hierarquia entre os escritores (entre inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lançadores de moda) certamente fez parte da formação intelectual do poeta, e se desdobram em suas opções estéticas e programáticas. Além disso, a divisão que Pound propôs da escrita poética, em melopéia, fanopéia e logopéia, pode ser notada na ênfase que Leminski dá à dança do intelecto entre a materialidade do signo, que nascia ali no Catatau e que iria percorrer toda a obra do poeta. O contato pessoal e a coincidência de princípios analíticos entre os irmãos Campos e Décio Pignatari muito provavelmente induziram as análises do livro a ressaltar o grau de parentesco entre a obra de Leminski e o concretismo. Mas as análises não param por aí. O deslocamento da interpretação do livro de seu espaço crítico-formalista, somadas às sugestões de parte da crítica de que o Catatau teria um relacionamento estreito com as tensões estético-políticas de seu presente – como veremos adiante – nos deixa observar que o livro não pode ser circunscrito num movimento poético definido.

Podemos notar que há, assim, em grande escala, pela associação realizada entre Catatau e obras de cunho formal latente, uma leitura prévia que submete o texto a um roteiro prévio de leitura. A etiqueta que classifica a obra, portanto, vem de uma redução que de antemão, para ser composta, necessita da eliminação justamente da singularidade presente na obra e que a distancia da pertença a uma estética, movimento literário ou cultural únicos.

Particularmente interessante, neste aspecto de deslocamento de obras consideradas “formais” para outros campos de análise, é a abordagem que Dirce Waltrick do Amarante realiza da prosa de Joyce, que afirma que nas últimas décadas um número

significativo de estudos propôs-se a fazer uma leitura política de sua obra, apresentando alguns elementos interessantes para análise:

[...] Primeiro, a recusa de Joyce em se mostrar até mesmo minimamente envolvido nas grandes questões européias dos anos 1930 foi determinante para provar a teoria de que os textos joycianos, assim como o autor deles, eram apolíticos. A segunda maior razão para essa omissão pode ser atribuída à acusação, levantada pela esquerda nos anos 1930, e que recaía igualmente sobre Franz Kafka, de que sua arte era decadente [...] A posição política de Joyce é, todavia, visível tanto na sua ficção quanto nos ensaios críticos que escreveu [...] Na opinião do estudioso inglês Seamus Deane, aliás, “na Irlanda, ser um escritor era, num sentido muito específico, um problema lingüístico. Mas era também um problema político”. Levar em conta, portanto, uma questão regional, a “questão irlandesa”, que é essencialmente política, parece hoje muito relevante para se “entender” esse “novo” Joyce, um Joyce, digamos, pós-colonialista, por oposição ao Joyce formalista, construída pela crítica do passado. (AMARANTE, 2005, não paginado)

O que se passa no Catatau, com efeito, é que os elementos metafóricos, alegóricos e políticos, marcadamente instaurados por tensões antitéticas, figurando constantemente conflitos, são postos em ação de forma fragmentária e por intermédio de um hibridismo de registros e níveis de fala, dificultando a compreensão semântica e de certa forma impedindo uma leitura mais política e menos lingüística da obra. Os matizes deste percurso, neste sentido, formam parte da pesquisa e se dirigem a ressaltar a dimensão política (e não engajada), se assim poderíamos dizer, da constituição do sujeito no livro.

Esta ausência da leitura política talvez se justifique por uma gama muita ampla de motivos. Impossibilitado de esgotá-los, apenas indicamos dois: primeiro, pelo que foi dito até agora, pela influência de uma tradição de leitura que circunscreve a obra num espaço pré- definido de análise que inclui as posições críticas do próprio Leminski, posições estas que tiveram conseqüências fundamentais para a construção da recepção de Catatau no Brasil. Segundo, pela própria linguagem do livro, fragmentada, e que num primeiro contato do leitor com a obra costuma desencadear uma aproximação muito forte com textos como Ulisses ou

Galáxias e suas respectivas recepções críticas. Sabemos, entretanto, que a pressão repressiva, certamente marcante quanto às escolhas da escrita de Leminski, fez proliferar ora textos ideologicamente explícitos e panfletários (embora em muitos momentos clandestinos ou sorrateiros), absolutamente sem dificuldade comunicativa para o grande público, ora textos que apostavam numa comunicação mais restrita, na codificação e decodificação de expressões ambíguas, e que faziam, ao mesmo tempo, auto-referências e referências ao real.

Tanto no programa do concretismo quanto no programa da esquerda da época, Leminski terá uma relação íntima de aproximação e discórdia, que se verifica nos traços de linguagem de Catatau.

A exploração da ambigüidade do texto e a compreensão do relacionamento da obra com outros projetos além do concretismo não só favorecem a leitura de uma semântica submersa, como também possibilita ler a obra em seu relacionamento com outros projetos culturais e literários existentes nos anos sessenta e setenta, como a contracultura e o tropicalismo.

Neste sentido, notamos que o livro, passando pela temática da crítica da razão ocidental, dialoga com as reivindicações da contracultura, pois, como o movimento cultural, há um sentido de liberação das repressões, como também presente uma crítica aos valores morais e culturais. Através de seu solilóquio, Cartesius enfrenta o autoritarismo a partir do discurso de sua intimidade, com arroubos existenciais e reivindicações libertárias que colocam a experiência subjetiva em tensão com a ordem a sua volta.

Se na escrita observamos presente o concretismo, no uso de procedimentos retóricos e em suas defesas acaloradas do valor do formalismo, também notamos que ocorre a negação deste mesmo concretismo quando aposta não só na corrosão do erudito, mas também nos registros populares, nos arroubos histérico-contraculturais da subjetividade e na verborragia que não economiza digressões conceituais sem compromisso com a unidade

poética do objeto. Atento criticamente aos projetos revelados nas cartas de Leminski (a Bonvicino) e a real produção textual do poeta e analisando o distanciamento de Leminski do projeto concretista, já desde o Catatau, Marcelo Sandmann defende que:

[...] o Catatau é um divisor de águas dentro da sua produção. Antes dele, o poeta estava em plena sintonia com o movimento, aceitava sem restrição o rótulo de “concretista”. Depois dele (e com ele) [O Catatau], novos ingredientes e preocupações vão surgir de modo mais evidente, deslocados já em relação às posições mais ortodoxas do movimento [...] (SANDMANN, 1999, p.127)

Para Sandmann, o principal fator de distanciamento de Leminski em relação ao concretismo seria sua ligação com a contracultura; embora possamos considerar que da forma como ocorreram, simultânea e fragmentariamente, contracultura e tropicalismo se informavam sem que as contradições aparentes entre estes dois eventos pudessem considerar cada um deles em separado nas influências do poeta. O rigor objetivista do concretismo cede espaço ao subjetivismo expressivo da contracultura, que o poeta denomina “desregramento cultural”, e que aqui sublinhamos quanto ao valor implícito do desregramento, que é a quebra das regras, algo muito próximo do espírito libertário da juventude dos anos sessenta e setenta. Em certo momento pela voz de Cartesius, podemos ouvir que: “a cabeça se perde em lemniscatas instantâneas” (2004, p.78), isto é, em cascatas de palavras que são textualidades compostas não a partir do rigor e das regras concretistas, mas no jorro de seu desregramento textual. Assim, Sandmann afirma que:

Leminski vai agregar à sua experiência concretista um outro tipo de experiência com a linguagem, oriunda certamente de outras fontes de referência e de uma outra relação pessoal com o mundo [...] O poeta curitibano, em sintonia com outros jovens autores, está reagindo contra o controle racional excessivo, o construtivismo, o anti- subjetivismo, o decoro intelectual e erudito, entrevisto como elementos capitais da atitude concretista [...] A contracultura é certamente um dos elementos que mais fortemente vai distinguir sua

trajetória da dos poetas experimentalistas da geração anterior [...] (SANDMANN, 1999, pp.127-8)

Já a porção tropicalista da obra aparece quando o livro discute, como um dos elementos centrais da narrativa, a própria questão da tropicalidade, da brasilidade e do relacionamento entre o nacional e o estrangeiro (razão ocidental x desvario tropical); Em certo sentido, neste aspecto, no Catatau temos uma figuração (devoração) do eruditismo livresco convivendo com os provérbios populares; mas toda a maquinação do texto, seu resultado final, seu relacionamento difícil com a prática usual de leitura, não pode ser considerado de alta comunicação social (como no uso da poesia da canção6 e de elementos pop pelos tropicalistas Gil, Caetano ou Tom Zé), o que se passava, por outro lado, com as canções tropicalistas, que a despeito de se construírem como experiências estéticas inovadoras alcançavam forte projeção nas rádios e TVs. Mais próximo do Catatau, considerando os primeiros expoentes do movimento, estaria os Mutantes7 que ora apostavam no experimentalismo hermético e repleto de virtuoses instrumentais, ora faziam releituras paródicas que não só realizavam a crítica, mas prolongavam a ação do texto parodiado.

6 Essa aproximação com a poesia da canção seria justamente um dos pressupostos da obra de Leminski

posterior ao Catatau; nela o poeta vai aliar ao rigor e o plano do poema a uma coloquialidade “descolada”, embora pensada em seus pormenores como projeto estético. Na trajetória do poeta, representa uma guinada comunicativa e uma aproximação com os meios de comunicação de massa, sem deixar de lado, entretanto, a estruturação do poema considerando seus aspectos plásticos e materiais.

7 Na capa do disco Tropicália, de Caetano Veloso, vemos os Mutantes integrando a proposta de um

tropicalismo canibal que misturava samba com guitarra elétrica, submetendo o rock americano e europeu às paródias e pastiches psicodélicos.

CAPÍTULO 2