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1.1. As concepções poéticas e teóricas de Leminsk

1.1.3. O poeta-crítico:

As concepções literárias do crítico Leminski encontram ressonância no discurso metalingüístico presente no Catatau. Ali, um poeta-crítico fala através de Cartesius, e se confirmam as regras descritivas que nortearam o discurso do autor e de boa parte da crítica do livro.

Diríamos que a interpretação dada à obra pelo próprio escritor - marcadamente depois da publicação do livro e no decorrer de sua atuação como escritor – “pegou”, ou seja, estabeleceu um centro de atração para a fortuna crítica, exatamente porque é uma interpretação formada por conceitos que encontram ressonância na instância metalingüística do Catatau.

Em muitos momentos do livro, assim, dispersos entre as variadas direções do texto, aparecem referências à própria escrita e ao livro, permeadas por indicações de gratuidade, que caracterizariam os livres jogos de linguagem. Seria uma negação do referencial criada pelo grau de abstração da linguagem, uma abstração que investe na radicalidade contínua da desmontagem. Parece-nos, entretanto, que o discurso em defesa da autonomia da arte é mais um recurso retórico de sua crítica do que algo que o poeta realmente pôs em prática.

Seria preciso entender a constituição deste discurso do poeta a partir de seu relacionamento com práticas e teorias poéticas e filosóficas, presente em sua experiência de escrita. Na sua experiência com o hai-kai, por exemplo, e na sua proximidade crítica com a poesia de Bashô, o poeta chega a conceber o significado poético como uma unidade perdida

da linguagem, lugar do mistério e da unidade abstrata, gerada pela sensação de apagamento do sentido mediante o lapso racional das palavras. Se na concepção oriental o conceito é rebaixado em função de uma sensação, uma imagem ou de uma “vivência”, na prática da metalinguagem o sentido se volta para seus códigos e passa a ser a estratégia de criação do poético. Este ato que une certa tradição oriental da filosofia é relacionado por Leminski ao ponto central de sua visão de vanguarda, ou seja, o apagamento do conceito por intermédio da centralização do sentido na própria linguagem.

A auto-referência no Catatau se dá através do solilóquio de Cartesius, em variados momentos em que a personagem alude à sua condição confusa e ao mesmo tempo enredada pela linguagem tropical, como se dos jardins de Nassau uma porta se abrisse para a realidade do texto, um verdadeiro “labirinto de enganos deleitáveis (2004, p.14). Os procedimentos do texto, neste sentido, são comparados à dinâmica febril das falas tropicais: “conforme as incertezas da fala destas plagas onde podres as palavras perdem sons, caindo em pedaços pelas bocas dos bugres, fala que fermenta” (2004, p.17). O sentido do texto é suspenso, ainda que pareça evidente, e tratado como um fluxo, uma permanente pergunta: “cumpra-se o óbvio. O evidente previdente escondeu-se do vidente, a música, por um acinte do acaso, por um acidente esquisito ocasionou esta sinopse. Originou esta delonga, refletiu este fluxo, repercurtiu na pergunta” (2004, p.25). Cartesius sugere ao leitor o processo de composição da obra, na indicação de que as características do texto passam pelo provisório, a incompletude e o experimental, como no trecho: “importa o desempenho, desespero também é bom, mas dentro do desempenho.” (2004, p.65). Em alguns momentos, ainda, o discurso da personagem passa a abordar mais explicitamente o texto e sua construção, dando a impressão ao leitor de que Cartesius fala um discurso deslocado, até mesmo inverossímil, se imaginarmos o que estaria fazendo uma teoria poética na voz de Cartesius, perdido nos jardins de Nassau no séc.

XVII: “Só para quem não sabe, arte representa; para quem sabe a arte é distração, lei livre, aleata [...] (2004, p.79).

Assim diz o poeta em Quinze pontos nos iis: “O Catatau é, ao mesmo tempo, o texto mais informativo e, por isso mesmo, o texto de maior redundância. 0 = 0. Tese de base da Teoria da Informação. A informação máxima coincide com a redundância máxima” (LEMINSKI, 2004, p. 274); comparativamente, “dentro” do Catatau é desta forma que o sujeito textual se manifesta: “Meu pensamento-de-choque bate nessa pedra – o eco é equação, mesmice e repeteco” (2004, p.46); ou ainda: “Desenvolve-se contradição nos seio do equilíbrio, o invariável torna-se viável: diálogo” (2004, p.56).

A crítica poética e a poesia crítica em certos momentos se confundem, dando a impressão de uma continuidade do discurso do escritor dentro e fora da obra. Assim temos em Quinze pontos nos iis: “Dentro do Catatau, o leitor perde a mania de procurar coisas claras. Então, aquelas que são claras por si mesmas tornam-se escuras no seu entendimento” (2004, p. 273); idéia muito próxima da que traz o texto do livro: “Quero ser claro com eclipse e tudo!” (2004, p.73).

Noutros tantos momentos poeta e personagem dizem que o texto não diz “nada”, que o desempenho lingüístico envolto em si mesmo tem como referencial apenas sua própria realidade, como se no texto tudo entrasse em suspensão por um lapso, um intervalo de sentido:

Como está patente, não se pode mais confiar nem neste subproduto das ausências (2004, p.46)

Nenhum nem outro são aqueles acolá, - parecendo acolá, - parecendo iguais: é vosso engano, lapsus linguae, colapsus lineae (2004, p.67) Nada dá na mesma. (2004, p.70)

A partir do exposto, temos então a confluência entre o discurso crítico do poeta e o campo metalingüístico do livro. Aliada aos metapoemas, publicados posteriormente à obra, esta confluência seria transformada no discurso tomado como referência crítica à obra de Leminski e ao Catatau.

Sem propor resolver por completo o sentido do texto, entretanto, já que este possui um índice de indeterminação próprio de sua composição, notamos que este “nada” de que o poeta e o sujeito textual falam, não significa uma falta de conteúdo, em sim um nada representativo da idéia de que não há necessariamente um ponto de chegada para o poético, isto é, não há um programa poético pré-definido a ser cumprido, e de que a poesia está aberta no processo contínuo de indagação que tem sua meta - a “resposta das perguntas” – no próprio ato de composição, e não num resultado final. Neste sentido, lendo a parte das indicações do poeta não exploradas, no mesmo Quinze pontos no iis o poeta indica que “a legibilidade no Catatau está distribuída de maneira irregular” (2004, p. 276), ou seja, há constituição de uma semântica plausível, ainda que fragmentada.

Apesar da característica combativa e em muitos momentos incisiva e quase intolerante da atuação crítica de Leminski, podemos ver nos registros epistolares um poeta bem mais frágil ou titubeante em seus conceitos. O livro Envie meu Dicionário – Cartas e alguma crítica (BONVICINO; LEMINSKI, 1999) registra a correspondência entre Paulo Leminski e o poeta paulista Régis Bonvicino – talvez o interlocutor mais próximo de Leminski para as discussões críticas –, e contém um valioso material para análise das tensões conceituais vividas pelo poeta nos anos de escrita do Catatau e nos anos subseqüentes. O livro registra um diálogo efetuado após a composição de Catatau, mas que retoma dilemas da experiência poética do tempo da composição do livro. Nele podemos ler uma seqüência de reflexões que vão da preocupação com a herança concretista, passando pelas diferenças

estéticas em relação ao grupo paulista, até reflexões constantes sobre a comunicação, a inserção social do poema e o regime autoritário pós-64 vivido durante a composição do livro.

Podemos encontrar ali um poeta menos “formalista”, que se diz hippie, socialista, pós-concreto, ou “zenmarxistaconcretista”, na expressão do autor (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.97). Nas cartas, encontramos um poeta dividido entre a defesa das posições concretistas e o apelo a uma literatura de veiculação mais fácil, próxima à publicidade, expondo insistentemente a maneira como o poeta deve encarar a questão participante, tão premente nos anos de chumbo brasileiros.

De um gesto arrojado e independente, em relação às preocupações políticas com o leitor, o povo, a sociedade, etc., o poeta, somando às suas posições críticas em defesa da autonomia do literário se mostra preocupado com a situação política do país, com o engajamento do artista e com a necessidade de transformação social. Pouco a pouco o discurso concretista vai dando lugar a um discurso de preocupação social, que tinha na poesia a implicação da comunicação mais ampla.

Ao contrário das posições teóricas, comumente firmes e combativas na defesa das idéias concretistas, as cartas de Leminski à Bonvicino revelam as oscilações privadas de um poeta participante, preocupado principalmente com dois temas: a poesia e o mundo, ou ainda, utilizando outros termos, a verdadeira arte poética e a questão participante, frente ao regime de exclusão dos anos 60/70 brasileiros. Torna-se, para nosso trabalho, interessante a observação do poeta Regis Bonvicino, registrado na introdução da primeira edição das cartas, que revela uma dimensão senão esquecida, pouco prestigiada da obra de Leminski, indicando uma oscilação teórica do poeta quanto à questão formal e à questão participante. Vejamos o segmento, antes do comentário:

Outros temas que ocupam o espaço das cartas: o desejo de fazer uma poesia que falasse a linguagem do maior número (possível) de pessoas

– a necessidade de comunicação; a vanguarda (poesia concreta dos anos 60) como “fonte de inspiração”, como ponto de referência e não como uma escola, um modelo a ser seguido sem discussão; a preocupação constante com a sociedade de seu tempo: Brasil, política, pobreza, justiça em contraposição a uma suposta “inutilidade” (ele próprio desconfiava dela) da literatura ou, melhor dizendo, da literatura que se fazia [...] (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.23)

Tal desconfiança do próprio discurso, a princípio inusitada – afinal, o poeta em seus textos teóricos absolutamente não faz concessões –, nós podemos notar não só nas cartas, o que seria só um indício biográfico, mas particularmente, e é o que nos interessa, na obra e no procedimento de linguagem do autor. A formação cultural e pessoal de Leminski, aliada aos dilemas presentes sobre a tecnologia e a comunicação, vividos junto com sua geração, sempre aproxima a experiência estética da idéia de revolução subjetiva. Esta, por sua vez, instaurada na coletividade por meio da imagem e da atitude pessoal do autor, tanto quanto por meio de uma obra contundente e combativa em sua recepção, seria um caminho para a revolução social. Daí o caminho seguido por Leminski em pensar o social enquanto forma, ou ainda, em defender uma revolução social pela estratégia estética, já que, assim como o pensamento oriental de que Leminski tem notícia, o mundo se transforma primeiramente pelo indivíduo.

Nessas cartas, o poeta revê suas posições no diálogo com o poeta Régis Bonvicino, mas o fato não quer dizer que só a partir daí seus textos sejam transformados, isto porque as reflexões advêm de práticas já realizadas, e em nossa perspectiva já realizadas no Catatau. Assim, como exemplo, nas cartas escritas entre 1976 e 1981, Leminski se mostra no decorrer dos anos questionador dos princípios concretistas, num projeto que denomina de “desrepressão”:

passei muitos anos de olhos voltados para S. Paulo para o grupo Noigrandes

escrevendo para eles

preocupado em saber O QUE ELES IAM ACHAR nesta época eu era “concretista”

mas eu era uma porção de outras coisas também e quando eu deixei que elas agissem mais forte

fiz o Catatau [...] (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.44)

[...] a miragem da informação nova é um equívoco ... 90% daqueles jogos palavrapuxapalavra hoje não tem nada q ver [...] ... a monomania da forma nova é um rumo errado ... como insistir/continuar com quem persiste em colocar O papo nesses termos viciados? é a poesia que está dentro da vida, não o contrário [...] (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.113)

Ou ainda, muito diferente de sua posição da arte como algo positivamente inútil, pois que estabelecendo uma função para arte:

Uma coisa é certa: a poesia (como tudo o mais) não tem solução dentro do capitalismo. Quanto mais capitalismo, menos poesia, e é só ver o q acontece no brasil de hoje, das multinacionais, “milagres” monetaristas, consumo feroz de bobagens num quadro onde os problemas fundamentais, alfabetização, alimentação, escolarização, uma política cultural voltada para nossos interesses nacionais e populares, democracia, enfim) [...] quer dizer: a gente fica naquela de intelectual pequeno-burguês querendo resolver as coisas dentro da nossa cabeça [...] só uma poesia q estenda a mão e o coração para um contexto mais justo vai ser nova porque dialoga com um futuro geral, uma coisa maior do q essa Jângal implosiva e q vivemos [...] (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.115)

Ou ainda:

A REVOLUÇÃO É SEMPRE NO PLANO PRAGMÁTICO DA MENSAGEM]

O que interessa/ o que a gente quer, no fundo, é MUDAR A VIDA] alterar as relações de propriedade a distribuição das riquezas os equilíbrios de poder entre classe e classe e nação

este é o grande Poema: nosso poemas são índices dele meramente] (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.48)

Passado, portanto, o período de composição do Catatau o poeta vai revelando sua própria formação, suas questões mais caras, suas preocupações mais relevantes. Preocupações contidas e não admitidas pelo escritor no tocante ao Catatau. Portanto, a revelação das cartas mostra de que maneira um discurso sofre uma desrepressão em duplo sentido: uma desrepressão quanto às exigências dos “patriarcas” concretistas; uma desrepressão, considerando a necessidade menos violenta em negar dimensões políticas em sua produção.

Desta forma une, já no Catatau, política e estética pelo caráter de resistência, o que quer dizer que de maneira alguma a atenção ao universo do trabalho formal impossibilita a observação de uma semântica referencial . Vejamos a postura do poeta (até certo ponto ignorada pela crítica formalista) presente em seu “minifesto”:

Afinal, se a poesia tem algum papel nesta vida é o de não deixar a linguagem estagnar, deitada em berço esplêndido sobre formas já conquistadas. Sobre clichês. Sobre automatismos. Papel de renovar ou revolucionar o como do dizer. E, com isso, ampliar o repertório geral do o que dizer. Formas novas, qualquer malandro percebe, geram conteúdos novos. (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.179)

Postura que pode ser observada de forma aberta numa carta de 1978:

[ ...] é a poesia q está dentro da vida, não o contrário ... viver da e para a poesia é o mesmo q viver para a caça à raposa, o cultivo das orquídeas, o xadrez, etc. ... a coisa nova vai pintar ... vai. Mas desta vez vai vir da história, das mudanças estruturais, das condições materiais das coisas, do contexto ... vamos deixar de nos preocupar/malassombrar com:

- inventores e diluidores - rigor

- radicalidade “poética”

- linhas evolutivas poético-artístico-literárias - história das formas

- novo - paideumas

- experimentos puros - originalidade

Produzo muito (meu projeto é a desrepressão), desovo, quero atingir algo, ergo, erro muito [...] (BONVICINO; LEMINSKI, 1999, p.114)

Como vemos, é uma negação dos preceitos máximos do concretismo, uma negação, é bom frisar, que aparece publicamente em artigo crítico num momento de alívio dos anos de chumbo, mas que já está – esta “desrepressão” –, no Catatau enquanto projeto de linguagem, visto que durante a composição do livro tais críticas já existiam, como apontamentos referenciais, embora dissimuladas pela fragmentariedade da obra.

A tonalidade fundamental das cartas daria o tom de seu enlace e recusa do concretismo, tornando-se um ambiente interpretativo para as tensões no Catatau, isto porque a tonalidade do texto se constrói entre uma necessidade imperativa de se afastar do concretismo e impossibilidade de sua consciência artística de se desvencilhar por completa de sua formação e de sua tradição. A ruptura se daria de forma velada na própria obra, numa arquitetura textual que mantivesse uma presença silenciosa do pensamento entre a fúria de sons, palavras e quase-sentidos.