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Capítulo 1 – Formação e abrigos

1.7 Abrigos para a pesquisa em fisiologia: caminhos para o institucional

No mesmo ano em que Miguel Ozório de Almeida entrou para a ABC, ele foi chamado a atuar como professor de fisiologia dos animais domésticos da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária.190 Essa nomeação teria sido devida aos ecos do concurso de 1916 para a cadeira de Física Médica da Faculdade de Medicina e, provavelmente, à influência que a família Ozório de Almeida possuía na elite econômica e intelectual do Rio de Janeiro.

Nessa instituição, o fisiologista tornou-se membro fundador da comissão de redação do periódico Archivos da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária e ocupou o cargo de diretor interino, em 1924. O periódico foi criado em 1917 e tinha como membros da comissão de redação: Mello Leitão (diretor da Escola e lente de zoologia), Freitas Machado (lente de química analítica), Costa Lima (lente de entomologia agrícola), Miguel Ozório de Almeida (lente de fisiologia dos animais domésticos), Mauricio de Medeiros (lente de anatomia patológica). A publicação compreendia artigos de pesquisas originais do corpo docente da Escola e uma seção de resumos bibliográficos, que ficava a cargo de Miguel Ozório de Almeida. Eram aceitos artigos de profissionais de outras instituições, e era comum a publicação de artigos de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (antigo Instituto de Manguinhos). Os Archivos tornaram-se mais um local de publicações dos trabalhos de pesquisa de Ozório de Almeida e o fisiologista ainda pode criar um laboratório para fazer pesquisas e dar aulas. É curioso perceber que a primeira instituição em que ele atuou como professor era um local de ensino prático e estratégico e que estava ligado ao ministério da Agricultura, ou seja, um local onde o princípio da produção de conhecimento desinteressado, que prevalecia no laboratório particular na casa de seus pais, não estaria essencialmente presente.

Dessa forma, mesmo participando da ABC e formatando sua prática de pesquisas em princípios de valorização da chamada “ciência pura”, ele esteve ligado a instituições que partiam de interesses das elites agroexportadoras e que buscavam utilidade e aplicabilidade

190 Criada pelo Decreto nº 8.319 de 20/10/1910, a Escola esteve vinculada ao Ministério da Agricultura, Indústria

e Comércio, que tinha como objetivo a modernização dos setores agrícolas. Miguel Ozório de Almeida é considerado o responsável pelo desenvolvimento da pesquisa fisiológica nessa Escola, que hoje faz parte da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ, também conhecida por Rural). Desde 2009, foi criado pelo Departamento de Ciências Fisiológicas da UFRRJ um evento científico intitulado “Simpósio Miguel Ozorio de Almeida”, em homenagem ao cientista, celebrado como o precursor da pesquisa fisiológica nessa instituição.

dos conhecimentos científicos produzidos e difundidos pelas instituições republicanas brasileiras. E foi nelas que ele foi buscando espaço para a pesquisa fisiológica que produzia.

Essa situação estava no âmago da tentativa de incluir a pesquisa fisiológica no IOC. Em 1917, Carlos Chagas assumiu a direção do Instituto e aceitou a sugestão de Álvaro de investir em fisiologia dentro da instituição. Miguel foi contratado como assistente da nova seção de fisiologia, mas se afastou do cargo em 1922 por não ter encontrado as condições que considerava suficientes para o desenvolvimento de suas pesquisas. Nesse período, o cientista permaneceu realizando pesquisas em seu laboratório particular na casa de seus pais e lecionando na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária.

Em várias conferências, principalmente na abertura de cursos da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, e em textos de divulgação científica reunidos em seus primeiros livros Homens e coisas de sciência e A vulgarização do saber, Ozório de Almeida discutia o tema da educação no país, principalmente sublinhando a questão mais especificamente ligada ao ensino superior. O cientista procurava valorizar a prática científica, a partir de sua concepção de ciência que advinha de seus estudos de epistemologia, enfatizando o caráter mutável das verdades científicas:

A vós que começaes, eu peço portanto: amae as nossas verdades actuaes como organismos cheios de vida, exuberantes na sua força e fecundos nos seus ensinamentos. Mas, eu vos lembro, evitando assim amarga desillusão, fatal para muitos insufficientemente esclarecidos, que de um momento para outro, ellas poderão desapparecer. [...] Ellas são, por natureza, ephemeras, e por isso mesmo são essencialmente bellas. Na phrase do poeta, não é bello só o que é ephemero?191

A ciência seria algo dinâmico, vivo e, por isso mesmo, tão essencial para a sociedade: Seria porventura necessario fazer neste momento um quadro das vantagens que um paiz dá a cultura intensa e generalisada? A grande guerra valeu por uma experiencia nesse sentido. Reparae que de um e de outro lado, tanto mais forte se mostrou um paiz quanto mais desenvolvida era sua cultura intellectual, especialmente nos dominios da sciencia. Os povos de educação inferior não resistiram.

Aproveitemo-nos dessa lição que custou tanto sangue e tantas lagrimas. Estudar é hoje fazer obra de patriotismo; mais: é fazer obra de humanidade.192

191 ALMEIDA, Miguel Ozório de. “A medicina veterinária”. In ALMEIDA, Miguel Ozório de. Homens e coisas

de sciencia: ensaios. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925. pp.154-155.

Em outra conferência, realizada em abril de 1922, na abertura dos cursos da Escola Superior de Agricultura e de Medicina Veterinária, o cientista apresentou uma análise do ensino no país. Começava afirmando:

Não vos direi se as minhas preferencias vão para o systema universitário alemão, ou se tendem mais para o systema tradicionalmente adoptado entre nós. Não vos darei o meu modo de sentir sobre questões fundamentaes, como a da seleção de professores. Se quizerdes saber o motivo de minha reserva sobre pontos de tão alta importancia, dir-vos-ei muito simplesmente: não tenho idéas bem definidas a esse respeito.193

Sublinhava que a questão do ensino era extremamente complexa e que para resolvê-la não bastava escolher um sistema e o impor por um ato administrativo:

A causa da fallencia dos códigos de ensino sucessivamente praticados nestes últimos tempos é justamente o esquecimento em que são deixados vícios profundos, ou defeitos muito enraigados, escapando a um exame apressado e superficial. Elles não se eliminam por meio de vagas medidas geraes.194

Assinalava, portanto, que uma das necessidades mais urgentes e inadiáveis era a reorganização do ensino secundário, pois, sem essa medida, seriam inúteis quaisquer outras iniciativas relativas ao ensino superior, devido à grande deficiência dos alunos que chegavam às faculdades.

Discorria sobre os novos métodos pedagógicos, que não valorizavam mais ao extremo a catalogação de fatos e a memorização, mas estimulavam o prazer de conhecer, descobrir e criar. Reforçava o valor dessa mudança:

Em minhas aulas costumo uma ou outra vez dizer aos alumnos que taes e taes noções não precisam ser guardadas. Mas é necessário que ellas sejam vistas. Mesmo esquecidas, ellas deixam de sua passagem um traço indelevel. Assignalando-as não deixo ao critério do alumno, ainda pouco firme e seguro, a escolha das cousas indispensáveis. Elle é desse modo insensivelmente orientado para esta arte de esquecer, tão difícil de possuir e tão útil para quem faz do estudo a principal preocupação de sua vida. O que ficará de tudo é a maestria no emprego dos methodos. É pelo gráo em que os possue que se mede em parte o valor de um homem de sciencia. Importa menos a quantidade de cousas por ele conservadas.195

Diante do que tinha sido exposto sobre os fins do ensino superior, analisava os recursos existentes no país para ver se a realidade correspondia a esses ideais. Defendia que isso não queria dizer que ele iria se referir às necessidades de instalações materiais, mas sim à

193 ALMEIDA, M. O. “A medicina veterinária”. op.cit., p.184. 194 Ibidem, p.185.

maneira de se utilizar essas instalações. Para tal análise, o cientista examinava seu caso particular. Afirmava que tinha naquela escola (Escola Superior de Agricultura e de Medicina Veterinária) um bom laboratório de fisiologia, com razoável número de aparelhos. Entretanto, descrevia as dificuldades enfrentadas para exercer sua atividade de ensino no laboratório pelos obstáculos burocráticos que sempre se impunham. Segundo ele, “A grande modificação a ser introduzida seria dar maior liberdade ao pessoal docente, dispôr as coisas de modo que seu espirito de iniciativa se pudesse exercer largamente, amplamente, sem obstaculos mesquinhos.”196 Acrescentava que esse problema não era apenas um problema daquela escola, mas de muitos institutos de pesquisa e de ensino superior.

Aproveitava aquela ocasião para lançar luz sobre outra questão relativa ao ensino superior: a pesquisa científica. Afirmava que alguns dos alunos que o escutavam não se contentariam com os conhecimentos aprendidos naquela Escola e iriam querer levar mais longe sua curiosidade intelectual; Entretanto, alertava “para essas almas favorecidas, o que oferece actualmente o nosso paiz? Nada ou quase nada”.197 Segundo ele:

Dispomos hoje de alguns estabelecimentos ricamente installados. É muito abundante o material scientifico existente no Rio de Janeiro. Os extrangeiros, que nos visitam, ficam maravilhados diante das nossas riquezas, do luxo caracteristico de alguns institutos, evidenciando a largueza das dotações orçamentarias. O Governo do Brasil tem tido varias vezes grandes liberalidades com as sciencias. Entretanto, a nossa produção scientifica é reduzidissima, é infima. Não nos illudamos a esse respeito, não confundamos as produções tanto mais meritorias de uma ou outra personalidade destacada e isolada, com um corpo de sciencia organizada. [...] E por que estamos tão atrazados nos dominios da pesquiza scientifica? [...]

Os nossos estabelecimentos não foram fundados segundo um plano geral procurando collocar cada um delles em seu melhor lugar, de modo a produzir nas melhores condições. Cada um foi fundado por influencia de homens eminentes, tendo junto ao Governo o prestigio bastante para um emprehendimento dessa ordem. Essas acções pessoaes, sem raizes profundas no pensamento ambiente, se trahem nas differenças de regimes e na escolha das sédes para os institutos. O resultado disso é claro: em lugar de formarem um conjunto, no qual uns auxiliassem aos outros, completando-se os nossos estabelecimentos scientificos constituem unidades isoladas e incompletas.198

O problema, portanto, não seria a falta de instalações e de dinheiro, mas de mentalidade. Naquela oportunidade, aproveitou para criticar o IOC. Vale lembrar que o cientista tinha acabado de sair do Instituto, como foi anteriormente mencionado:

196 ALMEIDA, M. O. “Impressões sobre o nosso ensino superior”. op.cit., p.193. 197 Ibidem, p.194.

Nunca se procura amparar, auxiliar, animar os que têm boas disposições de trabalho. Os nossos Institutos são quase todos fechados, impenetraveis. O maior de todos, o Instituto Oswaldo Cruz, só permite lá o trabalho, em qualquer de suas secções, em regra geral, a quem tenha feito o curso completo dado pelo Instituto. As suas secções são entretanto variadas, diversas são as sciencias nelle cultivadas, e o curso é apenas de Microbiologia. Mesmo no caso de difficuldades materiaes, ainda existem outras de ordem differente. Os nossos lugares, que podem ser occupados por pesquizadores, são em numero muito escasso. Quem pensa em fazer vida scientifica, entre nós, volta-se naturalmente para o magisterio. Fóra delle, quase não ha possibilidades.199

O cientista seguiu sua fala trazendo mais dados para demonstrar a dificuldade que os homens de ciência tinham no país, como, por exemplo, os baixos salários dos professores, obrigando-os a terem trabalhos suplementares, o que lhes retirava todo o tempo em que poderiam estar fazendo pesquisa. Além disso:

Se deixarmos de lado as questões materiaes, para só considerarmos os aspectos Moraes, não seremos mais felizes em nossa analyse. Os jovens candidatos á pesquiza scientifica, que entrarem em relações com os nossos homens de sciencia, os encontrarão, em sua maioria, em um estado de grande e profundo desanimo. Todos elles pensam, e o dizem abertamente, ter sido um irremediavel erro se dedicarem ás investigações desinteressadas. Elles sentem-se isolados, abandonados, largados á margem de uma sociedade pouco culta, quasi de todo desprovida de ideaes abstractos e elevados e constantemente presa aos seus interesses materiaes.200

Essa mentalidade da sociedade explicaria também porque, diferente da América do Norte, existiam tão poucas iniciativas privadas de incentivo à produção científica, como a de que o próprio Ozório de Almeida e seus irmãos se beneficiaram para criar o laboratório na casa de seus pais:

Se entre nós não se fundam estabelecimentos de pesquiza por doações privadas, se não existem prêmios de animação aos estudos, se não se consagram algumas sommas a trabalhos especiaes, não é de certo, por falta de generosidade. Mas uma idéa dessas não ocorre a ninguem, e se ocorresse não seria realizada. Falta de cultura de um lado, falta de confiança de outro, eis o que impede as iniciativas fecundas nesse dominio.201

Após pintar de forma tão séria e grave a situação do país no que dizia respeito à pesquisa científica, Ozório de Almeida deu sua opinião sobre as formas de solucioná-la:

199 ALMEIDA, M. O. “Impressões sobre o nosso ensino superior”. op.cit. pp.195-196. 200 Ibidem, p.196.

Actualmente, no Brasil, quem possuir essa cultura superior não tem outro recurso senão o de ir ao extrangeiro, e esse recurso só é accessivel a alguns privilegiados. O Governo até certo ponto procura remediar a isso estabelecendo os premios de viagem. Aliás nesse ponto a nossa Escola tem sido modelar. Ella não só multiplicou muito esses premios, como creou as viagens regulares de seus professores. Mas esse estado de coisas não deve ser definitivo. Elle envolve em si uma grande injustiça. Essas vantagens não podem ser limitadas. Por outro lado, a vida scientifica na Europa, se dá a cultura intellectual, não constitue o melhor preparo para a vida scientifica do Brasil. A nossa desorganização, as nossas difficuldades abatem aquelles que viram outros meios, e se habituaram ao trabalho productivo. A readaptação ao nosso ambiente é muito difficil. A solução desse problema estaria, pois, na creação de uma Faculdade de Sciencias, na qual se aproveitassem alguns elementos entre nós existentes, complementando-a com homens de sciencia vindos do extrangeiro. Podereis objectar que estes ainda mais difficilmente se habituarão ás nossas condições, educados como se acham de modo differente. Entretanto, não é isso que se observa. O brasileiro, formado na Europa, tem os seus olhos constantemente para lá voltados. Elle quer transpor para cá o que vio e que é para elle o ideal. Deante da impossibilidade dessa transplantação, em regra geral, elle desanima e cruza os braços. Elle não teve tempo de assimilar bem as coisas vistas, para poder modifical-as sem attingir sua essência propria, de modo a provocar o seu desenvolvimento em condições diversas. É esse poder que mais facilmente se encontra no extrangeiro esclarecido. Quando para cá se dirige elle conta encontrar, talvez, maiores difficuldades do que encontra. Elle vem já preparado para tudo e disposto a tudo. Isso nos explica o facto de serem os extrangeiros menos pessimistas do que nós. Aos poucos, pela sua acção directa, elles vão formando os seus discipulos. Transmittindo-nos sua cultura, elles nos auxiliarão assim a crear o nosso meio, a formar a elite indispensavel, que necessita ser muito mais numerosa do que a que possuimos hoje.

Dessa forma, o cientista tocava num ponto que foi central em sua trajetória: enquanto Miguel Ozório de Almeida buscava espaço para a fisiologia experimental que exercia no país, foi tecendo também uma rede de colaboração internacional.