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Capítulo 1 – Formação e abrigos

1.1 Introdução

Em 1939, Miguel Ozório de Almeida e seu irmão Álvaro receberam uma homenagem de seus discípulos, colegas e amigos, organizada por Haity Moussatché71 e Mário Vianna Dias72, e financiada pelo mecenas Guilherme Guinle.73 Numa reunião na Academia Brasileira de Letras (da qual Miguel era membro), foi entregue aos irmãos um Livro de Homenagem com textos sobre a carreira dos dois fisiologistas e artigos científicos de pesquisadores nacionais e estrangeiros. Carlos Chagas Filho, pesquisador de uma geração posterior à dos irmãos, apresentou em seu texto a seguinte imagem dos mestres:

Há na obra cientifica dos Professores Alvaro e Miguel Ozorio de Almeida um traço comum a ambos, que é um dos aspetos mais caracteristicos da mesma: é a profunda compreensão da coisa biologica, do fenomeno biológico “per se”. [...] Os irmãos Ozorio de Almeida são um exemplo a ser seguido pelos que se iniciam nas ciencias biologicas, tornadas aridas pelos que crendo que o conhecimento humano se faz por simples evolução continua, tiraram da biologia todas as suas teorias, e a tornaram um conjunto de adaptações d’outras ciencias.74

Essas enfáticas afirmações demonstram disputas metodológicas e conceituais nas ciências biológicas no início do século XX, num momento de crescente especialização da área. No entanto, como Carlos Chagas frisava, os irmãos Ozório viam certa unidade nas questões biológicas dentro da disciplina fisiologia, que para eles, não perdia seu lugar, com o

71 Haity Moussatché (1910-1998) foi um fisiologista do Instituto Oswaldo Cruz. Durante sua formação na

Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro foi assistente da cadeira de fisiologia de Álvaro Ozório de Almeida. Por indicação desse professor, foi trabalhar no laboratório de fisiologia de Miguel Ozório de Almeida no Instituto Oswaldo Cruz, na década de 1930. Desenvolveu trabalhos, principalmente, sobre propriedades medicinais de substâncias extraídas de plantas nativas e sobre os mediadores químicos na transmissão do influxo nervoso. Sobre sua vida e trajetória profissional, ver HAITY MOUSSATCHÉ: homenagem ao guerreiro da ciência brasileira. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 1998, pp. 443-491.

72 Mário Vianna Dias (1914-), fisiologista brasileiro, formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e

trabalhou por um longo tempo no Instituto Oswaldo Cruz ao lado de Miguel Ozório de Almeida e Haity Moussatché. De seus trabalhos com Ozório de Almeida destacam-se as pesquisas sobre as reações convulsivas de origem espinhal-cortical. Sobre sua vida e trajetória científica, ver DIAS, Mário Ulysses Viana. Mário Viana Dias (depoimento, 1977). Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. 70p.

73 Guilherme Guinle (1882-1960) fazia parte de uma família que era proprietária da concessão da Companhia

Docas de Santos, primeira sociedade aberta do país, criada para operar o maior porto brasileiro. Guinle formou- se na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em 1905, e dedicou-se durante sua vida tanto às atividades empresariais quanto às atividades filantrópicas. Ver SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a ciência no Rio de Janeiro, 1920-1940. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2008

74CHAGAS FILHO, Carlos. “Aspectos da obra cientifica dos Professores Alvaro e Miguel Ozorio de Almeida”.

In LIVRO de Homenagem aos Professores Alvaro e Miguel Ozorio de Almeida. Editado por collegas, amigos, assistentes e discipulos em honra às suas actividades scientificas. Rio de Janeiro: [s.n.], 1939. p.38.

processo de especialização.75 Ao descrever os irmãos Ozório dessa forma, Carlos Chagas

Filho também apresenta o posicionamento deles em relação a essas disputas:

O pensamento cientifico atravessa grave crise no momento atual. Todos perguntam qual o papel que a ciencia poderá desempenhar na restauração dos valores morais do mundo, e se ela será capaz de supri-los. Alvaro e Miguel Ozorio aqui aparecem como as sombras reconfortadoras dos desertos caminhos. Formam na legião dos que serão capazes de regenerar o pensamento humano, porque crêem profundamente na verdade experimental e na liberdade de pensamento, simbolo da dignidade humana, e nunca se limitaram ao racionalismo materialista que “Tentou dogmatizar a natureza, e por presunção ou arrogancia causou grande dano á filosofia e ao conhecimento humano”.76

Pelas palavras de Chagas Filho, é possível perceber que esse momento de consagração dos dois fisiologistas era uma forma também de homenagem a um determinado homem de ciência e seus valores morais. Mais do que uma “crise” da ciência com a constante especialização da biologia e o que seria certo dogmatismo científico, num contexto internacional de início da Segunda Guerra Mundial, vivia-se um novo período político no país, pós-golpe de 1937, e um novo momento de institucionalização da pesquisa científica no Brasil, com a reformulação do ensino superior, momento que Chagas Filho soube aproveitar, ao criar o primeiro laboratório de biofísica numa universidade brasileira.77 Com a homenagem a seus mestres, junto a Tito Cavalcante, Vianna Dias, Thales Martins e Couto e Silva, ele deixava claro suas dívidas com uma geração anterior representada pelos irmãos Ozório. Essa geração, para Miguel Ozório de Almeida “mal compreendida”78, teria buscado espaços para a

75 Segundo Miguel Ozório de Almeida: “Fazendo a analyse minuciosa dos fenômenos physiologicos, e

verificando a accentuada tendência das pesquizas para a reducção d’esses fenômenos aos seus componentes physicos e chimicos, seria possivel ter a impressão de que a Physiologia é uma sciencia em via de desapparecimento; ella viria a sofrer uma decomposição progressiva, reduzindo-se à Physica, Chimica e Physico-Chimica biológicas. Entretanto, esse não é o caso. [...] Será um phenomeno constituido por um complexo de fenômenos mecânicos, physicos e chimicos, e esse complexo tem suas caracteristicas próprias, resultantes do modo por que se apresentam associados os phenomenos elementares que o compõem.” ALMEIDA, Miguel Ozório de. Tratado elementar de physiologia. Tomo I. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1937, p.2.

76CHAGAS FILHO, Carlos. “Aspectos da obra cientifica dos Professores Alvaro e Miguel Ozorio de Almeida”.

In LIVRO de Homenagem aos Professores Alvaro e Miguel Ozorio de Almeida. Editado por collegas, amigos, assistentes e discipulos em honra às suas actividades scientificas. Rio de Janeiro: [s.n.], 1939. p.40.

77 Sobre Carlos Chagas Filho, ver LIMA, Ana Luce Girão Soares de. Ciência e Política no Brasil: Carlos Chagas

Filho e o Instituto de Biofísica (1931-1951). 224 f. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde).Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009.

78 ALMEIDA, Miguel Ozório de. “Geração mal compreendida”. In ALMEIDA, Miguel Ozório de. Ensaios,

ciência biológica no país79, sem perder de vista a dimensão filosófica da investigação científica.

Em recente livro, Regina Horta Duarte demonstra de que modo as atividades de alguns intelectuais do Museu Nacional delinearam-se como verdadeiras estratégias políticas de fortalecimento e valorização da biologia no país.80 Horta analisa a emergência do saber biológico como campo específico do conhecimento e a constituição de uma “biologia militante” por cientistas, como Cândido de Mello Leitão, Alberto Jose de Sampaio e Edgard Roquette-Pinto, que pleitearam um papel ativo dos saberes biológicos e do Museu Nacional na construção de políticas públicas, entre as décadas de 1920 e 1940. A autora sublinha que esses intelectuais de fato atuaram de maneira criativa e inovadora tanto nos debates para a construção da nação, nas críticas ao sistema oligárquico, nas propostas que apontavam para uma centralização do poder, pensada como uma forma de ultrapassar os interesses individuais e os “egoísmos” das práticas liberais do período, quanto na defesa da adoção de novas posturas em relação à natureza, a partir do conhecimento e valorização da flora e da fauna brasileira, da regulamentação de áreas de proteção ambiental e do controle da exploração de recursos naturais. Entretanto, suas ações também reforçaram concepções autoritárias “ao idealizarem um ‘povo’ e projetarem suas ações desde a perspectiva de moldá-lo às suas expectativas.” 81 É possível perceber que esses pesquisadores agiram numa chave nacionalista em sua luta para o desenvolvimento desse campo de saber. Como veremos nos próximos capítulos, Miguel Ozório de Almeida seguirá uma linha mais internacionalista em sua defesa e valorização da fisiologia (um dos ramos da biologia) e, num sentido mais amplo, da investigação científica, no país.

Neste primeiro capítulo, tenho como objetivo apresentar o processo de formulação de certa concepção de ciência por Miguel Ozório de Almeida no decorrer de sua prática enquanto fisiologista, a partir de suas leituras, de seus temas de pesquisas, do modo como ele formulava e apresentava seus trabalhos e de seu engajamento institucional, nas décadas de 1910 e 1920.

79 MARTINS, Thales. “A biologia no Brasil”. In AZEVEDO, Fernando de. As ciências no Brasil. v. 2. Rio de

Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994.

80 DUARTE, Regina Horta. A biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do

conhecimento e práticas politicas no Brasil, 1926-1945. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. p.21.

81 Segundo Duarte: “Com uma visão autoritária, marcada por verdadeira obsessão pedagógica e por

voluntarismo, acreditavam que medidas adequadas dirigidas à população poderiam trazê-la à cena em sua ‘verdade’ mais profunda, com a emergência de uma cultura popular devidamente domesticada pelo saber erudito e por uma racionalidade considerada superior, revelando uma nacionalidade ‘genuína’.” Ibidem, p.15.

Enquanto esteve engajado no contexto nacional nos debates sobre a valorização da pesquisa científica, o fisiologista procurou estabelecer também contatos estreitos com cientistas de outros países e assegurar o reconhecimento da produção científica realizada nos laboratórios brasileiros por seus pares no exterior. Dessa forma, analisarei os caminhos e descaminhos de Ozório de Almeida em busca da institucionalização e desenvolvimento das pesquisas fisiológicas no Rio de Janeiro, além de seus primeiros esforços para difundir suas pesquisas internacionalmente.