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2.4 ACCOUNTABILITY DEMOCRÁTICA

2.4.2 Accountability

Como o termo “accountability” ainda é tema de muita discussão e controvérsia, é preciso um ponto de partida. Um conceito inicial de accountability aponta para um regime eficaz de responsabilização, prestação de contas e - se for o caso - sanções.

Portanto, embora frequentemente traduzido como "prestação de contas", o conceito de accountability também inclui a noção de responsabilidade dos eleitos, de transparência e de fiscalização. Accountability seria, então, um conceito que abarca, genericamente, três formas de prevenir e corrigir os abusos de poder, quais sejam: obrigação de se abrir ao público, obrigação de se explicar e justificar suas ações e subordinação à possibilidade de sanções. (SCHEDLER, 1999).

As dificuldades em se capturar o conceito de accountability já estão presentes no próprio uso do termo: uma palavra da língua inglesa. Somente esta questão gerou dois textos bastante interessantes no Brasil: “Accountability: quando poderemos traduzí-la para o

português?”, de Ana Maria Campos, publicado em 1990 (CAMPOS, 1990), e “Accountability: já podemos traduzi-la para o português?”, de José Antonio Gomes de Pinho e Ana Rita Silva Sacramento, de 2009.

No título do seu texto, Campos (op. cit.) situa o verbo no futuro, já deixando claro que, àquela altura, não haveria possibilidade de tradução para o português. Antes de se explorar a razão pela qual a tradução seria impossível, convém destacar o conceito com o qual Campos trabalha. A autora define accountability como “responsabilidade objetiva ou obrigação de responder por algo. [E acrescenta que a accountability está relacionada à democracia]. Quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accountability”. (MOSHER, 1968 apud CAMPOS, op. cit., p. 4).

A autora conclui, então, que o termo accountability só poderá ser traduzido para o português quando: a sociedade brasileira se organizar para exercer o controle político do governo, o aparato governamental tornar-se mais descentralizado e transparente e quando valores tradicionais forem substituídos por valores sociais emergentes.

Retomando o artigo de Campos (op. cit.) e cotejando-o a textos dos anos 1990 e 2000, Pinho e Sacramento (2009, p. 8) destacam que o significado de accountability evoluiu para um conceito bidimensional, que abarca answerability – “obrigação dos detentores de mandatos públicos informarem, explicarem e responderem pelos seus atos [e enforcement, que seria a] capacidade das agências de impor sanções e perdas de poder para aqueles que violarem os deveres públicos.”

Accountability, segundo Pinho (op. cit.), seria um processo diluído no tempo, que se inicia com a prestação de contas (answerability) e se encerra na posterior possibilidade de sanção (enforcement).

Para Minogue (1998, p. 5, tradução nossa, apud MINOGUE; POLIDANO; HULME, 1998), o conceito “envolve a existência de mecanismos que assegurem que os servidores públicos e os líderes políticos sejam responsáveis por suas ações e pelo uso de recursos públicos, e irá requerer um governo transparente e uma imprensa livre”.

Conforme Akutsu (2002, p. 42-43), o conceito de accountability envolveria duas partes:

a primeira que delega responsabilidade para que a segunda proceda à gestão dos recursos e, ao mesmo tempo, gera a obrigação daquele que administra os recursos de prestar contas de sua gestão, demonstrando o bom uso desses recursos. [Esclarece, ainda, que] quando os recursos a serem geridos são públicos, a parte que delega é a Sociedade, representada pelo Poder Legislativo, e a parte delegada é o governo, a quem cabe a responsabilidade final pela gestão dos recursos.

Autor de “Conceptualizing accountability”, clássico texto publicado nos Estados Unidos em 1998, Andreas Schedler é um dos estudiosos que mais se debruçou sobre o termo accountability.

Em 2008, o IFAI (Instituto Federal de Acceso a la Información Pública), do México, entrou em contacto com Schedler para solicitar autorização para a tradução de “Conceptualizing accountability” para o espanhol. Em vez de autorizar a tradução, o autor optou por escrever um novo texto, atualizando a discussão. Além disso, assim como Campos (1990) e Pinho e Sacramento (2009) fizeram com o português, Schedler introduziu o debate sobre a dificuldade em traduzir o termo “acountability” para o espanhol.

O autor conclui que uma tradução próxima seria “rendición de cuentas pública”, algo como “prestação de contas pública”, em português. No entanto, Schedler diferencia os dois termos ao afirmar que accountability carrega a ideia de obrigação, enquanto prestação de contas parece adquirir um sentido de “ato voluntário, uma concessão generosa do soberano que presta contas por virtude e vontade própria, não por necessidade”. (SCHEDLER, 2008, p. 12, tradução nossa).

Para Schedler (op. cit.), accountability, resumidamente, é um processo segundo o qual o sujeito está obrigado a informar ao público sobre suas ações e decisões, sejam futuras ou passadas, a justificá-las e a sofrer a sanção correspondente em caso de má conduta.

Avançando na discussão, Schedler (op. cit., p. 25, tradução nossa) defende que accountability seja um conceito “modesto [que] admite, de entrada, que a política é um empreendimento humano, que como tal se caracteriza por elementos de liberdade e indeterminação”. Para o autor, a accountability deve apoiar-se em regras cuidadosamente construídas, mas não deve sufocar o exercício de poder em uma camisa de força regulatória.

No que diz respeito aos órgãos de controle e ao clássico problema embutido na pergunta “quem controla os controladores?”, Schedler (op. cit., p. 20, tradução nossa) defende um formato de uma “rede recursiva que mantenha relações intransitivas de prestação de contas [na qual] A presta contas a B, que presta contas a C, que presta contas a A”.

Citando David Collier e James Mahon (1993 apud SCHEDLER, 2008), Schedler defende também que accountability é um conceito “radial” e não “clássico”: “Os conceitos clássicos se definem por um núcleo duro e invariável de características básicas. Os conceitos radiais, por sua vez, mais do que compartilhar una essência comum, compartilham uma certa ‘semelhança familiar’ (Wittgenstein)”. (Ibid., p. 24, tradução nossa).

Um conceito radial, no entanto, não deve ser desprovido de clareza, afirma Schedler (op. cit.), para quem a clareza conceitual poderá trazer consequências práticas.

À guisa de conclusão, o autor cita alguns requisitos importantes para a compreensão do termo e suas consequências concretas. A accountability deve contemplar os seguintes aspectos:

• Ser de natureza obrigatória;

• Apoiar-se nos três pilares (informação, justificativa e responsabilização);

• Manter uma “modéstia relativa”;

• Ter caráter público;

• Reconhecer-se de natureza multifacetada;

• Atentar à complementaridade dos controles vertical e horizontal; e

• Adotar a recursividade intransitiva.

Diante desses requisitos, podemos afirmar que o cerne do conceito de accountability caminha para se solidificar na ideia de dupla face “responsividade” (answerability) – “responsabilização com possibilidade de sanção” (enforcement), sendo que a face da “responsividade” envolve informação e justificativa.