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O entendimento do termo accountability requer uma discussão ampla, pois, conforme comentado por Boyce e Davids (2009), o termo não pode ser entendido meramente como um conjunto de valores, processos e práticas, mas, ao contrário, deve ser contextualizado, considerando a forma como é colocado em prática, e reconhecido como uma prática permeada de valores e suposições.

Com o intuito de tentar entender as falhas que levaram à tragédia com o ônibus espacial Challenger, Romzek e Dubnick (1987), em seu artigo clássico, acabam por propor um quadro de accountability pública como meio para analisar as pressões institucionais sofridas pela NASA e suas implicações nessa tragédia. Desta forma, os autores chegam a quatro tipos de sistemas de accountability (Figura 2), considerando a fonte de controle sobre a agência e o grau de controle sobre suas ações, a saber: (i) Accountability burocrática – na qual as expectativas dos administradores são gerenciadas com foco nas prioridades dos que estão no topo da hierarquia burocrática; (ii) Accountability legal – baseada nas relações entre o partido controlando a agência externamente e os membros da organização; (iii) Accountability profissional – na qual o controle sobre as atividades é colocado nas mãos daqueles com a competência necessária para realizar o trabalho; e, (iv) Accountability política – baseada nas pressões democráticas impostas aos administradores públicos.

Figura 2: Tipos de sistemas de Accountability Fonte: Romzek e Dubnick (1987)

Interno Externo

Alto 1. Burocrático 2. Legal

Baixo 3. Profissional 4. Político

Grau de controle sobre as ações da

agência

Em um sentido simplista, pode-se entender accountability como um conceito que implica uma relação na qual as pessoas são obrigadas a explicar e assumir a responsabilidade por suas ações (SINCLAIR, 1995). Apesar dessa simplicidade inicial, conforme comentado anteriormente, esse conceito pode surgir de diversas formas, sendo sua definição modificada de acordo com a importância do uso da linguagem como um agente da ideologia na formação de seu entendimento. A partir dessa afirmação e com base em estudo conduzido por meio de entrevistas junto a um grupo de Chief Executive Officers – CEO’s, Sinclair (1995) desdobra o entendimento do termo em cinco formas distintas: (i) Accountability política – ou de ‘Westminster’, envolvendo as relações entre ministros e parlamento em uma direção ‘para cima’; (ii) Accountability pública – envolvendo as relações com a sociedade em uma direção ‘para fora’; (iii) Accountability gerencial – envolvendo três sub- tipos, fiscal – ligadas ao gasto público e orçamento, processual – ligada ao monitoramento dos processos implementados, e programática – ligada aos resultados a serem alcançados; (iv) Accountability profissional – envolvendo os padrões percebidos por um grupo de especialistas; e, finalmente, (v) Accountability pessoal – relacionada à obediência a própria consciência em uma direção ‘para dentro’.

Tratando da questão no âmbito político, Schedler (1999) alega que os teóricos clássicos de ciência política argumentam que em primeiro lugar vem o poder, e, em seguida, a necessidade de controlá-lo. O autor argumenta que a dificuldade surge devido ao fato de que inicialmente deve-se habilitar o governo a controlar seus governados, mas, posteriormente, deve-se obrigar o governo a controlar a si próprio. Nesse sentido, o termo accountability

[…] expressa a preocupação permanente para com o controle e a supervisão, vigilância e restrições institucionais sobre o exercício do poder. Em todo o mundo (sempre que o termo está a meio caminho traduzível), instituições financeiras internacionais, os líderes dos partidos, ativistas populares, jornalistas e cientistas políticos descobriram as bênçãos e aderir à causa da "accountability pública".(SCHEDLER, 1999, p. 13)

Este autor argumenta, ainda, que accountability é um conceito bi-dimensional que envolve três diferentes questões para prevenção do abuso de poder, a saber: (i) enforcement - a implicação de poder submeter os governantes a ameaças de sanções; (ii) monitoring - a obrigação de os governantes exercerem o poder de forma transparente; e, (iii) justification – ou seja, a obrigação de os governantes justificarem suas ações. O conjunto das últimas duas questões (monitoring e justification) formam o conceito de answerability, sendo que “accountability e answerability visam criar transparência. Demandando informação, assim como justificação” (SCHEDLER, 1999, p. 20).

Corroborando a visão sobre accountability envolver contextualização e ter em conta as ideologias que formam seu entendimento, Bracci (2009) argumenta que esta tem, também, fortes implicações culturais. Este autor afirma que, embora todos os sistemas sociais possuam mecanismos de accountability com vistas a alcançar legitimação, os meios podem variar dado que a configuração social impacta na forma como a accountability é exercida. Ou seja, pela argumentação citada acima, accountability é um termo mutável e que se adapta à cada realidade na qual seus mecanismos são implementados. Apesar dessas questões, existe algum consenso a respeito de suas dimensões, principalmente no que tange à transparência, ao controle e aos mecanismos de responsabilização dos agentes públicos (CENEVIVA; FARAH, 2012; NZE; NKAMNEBE, 2003; ROBINSON, 2003; SCHEDLER, 1999), bem como pela noção de ‘direção’, ou seja, para quem e em que condições deve-se prestar esclarecimentos (ROMZEK; DUBNICK, 1987; SINCLAIR, 1995).

No Brasil, em conformidade com a afirmação de Bracci (2009) a respeito da necessidade de contextualização no entendimento do termo, existe uma discussão que vem desde os anos 1990, com a publicação do artigo de Campos (1990), abordando a dificuldade de tradução e entendimento do termo, relacionada a noção do que é ‘público’ e da relação entre a administração pública e a sociedade. Essa autora argumenta que o grau de accountability de uma determinada sociedade diz respeito a uma dimensão macro-ambiental, envolvendo sua textura política e social, bem como seus valores, seus costumes e sua história.

Em seu estudo, Campos (Ibid.) faz uma crítica ao desenvolvimento da estrutura política brasileira, argumentando que um histórico de clientelismo e patrimonialismo na administração pública do país acaba por dificultar o entendimento do termo, e sua tradução. Ela

argumenta que o entendimento deste termo envolveria um amadurecimento da democracia e da própria sociedade, uma vez que não seja internalizada essa preocupação, se torna difícil o entendimento e tradução do termo. Em suas palavras

[…] quanto menos amadurecida a sociedade, menos provável que se preocupe com a accountability do serviço público. Portanto, não surpreende que, nos países menos desenvolvidos, não haja tal preocupação. Nem mesmo sente-se falta de palavra que traduza accountability. Quando a indigência política for superada e o tecido institucional fortalecido, é provável que surja o conceito e, só então, surja a palavra para traduzi-lo. Por enquanto, qualquer tentativa apressada de cunhar uma palavra seria desprovida de significado, pois não faria parte da nossa realidade. (CAMPOS, 1990, p. 17)

Quase 20 anos depois do artigo publicado por Campos, Pinho e Sacramento (2009), retomam essa discussão, buscando verificar quais mudanças ocorreram na configuração política e social brasileira que viessem a contribuir para a tradução e entendimento do termo. Esses autores argumentam que houve avanços no que tange ao desenvolvimento institucional do país, mas que ainda não existe uma cultura de accountability, o que ainda dificulta o entendimento do termo.

A respeito dos avanços da accountability no Brasil, Gusinsky et al. (2015) realizam uma revisão sobre o tema com base em diversos autores (CASSANEGO-JR. et al., 2012; CENEVIVA, 2007; FONTES- FILHO; NAVES, 2014; GRACILIANO et al., 2010; LIMA-FILHO et al., 2011; PÓ; ABRUCIO, 2006; RAUPP; PINHO, 2013, 2011; ROCHA, 2013). Nesse estudo, argumentam que ainda existe preocupação com prestação de contas, necessidade de transparência nos atos públicos, publicização de informações, participação popular e falta de cultura política por parte da população. Esse argumento acaba por corroborar a afirmação de Pinho e Sacramento (2009) à respeito da necessidade ainda latente no contexto brasileiro em relação ao fortalecimento de uma cultura de accountability.

A discussão desses autores coloca luz sobre a importância da consideração do aspecto ligado ao acesso à informação, que conforme

Kierkegaard (2009) é considerado vital para o fortalecimento da accountability, da participação social e do Estado de Direito. Ao explorar a questão do acesso à informação por meio de um survey realizado em nível local, estadual e federal, na Alemanha, Áustria e Suíça, Papenfus e Schaefer (2010) corroboram essa afirmação argumentando que o acesso à informação é um aspecto-chave da transparência, que se configura como um pré-requisito básico da accountability. Por sua vez, Ceneviva e Farah (2012) argumentam que apesar do acesso à informação se configurar como condição necessária para a responsabilização das autoridades e das organizações públicas, essa responsabilização se dará somente por meio da incorporação de normas, regras e mecanismos para punição dos agentes públicos.

Com base no exposto acima, e considerando que a transparência é inerente ao processo para o alcance de melhores níveis de accountability, esta deve ser tratada como prioridade, para que o cidadão tenha acesso ao que o governo faz, e, mais além, tenha informações e condições para cobrar de seus agentes o atendimento aos anseios da sociedade, em um processo participativo que fortaleça e desenvolva a democracia e, ao mesmo tempo, se configure em um mecanismo para coibir e combater a corrupção no setor público.