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Para o desenvolvimento deste estudo, considera-se importante abordar a evolução histórica da administração pública, no decorrer de suas reformas. Essa discussão visa posicionar o leitor no que tange aos desenvolvimentos ocorridos no campo, que culminam no que atualmente é denominada governança pública, no qual existe o pressuposto de que o cidadão se configura como uma parte ativa no processo democrático, em uma relação entre o Estado e a sociedade no sentido de aprimorar a gestão no setor público, o que acaba por torná-la mais alinhada às discussões sobre transparência e à proposta do trabalho aqui apresentado.

Em seus primórdios a administração pública tinha um caráter patrimonialista, iniciado no período das monarquias absolutas, no qual os patrimônios público e privado eram confundidos, o Estado entendido como propriedade do rei e sendo comum o nepotismo, empreguismo e corrupção (MOTTA, 2013).

Bergue (2011) ao apresentar as características da administração pública patrimonialista argumenta que nesta perspectiva existia uma confusão entre o que era entendido como propriedade pública e o que era propriedade do administrador; o aparelho administrativo do Estado era entendido como uma extensão do poder de seu dirigente; existia uma tendência ao nepotismo com base em crenças como a garantia de lealdade

baseada em laços familiares, na possibilidade de distribuição de oportunidades profissionais ou de riqueza para a família e na garantia de maior probabilidade de conivência a eventuais desvios; além disso, havia também uma tendência de que os cargos, principalmente os comissionados, fossem considerados feudos, sendo distribuídos de forma personalizada e muitas vezes utilizados como moeda de troca.

Nesse sentido, o autor (BERGUE, 2011, p. 233) argumenta que

O aspecto mais proeminente na caracterização do patrimonialismo na administração pública é a dificuldade de alguns gestores em definir precisamente os limites de fronteira entre o público e o privado, diferenciando o patrimônio público do patrimônio do governante. Como decorrência da compreensão dessa posição do gestor em relação à coisa pública, pode-se explicar o fato de, por vezes, o aparelho estatal ser percebido como extensão do poder do agente público. Nesses termos, no modelo de administração pública essencialmente patrimonialista, as pessoas – servidores públicos – são consideradas empregadas do administrador, e não do ente estatal. Nesses termos, sendo o espaço público assumido pelo gestor, como uma extensão de seus domínios pessoais, a prática do nepotismo, por exemplo, passa a ser uma tendência natural. Esse tipo de administração mostrou-se incompatível com o capitalismo industrial que surgia no séc. XIX, dada a necessidade, para o capitalismo, da separação entre Estado e mercado, abrindo espaço para o surgimento da administração burocrática, racional-legal (BRESSER- PEREIRA, 1996). Essas ideias de uma administração pública mais eficiente ganharam força com a revolução industrial e com o enfraquecimento dos poderes aristocráticos e absolutistas, mas se faziam presentes desde o séc. XVIII na Prússia, onde uma burocracia pública já se preocupava com uma gestão centrada no controle, nas finanças públicas e na comunicação das ordens públicas (MOTTA, 2013).

Em relação ao modelo burocrático, salienta-se que este é baseado nos conceitos difundidos por Max Weber (1978), tendo como principais características a formalidade, impessoalidade e profissionalismo, em um

ambiente administrativo fechado, que enfatiza a organização e o controle em detrimento dos resultados, e vendo o cidadão apenas como um usuário dos serviços públicos, não-participante das decisões. Corroborando este entendimento, Bergue (2011, p. 234), ao apresentar a perspectiva burocrática na administração pública alega que

Esse paradigma organizacional associa-se conceitualmente à burocracia tomada a partir do tipo ideal descrito por Weber, ou seja, privilegia, em nome da eficiência, um arranjo mecanicista formal que, pode-se dizer, traduz em termos mais amplos a doutrina taylorista-fordista de divisão e especialização intelectual e operacional do trabalho, padronização e formalização de procedimentos, entre outros.

Bresser-Pereira (1996) argumenta que a adoção da administração burocrática clássica surgiu atrelada ao entendimento de que esta seria uma alternativa superior à administração patrimonialista, especialmente no que diz respeito ao seu pressuposto de eficiência. Entretanto, o autor alega que esse pressuposto não se confirmou.

[…] verificou-se que (o modelo burocrático) não garantia nem rapidez, nem boa qualidade nem custo baixo para os serviços prestados ao público. Na verdade, a administração burocrática é lenta, cara, auto-referida, pouco ou nada orientada para o atendimento das demandas dos cidadãos. (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 5)

Secchi (2009) argumenta que após a II Guerra Mundial diversas críticas passaram a ser feitas em relação ao modelo burocrático, em uma onda de confrontação intelectual liderada por Simon, Waldo e Merton, sendo essas críticas implícitas nas características dos modelos pós- burocráticos, notadamente o modelo gerencial e a governança pública.

No que tange à New Public Management – NPM, pode-se considerar que as teorias por trás dessa abordagem decorrente da 2ª reforma na administração pública são, principalmente, aquelas ligadas à

Escolha Pública (Public Choice), à abordagem da Chicago School of Economics, a Nova Economia Institucional - NEI (incluindo a teoria da agência, a teoria dos custos de transação e a teoria do direito à propriedade), a economia da informação, ao gerencialismo e à sociedade em rede (PAPENFUS; SCHAEFER, 2010). Essa abordagem surgiu nos países anglo-saxãos durante os anos de 1980, dando ênfase na eficiência, efetividade e uso dos recursos, por meio da introdução de mecanismos de mercado, noções de competitividade e tentativas para tornar o serviço público mais responsivo para os usuários, também entendidos como clientes. (BONSÓN et al., 2012)

Ao discutir as reformas no setor público no âmbito da NPM, Kudo (2008) argumenta que exemplos advindos de diferentes países e regiões apresentam questões em comum. O autor cita como exemplos países da União Europeia que têm implementado reformas políticas que incluem a reestruturação de instituições governamentais, modernização de processos orçamentários, racionalização de políticas financeiras, mudanças na gestão dos recursos humanos, renovação na gestão e entrega de serviços públicos, renovação das parcerias público-privado e uso de Information and Communication Technology - ICT, alegando que a NPM se configura como a mais importante base conceitual para essas reformas. Além disso, aborda a relação entre as reformas advindas da NPM e accountability e transparência no setor público quando afirma que

Junto com NPM vem o aumento da demanda e a necessidade de accountability e transparência, elementos altamente solicitados na integração europeia de TIC. Este processo pode ser visto em várias reformas da administração pública dos Estados-Membros da UE. (KUDO, 2008, p. 93) Apesar de diversos estudos terem sido conduzidos a respeito de implementação de reformas no setor público com base na abordagem da NPM, estudiosos tem levantado preocupações sobre as implicações democráticas e éticas referentes à introdução generalizada de ferramentas advindas do setor privado e à atribuição de poderes discricionários a servidores públicos não eleitos. Os escândalos e episódios de corrupção divulgados em países mais envolvidos com as tendências globais da NPM levam a um debate sobre o efeito dessa abordagem sobre o comportamento da gestão pública, fazendo com que a accountability

ganhe relevância no sentido de contrabalançar essa tendência e influenciar um comportamento ético por parte dos servidores públicos (MONFARDINI, 2010).

Bovaird e Loffler (2003), ao discutir o movimento da administração pública em direção ao conceito de governança, argumentam que após uma década de dominação dos princípios da NPM, tornou-se evidente a insatisfação com seu foco de análise, limitado a (i) uma noção de eficiência, efetividade e economicidade; (ii) relações contratuais com o setor privado; (iii) o papel do cidadão, visto apenas como um consumidor; (iv) a noção de que em muitos países os escândalos relativos ao desempenho do governo não eram necessariamente ligados ao baixo desempenho na prestação dos serviços e sim na extensão na qual os cidadãos eram completamente informados sobre o pano de fundo das decisões tomadas e em relação à honestidade e justiça por parte dos políticos e seus staffs; e (v) a noção estreita de que a sustentabilidade a longo-prazo das políticas econômicas, sociais e ambientais requer um alinhamento de estratégias e políticas apenas entre as agências governamentais, sem a preocupação de expandir a discussão para os setores de atividade e as demais partes interessadas.

Esses problemas relacionados à NPM, associados à uma crítica aos pressupostos também compartilhados pelas teorias tradicionais da administração pública, que argumentam ser possível a obtenção de uma governança coordenada sem que exista uma profunda e persistente interação entre as partes envolvidas e afetadas na cadeia de decisão no setor público fez surgir, no fim dos anos 1990, as chamadas teorias de governança (PEDERSEN; SEHESTED; SØRENSEN, 2010).

Dias e Cario (2014, p. 93) ao propor uma concepção para governança pública argumentam que

[…] diversos são os sentidos que podem ser assumidos pelo termo antes de reduzi-lo ao debate em torno da relação entre Estado e o desenvolvimento da sociedade, ou seja, o que aqui se chama Governança Pública – uma estratégia desenvolvimentista adotada na relação entre o Estado e a sociedade com vistas à construção do público, envolvendo o próprio público e buscando atender os interesses desse mesmo público. Em outras palavras, uma governança que se utiliza de

processos mais democráticos para desenhar as soluções demandadas pela sociedade do século XXI.

Assim, esses autores caracterizam a governança pública como uma matriz composta por 5 elementos, a saber: (i) coprodução do desenvolvimento por meio da cooperação entre Estado, Mercado e Sociedade Civil; (ii) coordenação estatal do processo de cooperação, tendo o Estado o papel de mediador das relações; (iii) delegação da autoridade estatal em três direções: downward, outward e upward, reconhecendo o potencial e incentivando o papel das redes; (iv) ênfase na eficiência e eficácia associando-as a mecanismos de democracia deliberativa e democracia direta para a busca de resultados responsivos; e, (v) planejamento para o desenvolvimento baseado em critérios de equidade. (DIAS; CARIO, 2014, p. 104)

A governança pública assume ser de crucial importância uma colaboração interativa entre Estado, Mercado e Sociedade Civil, nas palavras de Pedersen, Sehested e Sørensen (2010, p. 379)

[…] estas formas de colaboração interativa, e em especial das redes de governança, são celebradas como um forte, um mecanismo predominante de importância crucial para a provisão de governança pública nos sistemas políticos pluricêntricos de hoje.

Essa noção de colaboração interativa inerente à governança pública reforça a relevância da accountability nesse contexto, conforme sugerido por Monfardini (2010). Nesse sentido, o autor argumenta, ainda, que a melhoria da accountability externa está em jogo tanto para os políticos quanto para os servidores públicos, levando as organizações públicas a tentarem melhorar a evidenciação das informações para os cidadãos, enquanto esses cidadãos tendem a aumentar sua participação, em um processo de governança pública.

Com vistas a melhor identificar os contrastes existentes entre essas abordagens conceituais, Staroscky et al. (2014, p. 33) elaboraram um quadro baseado no estudo de Secchi (2009) apresentando as reformas

surgidas no âmbito da administração publica como resposta ao patrimonialismo existente anteriormente, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1: Características básicas das abordagens conceituais de administração pública

Fonte: Staroscky et al. (2014)

Pelo Quadro 1 é possível perceber que houve uma maior abertura na relação entre a administração pública e a sociedade a partir da superação da abordagem burocrática, além disso, a relação entre política e administração se modifica, no sentido de uma maior interação entre esses dois elementos, com sua distinção sendo superada no âmbito governança pública.

A função de controle está presente em todas as abordagens, sendo que no caso da governança pública é realizada por meio de uma maior coordenação entre os atores. Da mesma forma, no âmbito da governança pública, o cidadão passa a ser visto como um parceiro, ou seja, um ente ativo na proposição de políticas públicas, bem como no controle da ação governamental.

A governança pública engloba legitimação e accountability política, bem como accountability administrativa, financeira e orçamentária, transparência, abertura e o Estado de direito. Governança, portanto, diz respeito a várias questões, entre elas, que aqueles que detêm a confiança do público devem ser capazes de explicar sobre o uso dessa confiança aos cidadãos ou seus representantes. (MUTULA; WAMUKOYA, 2009). Assim, argumenta-se que a governança pública acaba por ter maior impacto nas relações de accountability, bem como na

Característica Burocracia NPM Governança Pública

Função sistêmica Homeostase Homeostase Homeostase

Relação sistêmica com

o ambiente Fechado Aberto Aberto

Distinção entre política

e administração Separados Trabalhando juntos sob o comando político Distinção superada Funções administrativas

enfatizadas Controle e organização Controle e planejamento Controle e coordenação Discricionariedade

administrativa Baixa Alta n. a.

transparência pública, uma vez que traz em seus pressupostos uma ideia de controle e coordenação, que envolve diretamente a sociedade civil.