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Da acedia ao homem cordial – alegorias e imagens da visão de mundo portuguesa

Capítulo 2 Alegorias das origens e raízes

2.1 Da acedia ao homem cordial – alegorias e imagens da visão de mundo portuguesa

Mesmo comprimidos, dobrados e envolvidos, os elementos são potências de alargamento e estiramento do mundo. Não basta nem mesmo falar de uma sucessão de limites ou de molduras, pois toda a moldura marca uma direção no espaço, direção que coexiste com as outras, e cada forma une-se ao espaço ilimitado em todas as direções simultaneamente. É um mundo largo e flutuante, pelo menos em sua base, uma cena ou um imenso platô [...]. Gilles Deleuze. A dobra. Leibniz e o Barroco).

[...] a tristeza absoluta é prenunciadora de todas as catástrofes futuras [...]. (Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão).

Este subtítulo pretende avaliar como algumas noções de Weber, principalmente o “desencantamento do mundo”, e de Benjamin (melancolia e alegoria), tomadas aqui como

afinidades eletivas e muito possivelmente lidas e “desdobradas” por SBH, não são somente essenciais para o entendimento da formação da visão de mundo e da mentalidade lusitanas, mas também são opostas pelo autor brasileiro, no momento em que demonstra que a originalidade lusitana consiste em desencantar o mundo antes de qualquer outro povo, além de promover uma peculiar visão alegórica e melancólica sobre o mundo.

Trata-se do jogo entre forças antagônicas, a melancolia e a astúcia, que compõe o empreendimento português em nossas terras. A acedia, ou seja, a inércia do coração, o sentimento português de tristeza e de desterro que afasta as interpretações de cunho mágico e demasiadamente abstrato sobre o mundo, culmina dialeticamente em traços que compõem o “homem cordial”, analisados de maneira crítica pelo autor. Portanto, é possível conceber transversalidades e pontos de tensão entre alguns temas benjaminianos e buarqueanos. 121

121 A obra Origem do drama barroco alemão de Walter Benjamin apresenta estes temas que giram em torno do desencantamento ao lado do despertar da visão melancólica e alegórica de mundo. Cabe destacar que em seu livro

Devemos começar a nossa exposição através da contextualização das noções de Weber e Benjamin, para em seguida observarmos como SBH participa desse debate e parece, de certa forma, empregar algumas noções similares, ao passo que demonstra diferenças essenciais por meio das especificidades lusitanas. 122 É o que será apresentado nas páginas a seguir. 123

O sentimento de esvaziamento do mundo que atinge os homens do século XVII, o homem barroco, representa o esgotamento da visão da realidade nutrida por explicações ou raciocínios de cunho mágico e supersticioso. Max Weber denomina este processo desencantamento do

mundo, regido a partir da ética protestante, um elemento essencial para a constituição da

Modernidade.

A Reforma Protestante, segundo Weber, deu origem à ascese, entendida como a busca constante do domínio e controle do próprio corpo, disciplina rígida diante das paixões, visando finalmente ao controle sobre a natureza por meio da ação metódica e calculada. Diferentemente do catolicismo (que nega o trabalho como fonte de riquezas), a conduta de vida protestante, sobretudo a calvinista, desenvolveu uma ética que prevê a racionalização da atividade mundana Visão do Paraíso SBH, conforme relata em entrevista concedida a Richard Graham, primeiramente objetivou realizar um estudo introdutório sobre o barroco luso-brasileiro. Nesse caso, podemos supor que uma de suas fontes indiretas ao seu estudo seja o trabalho de Benjamin: “Visão do Paraíso era para ser uma introdução a um estudo do barroco no pensamento luso-brasileiro. Mas a introdução tornou-se maior que o tema principal. E então tive que apresentar a tese na Universidade. Assim, apressei-me em completá-lo com o aparato erudito, pesquisando onde tinha lido esta ou aquela referência ao tema edênico”. (Richard Graham. “An Interwiew with Sérgio Buarque de Holanda”. op. cit., p. 1779).

122 Lembremos que a concepção de “dobradura” (apresentada no capítulo 1.2 “Os termos do debate em torno das interpretações da obra de Sérgio Buarque de Holanda”) não expressa uma mera incorporação de um referencial teórico, senão a sua transformação, o que pode tornar evidente a presença de possíveis oposições entre o referencial teórico original e o que foi transformado. Este aspecto permite a hipótese de que SBH possui pontos de tensão com Weber e Benjamin.

123 Portanto, cabe aqui reconstruir como SBH “desdobra” - o que supomos afinidades eletivas - a formulação de uma análise da visão “aventureira” lusitana diante da natureza e como esta visão perdura durante o processo histórico de constituição de nosso povo, culminando, por isso, na composição de traços do “homem cordial”. Não devemos excluir a hipótese de que o tema do “mundo desencantado” no pensamento de SBH pode abranger outras leituras de

e, portanto, que se realiza através do trabalho rígido e do negócio (negação do ócio), enquanto formas de demonstração a si mesmo de que se é um escolhido por Deus, ou seja, um predestinado à salvação. Trata-se de uma forma de religiosidade eminentemente moderna, uma vez que a fé não apenas se reduz à contemplação de Deus, mas também prevê uma ação e dominação do mundo.

Por ora não trataremos da ética do trabalho que se “desdobra” a partir dessa conduta metódica de vida. Importa apresentar na trilha de Weber o sentimento de profunda tristeza que atingiu os homens daquele período. Weber descreve os puritanos como seres abandonados à própria sorte e em perpétua solidão, na qual deveriam traçar o seu próprio destino em direção à sua salvação individual, embora esta se mantivesse como um mistério.

A natureza está morta, decai fria e sem encanto. Para Weber desperta a percepção de que a vontade divina é regida por leis insondáveis e, por isso, está distante das crendices humanas. Resta, a partir de então, apenas a ação racional dos sujeitos, único alicerce capaz de determinar a bem-aventurança do homem na Terra, pois nada mais o garante enquanto ser privilegiado pela vontade e criação divinas. Todos os vestígios de intensa espiritualidade na prática religiosa e na vida cotidiana foram expurgados.

O feitiço do mundo que animava a visão dos homens não mais permitiu à imaginação a crença em mundos e terras mágicas ou paradisíacas, sequer a especulação da intervenção divina direta nas relações dos homens com a natureza. Nenhum objeto resistiu a este processo de desenfeitiçamento da ordem do universo. Não apenas a religião, mas também a política se tornou uma esfera secularizada ou “profana” e, por isto, apresenta o seu caráter moderno. Predomina outros pensadores. Buscamos, contudo, segundo os objetivos de nossa investigação, a afinidade com aspectos do

[...] um sentimento de inaudita solidão interior do indivíduo. No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma – a bem-aventurança eterna – o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do destino fixado desde toda eternidade. Ninguém podia ajudá-lo [...]. Aquele grande processo histórico-religioso do

desencantamento do mundo que teve início com as profecias do judaísmo antigo e, em conjunto com o pensamento científico helênico, repudiava como superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação, encontrou aqui a sua conclusão. O puritano genuíno ia ao ponto de condenar até mesmo todo vestígio de cerimônias religiosas fúnebres e enterrava os seus sem canto e sem música, só para não dar trela ao aparecimento da superstition, isto é, da confiança em efeitos salvísticos à maneira mágico-transcendental. Não havia nenhum meio mágico, melhor dizendo, meio nenhum que proporcionasse a graça divina a quem Deus houvesse decidido negá-la. Em conjunto com a peremptória doutrina da incondicional distância de Deus e da falta de valor de tudo quanto não passa de criatura, esse isolamento íntimo do ser humano explica a oposição absolutamente negativa do puritanismo perante todos os elementos da ordem sensorial e sentimental na cultura e na religiosidade subjetiva – pelo fato de serem inúteis à salvação e fomentarem as ilusões do sentimento e a superstição divinizadora da criatura – e com isso fica explicada a recusa em princípio de toda cultura dos sentidos em geral. Isso por um lado. Por outro lado, ele constituiu uma das raízes daquele individualismo desiludido e de coloração pessimista [...]. 124

Trata-se de um momento de crise. Não se compreende mais o que vem a ser o próprio mundo, isto é, perde-se a confiança no destino e no lugar que se ocupa no universo. Walter Benjamin na obra Origem do drama barroco alemão aponta que a vida religiosa não tão fervorosa, ou seja, apenas indireta (sem cerimônias e rituais intensos) e a negação do mundo sensível, operadas pelos puritanos, produziram duas conseqüências: ao povo “uma estrita

obediência ao dever” e “entre os grandes instalou a melancolia”. 125

A melancolia é um dos desdobramentos avaliados por Benjamin a partir do processo de “desencantamento do mundo”. No homem barroco predomina o sentimento de um mundo vazio, de uma tristeza permanente. Para o filósofo, se, por um lado, os calvinistas teriam buscado no trabalho o sentido para a superação do luto diante do mundo, mostrando a si mesmos a sua

pensamento de Benjamin.

124 Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo. op. cit., pp. 95-6. 125 Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão. op. cit., p. 161 – grifos nossos.

predestinação, por outro, os luteranos negaram-se a esta concessão, de sorte que este foi o seu legado pouco otimista, ou seja, melancólico para os grandes homens do barroco alemão. 126

Qual seria então o significado da vida se a fé não pode ser posta à prova? Benjamin explora essa temática a partir da qual emerge o sentimento melancólico. Predomina a acedia que, dialeticamente, é o estado de espírito que reanima o mundo esvaziado sob a forma de uma máscara, de uma representação frente à realidade, para obter dela uma satisfação enigmática. Para Benjamin, é neste instante que desperta a visão alegórica sobre o mundo.

Em outras palavras, a melancolia, enquanto sensibilidade seca e gélida diante da realidade, constitui um saber sobre a natureza considerada agora morta ou desencantada. Mas a contempla para salvá-la. Tanto o luto quanto a melancolia barroca combatem o mito, mas o resgatam profanando-o. 127 Ao realizarem este movimento, melancolia e luto originam a alegoria: “A

126 Há uma diferença essencial entre luto e melancolia. Enquanto que o luto é temporário, uma postura tomada a partir de uma perda que poderá ser superada, a melancolia é o sentimento permanente de tristeza, mas que ao mesmo tempo impõe a possibilidade do prazer. A melancolia corresponde muito mais à oscilação entre a tristeza e a astúcia do homem solitário. Os puritanos, sobretudo os calvinistas, correspondem aos enlutados que superam esta condição por meio do trabalho metódico e racional e, conforme veremos mais adiante, os lusitanos representam, entre outros grandes personagens literários e mitológicos, os melancólicos, uma vez que a tristeza e o desgosto pela vida e por visões mágicas não são apenas permanentes, mas também proporcionam a preferência por lançarem-se ao mundo através de grandes aventuras: “[...] Sigmund Freud [...] elucida as diferenças entre as duas emoções: enquanto o luto é uma reação normal diante da perda de uma pessoa querida, perda superada depois de algum tempo, a melancolia é uma ‘disposição patológica’, uma ‘autotortura prazerosa’. Embora não se refira a este estudo de Freud, Benjamin interpreta o Trauerspiel [drama] inteiramente sob o signo da melancolia [...]”. (Wille Bolle. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo, FAPESP/Edusp, 2000, p. 117).

De acordo com Leandro Konder a palavra “melancolia” “[...] vem do grego, melankholia, combinaçao de melanos (negro) e kholé (bílis). Designava um estado patológico do fígado, que produzia bílis escura e acarretava depressão, mal estar, irritação. Podia, mesmo, levar à morte [...]. Etimologicamente, o melancólico é o atrabiliário, palavra de origem latina (atra quer dizer “preto” em latim)”. (Leandro Konder. Walter Benjamin, o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 117).

127 Não há na obra Origem do drama barroco alemão e nem mesmo em seu célebre ensaio sobre “O narrador” uma definição pontual sobre o que venha a ser o “mito”. Contudo, Benjamin permite que se compreenda que o drama barroco alemão se opôs de maneira severa às qualidades das figuras mítico-trágicas da Antigüidade. Segundo Benjamin, o gênero dramático nasce extinguindo a tragédia. Isto porque a origem do drama (e a oposição essencial entre drama e tragédia) deve-se à morte de Sócrates, o qual sem resistência preferiu, enquanto mártir, um julgamento injusto a lutar como os heróis trágicos, os quais se defrontavam contra os deuses e toda a ordem da natureza, lutando assim contra as forças do destino. Sócrates, do mesmo modo que Jesus Cristo, não passou por uma morte heróica, rejeitou o mundo humano em nome de sua ascensão racional em direção a um outro mundo inconcebível para os simples mortais. Sócrates inaugura o ocaso do mito trágico e das crenças sobre um mundo regido por uma polifonia

melancolia trai o mundo pelo saber. Mas em sua tenaz auto-absorção, a melancolia inclui as coisas mortas em sua contemplação, para salvá-las [...]. A obstinação que se manifesta na intenção do luto provém de sua lealdade para com o mundo das coisas”. 128

A alegoria desperta no mundo profanado, 129 cuja magia que anima a natureza e o imaginário se perdeu. Se há algo de sobrenatural neste mundo, seu conhecimento é insondável de deuses e forças sobrenaturais de modo que “[...] O ciclo de Sócrates é uma exaustiva secularização da saga heróica, pelo abandono, em favor da razão, dos seus paradoxos demoníacos. Sem dúvida, vista do exterior, a morte de Sócrates se assemelha à morte trágica. Ela é um sacrifício expiatório segundo a letra de um velho direito, um sacrifício instaurador de uma comunidade nova, no espírito de uma justiça vindoura. Mas essa semelhança deixa claro o caráter agonal da verdadeira tragédia: a luta silenciosa, a fuga muda do herói cederam lugar, nos diálogos platônicos, a um brilhante desenvolvimento da conversa e da consciência [...] e de um só golpe a morte do herói converteu-se na morte do mártir [...]. Sócrates morre voluntariamente, e voluntariamente emudece, sem qualquer desafio e com uma superioridade inexcedível [...]” (Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão. op. cit., pp. 136-7).

Walter Benjamin salta historicamente ao tomar o drama barroco alemão dos séculos XVI e XVII. Apesar da negação à visão mágica e mítica do mundo, na qual prevalece a relação desafiadora e a redução do homem diante dos deuses e entidades sobrenaturais, além de suas figuras demoníacas, a especificidade do drama barroco diz respeito à possibilidade de profanar estas imagens da Antigüidade, para assim salvá-las. Isto significa que, embora a existência de um mundo regido por magias e feitiços (o mundo mítico) seja amplamente negado, suas principais imagens são resgatadas não para a representação de atos ou eventos miraculosos, mas sim como alegorias que encenam as ações eminentemente humanas. Portanto, o mito é profanado, ao passo que dialeticamente é salvo, uma vez que as alegorias tomam o mito como uma forma de representação das ações humanas. No drama barroco alemão predomina o mundo desencantado, porém a alegoria salva a Antigüidade ao tomar as figuras míticas como metáforas das ações dos homens e não dos deuses e heróis. A alegoria apresenta uma dialética na qual o profano e o divino se combinam: “[...] O conceito do alegórico só pode fazer justiça ao drama barroco na medida em que ele se distingue especificamente não somente do símbolo teológico como, com igual clareza, do mero epíteto decorativo. A alegoria não surgiu como um arabesco escolástico adornado da antiga concepção dos deuses. Na origem, ela não tem nenhuma das qualidades de jogo, distanciamento e superioridade que lhes foram atribuídas, em vista das suas produções posteriores: pelo contrário. O alegorês não teria surgido nunca, se a Igreja tivesse conseguido expulsar sumariamente os deuses na memória dos fiéis. Ela não constitui o monumento epigônico de uma vitória, e sim a palavra que pretende exorcizar um remanescente intacto da vida antiga [...]. Mas se a alegoria é mais que a evaporação, por mais abstrata que seja, de essências teológicas, e sua sobrevivência no meio em que lhes é inadequado, e mesmo hostil, essa concepção romana tardia não é a verdadeira concepção alegórica. Na seqüência dessa literatura o antigo mundo dos deuses deveria ter-se extinguido, e no entanto ele foi salvo justamente pela alegoria. Pois a visão da transitoriedade das coisas e a preocupação de salvá-las para a eternidade estão entre os temas mais fortes da alegoria. Não havia nada na Idade Média – nem no domínio da arte, nem na ciência, nem no Estado – que pudesse substituir o legado deixado em todas essas esferas pela Antigüidade [...] A alegoria se instala mais duravelmente onde o efêmero e o eterno coexistem mais intimamente [...]. Através dessas improvisações religiosas, o solo da Antigüidade foi preparado para a recepção da alegoria: mas essa é uma semente cristã. Pois foi absolutamente decisivo para a formação desse modo de pensar que não somente a transitoriedade, mas também a culpa se instalassem visivelmente no reino dos ídolos, como no reino dos corpos. As significações alegóricas estão proibidas, pela culpa de encontrar em si mesmas o seu sentido. A culpa é imanente tanto ao contemplativo alegórico, que trai o mundo por causa do saber, como aos próprios objetos de sua contemplação. Essa concepção, fundada na doutrina da queda da criatura, que arrasta consigo a natureza, constitui o fermento do profundo alegorês ocidental [...]”. (cf. Origem do drama barroco alemão. op. cit., pp. 246-7).

para o homem. Mas, buscando se expressar, este mesmo homem apresenta uma nova linguagem para realisticamente dar novos contornos ao universo. Sua tarefa é a de reanimar a natureza como as “gotas que molham a terra árida”. Para Benjamin, não se trata do mesmo olhar encantado de seus predecessores extirpados pelo legado do desencantamento, senão um olhar ou visão de mundo que encontra na forma de uma imagem as ruínas e fragmentos 130 que anunciam, 129 Neste ponto devemos destacar uma diferença essencial entre o pensamento Benjamin e Vico. Enquanto o primeiro toma a alegoria como resultado da “queda” do mundo regido pela magia e como uma tentativa de resgatar a sensibilidade da realidade por meio de uma outra forma de saber (a alegoria), Vico, próximo da visão da Renascença, toma a alegoria como um momento anterior (e não posterior, como o faz Benjamin) desta referida “queda”. Para Vico, a linguagem alegórica corresponde a um período que precede uma época profana, a atual em que vivemos, regida pela ação do homem e não dos deuses ou semideuses. Para o filósofo italiano a linguagem alegórica representa a forma pela qual os semideuses se comunicam. Não há em Vico a distinção entre a linguagem alegórica e simbólica. Por fim, os hieróglifos corresponderiam à linguagem propriamente divina, ao lado de sons onomatopéicos, que corresponderiam a um momento anterior à linguagem alegórica dos semideuses. A linguagem expressa por nós, homens, seria epistolar e distante (embora com pequenos resquícios que fazem lembrar as anteriores) do sentido original das próprias coisas e do que é dito pelas entidades divinas: “Ao principiar, pois, a meditação, tomemos como primeiro princípio aquela filológica dignidade: que os egípcios narravam, que no tempo decorrido antes deles falaram-se três línguas correspondentes em número e na ordem às três idades transcorridas antes deles no mundo: dos deuses, dos heróis e dos homens; e diziam que a primeira língua fora hieroglífica, ou seja, sagrada ou divina; a segunda, simbólica ou, por sinais, ou seja, por empresas heróicas; a terceira epistolar para comunicar aos distantes entre si as vulgares necessidades de suas vidas. Dessas três línguas existem duas áureas passagens em Homero, na Ilíada, nas quais abertamente vemos gregos e egípcios coincidir. Nos quais uma é a que narra que Nestor viveu três vidas de homens de línguas diversas: de modo que Nestor deve ter sido o caráter heróico da cronologia estabelecida pelas três línguas correspondentes às três idades dos egípcios; donde tanto deve ter significado aquela frase: “viver os anos de Nestor” como “viver os anos do mundo”. Outra [passagem] é onde Enéas narra a Aquiles que os homens de línguas diversas começaram a habitar Ílho, depois que Tróia foi levada aos lidos do mar, convertendo-se Pérgamo em fortaleza. Com tal primeiro princípio unimos aquela tradição, dos egípcios, segundo a qual Thot, ou Mercúrio, criou as leis e as letras”. (Vico. A Ciência Nova. op. cit., 1999, p.182).

130

Conforme apresentamos na “Introdução”, o sentido etimológico da palavra alegoria (allo- agorein) é representada pela faculdade de expressar e dirigir o olhar para além do sentido literal das palavras. Portanto, o dito e o escrito apresentam algo para além daquilo que é exposto a priori. O fragmento, com isto, converte-se em imagem de pensamento, que é um ato crítico, na ótica benjaminiana, pois leva o pensamento a rememorar ou atribuir o

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