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Os termos do debate em torno das interpretações da obra de Sérgio Buarque de

Capítulo 1 – Aventuras buarqueanas

1.2 Os termos do debate em torno das interpretações da obra de Sérgio Buarque de

[...] O botão se “desdobra” na flor, mas o papel “dobrado” em forma de barco, na brincadeira infantil, pode ser desdobrado, tranformando-se de novo em papel liso [...], e o prazer do leitor é fazer dela uma coisa lisa, cuja significação caiba na palma da mão.

(Walter Benjamin. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte).

Tal como a distinção entre a imagem do desdobramento de um barquinho de papel, que torna-se uma folha lisa - na qual lhe é permitida a cuidadosa avaliação da formação de seus traços, a sua reconstrução e, finalmente, a elaboração de outras formas diversas -, e a de um botão, que torna-se inevitavelmente uma flor, as concepções teóricas de Walter Benjamin e SBH diferenciam-se dos procedimentos de observação, modelos e abordagens científicas tradicionais. Isto porque as formas tradicionais e corriqueiras de observação científica capturam e não transformam em algo próprio ao pesquisador os seus referenciais teóricos a serem aplicados no estudo de um determinado “objeto” ou fenômeno social. Ou seja, permanecem como que intactos, sua aplicação é funcional, não são teoricamente ressignificados, tampouco expandidos e, por isso, correspondem a uma forma de “desdobramento” irreversível, sendo estes impossibilitados do acréscimo de novas formas. Não há intervenção e reinterpretação teóricas criativas e autônomas do pesquisador sobre eles.

50 Ver: Theodor Adorno. “Sobre Franz Kafka. Com ocasión del décimo aniversario de su muerte – Berlim 17/12/1934”. Madrid, Catedra Teorema, 2001, pp. 110 -111.

Este modo de abordagem dos referenciais, que os mantém idênticos em relação ao que concebem determinadas correntes do conhecimento, remete à segunda forma de "desdobramento” destacada, a do botão que necessariamente torna-se flor. Portanto, nesse caso, não ocorre a possibilidade de conceder novos significados a eles, de sorte que permanecem inalterados e um número considerável de pesquisas acadêmicas se nutre desse procedimento.

Em contrapartida, Walter Benjamin e SBH são autores que não tomam as suas recepções teóricas com o objetivo de apenas reproduzi-las. Seus referenciais são transformados, de modo que as terminologias de autores clássicos, bem como as de seus contemporâneos - de correntes sociológicas, antropológicas e filosóficas distintas – são incorporadas e remodeladas, “dobradas”, ao mesmo tempo em que adquirem conteúdos novos repletos de sentido e capazes de abordar temas variados, o que não apenas remete à noção de afinidade eletiva, mas também lembra um exercício de bricolagem teórica. Esta abordagem remete à forma de “desdobramento” semelhante ao de um barquinho de papel, de sorte que a sua significação “caiba na palma da mão”.

Assim como ocorre com o barquinho, em que todas as dobraduras possuem o mesmo grau de importância, sem as quais não seria possível compor a sua totalidade, o mesmo ocorre com o pensamento de Benjamin e SBH, pois os seus referenciais teóricos incorporados e transformados parecem dialogar, dissolvendo-se dialeticamente uns nos outros, o que não os impede de realizar oposições e críticas a eles. Ou seja, há tensões e pontos de distanciamento.

Compõem, como um caleidoscópio, novas imagens e reflexões que formam um emaranhado de significados revestido pelo tecido da linguagem narrativa e alegórica. Conexões e diálogos entre os próprios referenciais florescem a partir de seu tecido, cuja originalidade

alimenta-se exatamente da primorosa capacidade de seus leitores/teóricos na operação de transformações e articulações, tendo em vista que não realizam, na maioria das vezes, citações explícitas ou alongados discursos que revelem os seus referenciais e muito menos os seus procedimentos metodológicos.

Maria Odila Leite da Silva Dias assim descreve SBH em um de seus comentários:

A busca constante da objetividade e da precisão impeliu-o a criar um método próprio de reconstituição de diferentes ritmos do tempo no processo de devir, no qual as sutilezas do estilo narrativo fazem as vezes de modelos teóricos e conceitos intelectualistas. Como historiador, caracterizou-se pelo estilo narrativo aprimorado e por uma elaborada reconstituição do espírito da época e do linguajar das fontes históricas. Trabalhava a sensibilidade e a imaginação, adaptava o estilo narrativo ao linguajar dos documentos, cuidava de adequar os conceitos ao espírito da época e ao nível da consciência dos indivíduos que então viviam. Cada um de seus trabalhos culminava numa busca de síntese, trabalhosa e complexa: o historiador se esforçava por ser meticuloso sem jamais perder de vista o universal, as tendências globais, que cultivava com os seus amplos conhecimentos sociológicos, antropológicos, filosóficos. 51

E em outra passagem do mesmo comentário, a historiadora reforça a idéia de que, com sua grandiosa erudição, SBH foi capaz de adequar e ressignificar a seu modo conceitos de correntes sociológicas, filosóficas e antropológicas das mais variadas:

Homem dotado de prodigiosa memória e de uma imensa erudição, pois convivia fartamente em sua biblioteca com as mais variadas obras – sociológicas, antropológicas, voltava a sua criatividade para a adequação dos conceitos das ciências humanas e dos métodos ao fluir do tempo, aos momentos de transição, ao vir-a-ser. Para ele a História nada mais era que o conteúdo de todas as ciências humanas em sua temporalidade. 52

O mesmo ocorre com Walter Benjamin, pensador que não apenas procurou apropriar-se e transformar em algo seu os conceitos filosóficos clássicos e de seu tempo, mas também, assim

51Maria Odila Leite da Silva Dias. “Sérgio Buarque de Holanda, historiador”. in: Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo. Ed. Ática, 1985, p. 9.

como SBH, buscou a conciliação entre os saberes em suas análises, em oposição a aspectos “cientificistas” que tendem a tomar cada ramo do conhecimento isoladamente. No comentário que faz sobre o seu ensaio As Afinidades Eletivas de Goethe, Benjamin revela que a “[...] sua intenção programática comum é promover o processo de integração da ciência, que derruba cada vez mais as rígidas paredes divisórias entre as disciplinas, características do conceito de ciência do século passado, mediante uma análise da obra da arte que reconhece nela uma expressão integral [...] das tendências de uma época [...]”. 53 Diálogo e comunhão entre os saberes são constantes nas reflexões de Walter Benjamin e SBH.

Tampouco há nos dois pensadores uma postura e procedimentos teóricos rigorosamente idênticos e aplicados em plena conformidade com os autores que apreciam, de forma que todas as suas análises são um exercício de adequação, conforme afirma Maria Odila Leite Dias, ou mais precisamente o que acima designamos como uma bricolagem teórica, isto é, apropriação e ressignificação de conteúdos. A “dobradura” realizada por estes autores, portanto, não significa plena concordância com os referenciais ou afinidades teóricas, uma vez que os transformam em algo próprio ao investigador. É partir disso que podemos encontrar não somente afinidades, mas também diferenças e tensões essenciais entre Benjamin e SBH.

É o caso das leituras e a transformações que Walter Benjamin faz do fragmentário estilo do Romantismo e das alegorias do drama barroco alemão, sua leitura ímpar do marxismo, da teologia da cabala judaica, da superação que faz em relação ao que Carl Schmitt compreende como estado de exceção, das obras de Baudelaire, Kafka, Proust, Balzac, Edgar Allan Poe, Goethe, entre outros, e que são aplicadas à sua vasta gama de temas abordados. Tarefa similar é 52 Idem, p. 24.

realizada por SBH em seus estudos de literatura (de obras clássicas da literatura universal e nacional), documentos históricos dos períodos Colonial e Imperial, além dos pensadores que nitidamente compõem o seu pensamento, embora muitas vezes não sejam explicitamente citados, como por exemplo a sociologia de Max Weber, Adorno e Simmel, e a filosofia de Vico, Marx, Nietzsche, Walter Benjamin, entre outros.

Suas reflexões são, por isso, permeadas e circulam por um vasto arcabouço documental e também teórico. 54 A oposição que realizamos entre as distintas imagens que dizem respeito ao “desdobramento” permite-nos a investigação das transformações operadas pelo pensamento de SBH, evitando assim a segunda espécie de “desdobramento” (do botão à flor), pois não tomamos de maneira presunçosa e reducionista a superioridade de uma ou mais de suas afinidades teóricas de modo a menosprezar as demais. É preciso capturar e de certa forma isolar de maneira abstrata o referencial específico que buscamos (Walter Benjamin, no caso de nossa investigação), sem deixar de realizar paralelos e diálogos com os demais autores. Todos eles, quando verificados e investigados isoladamente, não determinam de forma alguma a postura intelectual assumida por SBH, que esteve sempre muito distante de posições metodológicas ortodoxas e dogmáticas.

Portanto, a tarefa aqui a ser realizada é expressa por uma outra espécie de “desdobramento” teórico, uma experiência intelectual íntima às reflexões de SBH, muito

54 Sobre a incorporação do estilo de escrita que SBH faz dos documentos a que teve acesso destacamos o comentário de Francisco Iglesias, que constata: “[...] Há em Visão do Paraíso também, uma coisa que impressiona muito, que é o fato de Sérgio usar na sua exposição muito do estilo dos documentos de pesquisa que faz. Ele passa, não a usar a linguagem quinhentista ou seiscentista, mas a parafraseá-las, incorporando-a a um próprio estilo. Faz verdadeiras transcrições do grande cronista português que foi Fernão Lopes, por exemplo. Sérgio aproveita muito isso dos textos que lê. Curiosamente, essa observação eu vi pela primeira vez feita no estudo de Maria Odila, que antecede a antologia publicada na coleção de Florestan Fernandes. Depois vi que a observação havia sido feita por Manuel Bandeira numa crônica, pequenina mas deliciosa, como tudo o que Manuel Bandeira fez: ‘Sérgio Buarque, o anticafageste’. Então ele disse assim: ‘O Sérgio aproveitou os cronistas e as Atas da Câmara de São Paulo e incorporou aquilo ao estilo dele’, o que é rigorosamente verdade. É um lado rico do historiador [...] ”. (comentário da exposição: Fernando Iglesias. “Sérgio Buarque de Holanda, historiador”. in: Sérgio Buarque de Holanda. 3º Colóquio UFRJ, Rio de Janeiro, Imago, 1992, pp.50-1).

próxima da imagem que nos traz o barquinho de papel ao ser desdobrado e que nos recorda também a típica imagem do narrador descrita por Benjamin: “[...] Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo [...]” 55, não apenas contá-las, mas retransmiti-las com os vestígios e marcas deixadas pelo seu narrador:

[...] Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de começar a sua história com a descrição das circunstâncias em que foram informados os fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica [...]. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata. 56

Dessa forma, abandonamos a noção de “influência” como ferramenta epistemológica empregada pelas reflexões de SBH e Walter Benjamin. Sua etimologia 57 traz consigo a irreversibilidade do fluxo, o escorrer do pensamento. Carregada em conformidade com a direção das águas, simplesmente flui e, assim como o botão que se converte em flor, o seu movimento não abarca outra possibilidade, isto é, não permite que se navegue contra o fluxo das águas, não concebe a reconstrução do pensamento que é utilizado como referencial. Walter Benjamin e SBH não aderem aos seus referenciais pura e simplesmente, ao contrário, atuam como

interpretãîo. 58 Tomam para si os seus referenciais e ampliam o seu campo de visão. Neste ato, o leitor transforma-se em “interpretante”, 59 capaz de capturar e conduzir a uma nova realidade o

55 Walter Benjamin. “O Narrador”. in: Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1996, p. 205. 56 Idem.

57 Ver verbete: “Influência -> Fluir.”; “Fluir vb. ‘correr, escorrer (como os líquidos)´ ´manar, proceder, derivar’ XVIII. [...].” (Antonio Geraldo da Cunha. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova fronteira, 1986, p 362). Termos como “aplicar” ou a designação de uma “filiação” a uma determinada corrente teórica parecem seguir esta mesma concepção de “influência”.

58 Ver verbete: “Interpretar vb. ‘traduzir, ajuizar da intenção, do sentido, representar como ator, exprimir o pensamento´ [...] Do lat. Interpretãîo. [...].” (Antonio Geraldo da Cunha. op. cit., p. 442).

59 O termo “interpretante” surgiu a partir de uma conversa com o professor de Estética da USP, Leon Kossovitch (departamento de Filosofia - FFLCH). Devemos a ele o uso desta palavra. Optamos por este termo e não, por

texto que lê, este entendido como o “interpretado”. Os dois autores não são regidos por “influências”, na realidade interpretam a seu modo o texto “interpretado”, e como “interpretantes” atuam sobre ele deslocando e potencializando o seu sentido. A “dobradura” ganha novos contornos.

Se a etimologia da palavra “interpretar” tem como correlata o sentido da “tradução”, compreende-se que há a passagem de um significado de um idioma ao outro e, mais que isto, é transmitido e transformado de uma realidade histórica à outra. Walter Benjamin em A tarefa do

tradutor considera que a “tradução” autoriza o texto original a alcançar a sua expansão e a sua renovação constante. A “tradução” almeja uma linguagem pura e verdadeira, capaz de ser compreendida universalmente (que possa ser reconhecida do mesmo modo nos diferentes idiomas), mas ao buscar este sentido puro, irônica e paradoxalmente, afasta-se de seu intento, posto que as palavras que cria e encontra para formular um sentido próximo ao original, a “intenção do entendido”, amplia, dá vida nova e dinamiza a linguagem. O original é recriado ao ser traduzido, concedendo assim a ampliação do idioma. Tanto o original quanto o traduzido tornam-se fontes que incessantemente se expandem, dando origem a novas palavras e sentidos com a finalidade de alcançar um significado único, o que, em última análise, jamais é possível. exemplo “intérprete”, porque o “interpretante” carrega a significação do agente que interpreta ou traduz, conforme expomos. Já o “intérprete” pode soar um tanto vago e remissivo à repetição do que já está estabelecido e, portanto, como se não produzisse algo novo. No entanto, através da professora Cibele Saliva Rizek, que esteve presente na banca de qualificação desse trabalho, foi dito que o termo “interpretante” é empregado também por Pierce. Podemos verificar que a acepção do termo se aproxima às nossas investigações. Pierce, contudo, atribui o termo “interpretante” muito mais ao signo interpretado propriamente dito, o qual pode adquirir muitos significados, enquanto nós atribuímos o mesmo termo a partir de uma reciprocidade e simultaneidade entre o agente que interpreta, o ato (criativo e inovador) de interpretar e o signo interpretado, rompendo com as fronteiras entre sujeito e objeto, significante e significado, tornando-os um mesmo e único elemento. De qualquer maneira, esta pequena diferença não representa uma drástica oposição, de modo que as intenções parecem ser similares, ou seja, a de apresentar a constante interpretação do signo. Segundo Pierce: “Signo ou Representamen é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com

[...] A tradução serve pois para pôr em relevo a íntima relação que guardam os idiomas entre si. Não pode revelar nem criar por si mesma esta relação íntima, mas sim pode representá-la, realizando-a em uma forma embrionária e intensiva. E precisamente esta representação de um feito indicado mediante à ponderação, que é o germe de sua criação, constitui uma forma de representação muito particular que apenas aparece fora do âmbito da vida idiomática, pois esta encontra nas analogias e nos signos outros meios de expressão distintos do intensivo, ou seja, a realização prévia e alusiva. Mas este vínculo imaginado e íntimo entre as línguas é o que traz consigo uma convergência particular. Funda-se o feito de que as línguas não são estranhas entre si, senão a priori, e precedendo de todas as relações históricas, mantêm certa semelhança na forma de dizer o que se propõem. [...].

[...] Pois assim como o tom e significação das grandes obras literárias se modificam por completo com o passo dos séculos, também evolui a língua materna do tradutor. É mais: enquanto a palavra do escritor sobrevive no seu idioma, a melhor tradução está destinada a diluir-se uma e outra vez no desenvolvimento de sua própria língua e a perecer como conseqüência desta evolução [...]. 60

É preciso ampliar esta questão ao considerar não apenas a escrita do texto original como fonte a ser traduzida, mas também os elementos teóricos nele presentes. Quando lido, o texto pode ser teoricamente ressignificado pelo “interpretante” e, portanto, torna-se um palimpsesto 61 nas palavras de Sandra Pesavento. 62 Os elementos teóricos do original são capturados e

transformados em algo próprio ao leitor, ao mesmo tempo em que iluminam e são iluminados pela realidade em que vive. Eles adquirem novo corpo, articulam-se e dialogam com outros referenciais, culminando finalmente em novas visões para a observação dos fenômenos humanos. Interpretãîo - e não a “influência” - é o que corresponde à “galinha dos ovos de ouro” da originalidade e criatividade de pensadores como Benjamin e SBH, os quais foram

referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen”. (Charles Sanders Pierce. Semiótica e Filosofia. São Paulo, Cultrix, 1972. p. 46).

60 Walter Benjamin. “La tarea del traductor”. in: Angelus Novus. Barcelona, Edhasa, 1971, pp.131-3. (tradução nossa).

61 O sentido do palimpsesto refere-se a uma antiga técnica, na qual o texto era raspado do papiro ou pergaminho com a finalidade de ser utilizado novamente para outra escrita.

62 Sandra Jabaty Pesavento. “Cartografias do Tempo: palimpsestos na escrita da história”. in: Um historiador nas Fronteiras. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2005, pp. 17- 79.

demasiadamente considerados como introdutores de novos marcos teóricos e de reflexão inovadora, isto é, expressam a “história a contrapelo”. 63

Entretanto, os comentadores que tratam como “influências” as afinidades que incidem sobre o pensamento de SBH, tendem muitas vezes à afirmação categórica de que há uma “influência” muito mais importante e preponderante se comparada com as demais ou realizam suaves atenuações quanto à primazia de uma determinada convergência teórica, com o objetivo de sempre demonstrar a sua superioridade. É freqüente também apontarem um uso indiscriminado de procedimentos metodológicos, como se estes fossem empregados pelo autor sem que ele introduzisse adequações ou realizasse profundas ressignificações a partir de sua característica criatividade como estudioso das ciências humanas.

Sabemos, entretanto, que SBH recusou-se à mera aplicação de referenciais teóricos em seus estudos. Na realidade, buscou dialogar com eles introduzindo idéias próprias, caracterizou- se por interpretar ou “traduzir”, ou seja, ressignificá-los de acordo com as peculiaridades que envolvem os fenômenos sociais brasileiros.

O célebre comentário de Antonio Candido incorporado à edição de 1967 de Raízes do

Brasil – no prefácio intitulado “O significado de Raízes do Brasil” -, deu origem ao intenso debate acerca das “influências” sobre o pensamento de SBH, ainda que o comentador não aplique o referido termo “influência”. A partir de seu comentário, considerado por muitos inseparável da obra, é originada a mais recorrente e difundida versão interpretativa do livro, primeiramente devido à exposição que faz do estilo teórico digressivo, parcimonioso e despreocupado que lembra Georg Simmel; segundo porque associa o seu pensamento à

utilização de tipos ideais weberianos com a dialética ao modo hegeliano, o que ficou conhecido como “dialética dos contrários”. De acordo com as interpretações que são feitas de seus comentários sobre SBH, Candido teria também aproximado SBH da filosofia “compreensiva” alemã, conforme veremos nas próximas páginas.

Raízes do Brasil é construído sobre uma admirável metodologia dos contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana. Em vários níveis e tipos do real, nós vemos o pensamento do autor se construir pela exploração de conceitos polares. O esclarecimento não decorre da opção prática ou teórica por um deles, como em Sarmiento ou Euclides da Cunha; mas pelo jogo dialético entre ambos. A visão de um determinado aspecto da realidade histórica é obtida, no sentido forte do termo, pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro, ambos se interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento. Nesse processo, Sérgio Buarque de Holanda

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