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A presente seção tem como objetivo evidenciar como a pessoa com deficiência que teve seus direitos violados pelo Estado brasileiro pode recorrer às instâncias internacionais. Inicia-se a investigação sobre qual seria o Tribunal competente para aplicar a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Considerando que se trata de um instrumento pertencente ao sistema global de proteção dos direitos humanos, analisa-se a possibilidade da competência da Corte Internacional de Justiça. Nessa esteira, apresentam-se os modos pelos quais os Estados consentem com a sua jurisdição, bem como a sua atuação no campo dos direitos humanos. Para então, averiguar se o acesso à CIJ seria um mecanismo eficiente na promoção dos direitos da pessoa com deficiência.

A seguir, evidencia-se como a defesa desse grupo vulnerável ocorre nos sistemas regionais, buscando compreender se a garantia dos direitos assegurados na Convenção de Nova York (2006) pode ser promovida no âmbito dessa jurisdição, ainda que não seja pela sua aplicação direta. Nesse sentido, elabora-se a hipótese de que é possível interpretar os instrumentos jurídicos regionais à luz da Convenção da ONU para efetivar o novo paradigma sobre deficiência introduzido por esta.

Ademais, apresenta-se o caso Damião Ximenes Lopes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por violações aos direitos de um paciente com transtorno mental. Com esse julgado, evidencia-se a postura do Brasil em face das decisões da Corte, verificando o seu grau de efetividade para satisfazer a demanda por justiça das vítimas e transformar a realidade social interna.

§ 1. A ausência de cláusula convencional de jurisdição obrigatória na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.

O sistema jurídico internacional tem um papel relevante na proteção dos direitos humanos, pois além de promover a reparação às vítimas, fixando obrigações para os Estados Partes; permite, através de um procedimento imparcial, que o Estado apresente suas justificativas para as supostas violações. Nesse contexto, a efetividade desses tratados pode ser facilitada a partir da existência de um órgão internacional autorizado a desempenhar essa função.

Sob essa perspectiva, a proteção dos direitos humanos ocorre em dois âmbitos distintos de aplicação: o sistema Global, de caráter universal, centrado na Organização das Nações Unidas e suas agências especializadas; e os sistemas regionais como o Africano, Europeu e Interamericano, por meio de seus órgãos e instrumentos normativos.514Ressalte-se que são sistemas complementares, na medida em que o plano global contém um parâmetro normativo mínimo, enquanto os instrumentos regionais consideram as diferenças peculiares de uma mesma região e adicionam novos direitos e aperfeiçoam outros. 515

Sublinhe-se que os órgãos responsáveis pelo contencioso judicial no âmbito das Nações Unidas são a Corte Internacional de Justiça, os Tribunais ad hoc para a ex Iugoslávia e Ruanda (criados por resolução do Conselho de Segurança da ONU) e o Tribunal Penal Internacional. Em face dessa sistemática, constata-se que no sistema Global a justicialização operou-se na esfera penal, alcançando os indivíduos autores dos crimes internacionais. Enquanto nos sistemas regionais, a justicialização efetivou-se na esfera civil, mediante a atuação das Cortes Europeia, Interamericana e Africana, responsabilizando os Estados perpetradores de violações aos direitos humanos. 516

Destarte, o sistema global atua, principalmente, no sentido de prevenir conflitos internos através de mecanismos de intervenção política, que visam ao fortalecimento das instituições nacionais para solucionar questões relacionadas aos direitos humanos. Enquanto os sistemas regionais comumente decidem controvérsias que não tiveram solução no plano

514 GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa; LIMA JUNIOR, Jayme Benvenuto. A proteção dos Direitos da

Pessoa com deficiência na Jurisprudência da Corte Interamericana e da Corte Europeia de Direitos Humanos. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 2, p. 463-475.

515PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 10 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 245.

516 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas

das jurisdições domésticas dos Estados, representando um meio jurisdicional internacional de solução de conflitos.517

Destaque-se que o sistema jurídico internacional tem uma estrutura de coordenação, em que o próprio sujeito regrado, o Estado, sempre e necessariamente, participa da criação das regras, da sua fiscalização, modificação e da sanção aos infratores.518Essa coordenação, no mais das vezes, é realizada por organizações intergovernamentais com personalidade jurídica própria e com o objetivo de realizar os fins comuns.519

Nesse contexto, surgem organizações com feições de jurisdição, cujas bases encontram-se nas convenções, acordos e instrumentos internacionais respectivos, e seu exercício é regulamentado por atos interna corporis (regulamentos).520 No sistema de proteção dos direitos humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos foi criada pela Convenção Europeia de Direitos Humanos em 1950, tratado elaborado sob a tutela do Conselho da Europa; A Corte Interamericana de Direitos Humanos é órgão da Convenção Americana de Direitos Humanos (1978); e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, por sua vez, foi instituída pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.521

Ademais, o próprio tribunal estabelece, dentro dos parâmetros do instrumento que o criou, se ele é ou não competente para julgar determinados casos, o que se denominou de princípio da competénce de la competénce.522 Um exemplo da aplicação desse princípio pode ser encontrado no parecer consultivo n.1/82 de 24 de setembro de 1982, da Corte Interamericana, no qual esta declarou que sua competência consultiva abrange os diversos tratados internacionais não necessariamente entre Estados americanos, mas aqueles adotados para proteger as pessoas da região americana.523

Como a Convenção de Nova York (2006) é um tratado do sistema global de direitos humanos, investiga-se a possibilidade da competência para sua aplicação ser atribuída à Corte

517 GONÇALVES e LIMA JUNIOR, op ci, p. 463-475.

518 FINKELSTEIN, Cláudio. Hierarquia das normas do Direito Internacional: jus cogens e

metaconstitucionalismo. São Paulo: Saraiva, 2013.p. 155.

519 TRINDADE, Antonio Augusto Cancado. Direito das organizações internacionais. 4 ed. Belo Horizonte:

Del Rey, 2009. p. 107.

520 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos, p. 45.

521 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 112-

115.

522 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Dialogando na multiplicação: uma aproximação. Revista de Direito

Internacional (Brazilian Journal of International Law), v. 9, n. 2, 2012. Disponível em:<https://www.rdi.uniceub.br/rdi/article/view/1851> Acesso em: 18 abril. 2017. p.3.

Em 1953, por exemplo, em uma influente opinião consultiva, a Corte Internacional de Justiça afirmou o princípio, ao estabelecer que controvérsias sobre a competência do Tribunal Administrativo das Nações Unidas para julgar um caso devem ser resolvidas pelo próprio Tribunal Administrativo. (Galindo, op cit, p. 3)

523 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

Internacional de Justiça. Destaque-se que em razão do respeito à soberania dos Estados decorrem duas regras de acesso aos Tribunais Internacionais: a necessidade de consentimento estatal para se submeter à jurisdição internacional e o caráter subsidiário desta, só acionada após o esgotamento dos recursos internos. Nesse âmbito, apresentam-se as modalidades de consentimento para atribuição de competência à CIJ, a fim de verificar se ela poderia ser responsável pela aplicação da Convenção de Nova York (2006).

No que concerne à competência material, disposta no art. 36 (1) do Estatuto da Corte, esta abrange todos os assuntos previstos na Carta das Nações Unidas e nos tratados e convenções em vigor, além de todas as questões que as partes desejem submeter a sua apreciação. Trata-se, portanto, de uma jurisdição extremamente ampla, podendo incluir qualquer questão relativa ao Direito Internacional.524

Ressalte-se que a Corte está aberta a todos os Estados Partes do seu Estatuto, art. 35 (1), e os membros das Nações Unidas são ipso facto partes no referido documento, conforme art. 93 da Carta das Nações Unidas.525 Contudo, os Estados não se submetem automaticamente à jurisdição do Tribunal em consequência de terem assinado o seu ato constitutivo. Para tanto, é exigida uma manifestação posterior do consentimento, regra da prática internacional sobre a resolução de litígios corolário da igualdade soberana dos Estados.526

A partir da interpretação dos dispositivos 36 (1) e 36 (2) do Estatuto da CIJ, a doutrina depreende que são três as modalidades de concessão do consentimento: acordo especial, declaração unilateral e cláusula convencional. O acordo especial seria uma anuência concedida pelos Estados, que decidem de comum acordo submeter à CIJ um litígio já instaurado, ou aquele que eventualmente vier a existir. Observe-se que não é especificada a forma desse acordo, podendo este decorrer de um ato conjunto dos Estados ou, simplesmente, de atos sucessivos de cada um. O que acontece nos casos em que o Estado autor aceitou a jurisdição através de um requerimento unilateral, seguido de um ato distinto de consentimento

524 Art. 36.2: (...) a jurisdição da Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tenham por objeto: a) a

interpretação de um tratado; b) qualquer ponto de Direito Internacional; c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria a violação de um compromisso internacional; d) a natureza ou a extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional.

525 O artigo 93 n. 2 da Carta das Nações Unidas estabelece que o Estado que não seja membro das Nações

Unidas poderá tornar-se parte no Estatuto do Tribunal em condições que serão determinadas, em cada caso, pela Assembleia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança.

526 BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. 4 ed. Oxford University Press. Lisboa:

da outra parte. Como evidenciado, o acordo pode ser informal, inferido de uma conduta ou formalizado, desde que o consentimento seja fidedigno e não apenas aparente.527

A Declaração unilateral, também denominada de “cláusula facultativa de reconhecimento de jurisdição obrigatória”, consiste na aceitação unilateral por um Estado da competência obrigatória da CIJ para certas matérias. O caráter facultativo decorre da opção do Estado por vincular-se à Corte, podendo, inclusive, estabelecer prazo determinado, mitigar o alcance da jurisdição através de reservas e desvincular-se de forma discricionária. Ademais, ao emitir uma declaração unilateral, o Estado pode requerer o aceite da mesma obrigação, sob condição de reciprocidade, de outros Estados.528

Por fim, quando o art. 36 (1) declara a competência da CIJ para "todas as questões especialmente previstas (...) nos tratados e Convenções em vigor”, abre-se a possibilidade dos tratados internacionais incluírem em seu texto uma cláusula direcionando à Corte a resolução dos litígios envolvendo a sua temática. Esse consentimento pode ser descrito como obrigatório, na medida em que a anuência é concedida antes do aparecimento do litígio.529

Exemplos de tratados que apresentam a cláusula convencional de jurisdição obrigatória são o Estatuto dos Refugiados, de 28 de julho de 1915; a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 21 de dezembro de 1965.

Ressalte-se que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência não apresenta dispositivo nesse sentido, permanecendo silente em relação ao Tribunal Internacional competente para aplicá-la. Todavia, como observado, a cláusula convencional é apenas uma das modalidades de instituição da competência da CIJ. Portanto, nada impede que os Estados Partes na Convenção adotem outro procedimento, como a declaração unilateral ou o acordo especial, para atribuir à Corte Internacional de Justiça competência para dirimir litígios provenientes da aplicação e interpretação desse tratado.

Embora exista essa possibilidade, é imprescindível destacar que essa Corte tem um modesto papel na aferição da responsabilidade internacional dos Estados por violação de direitos humanos. A justificativa para isso encontra-se em dois aspectos do Estatuto da Corte. O primeiro deles diz respeito à legitimidade ativa e passiva para participar dos processos ser atribuída apenas aos Estados, conforme o art. 34(1). Fator que limita, sobremaneira, a

527 Ibidem, p. 755

A título de ilustração, vale citar o caso do Canal de Corfu, no qual após o Reino Unido ter apresentado uma petição inicial unilateral, a Albânia aceitou a jurisdição em uma comunicação oficial dirigida ao Tribunal. (BROWNLIE, op cit, p. 755)

528CARREAU e BICHARA, op cit, p. 764. 529 BROWNLIE, op cit, p. 748.

proteção judicial dos direitos humanos, pois para esta é imprescindível a capacidade postulatória do indivíduo para litigar contra o próprio Estado da sua nacionalidade. 530

Sublinhe-se que a CIJ apresenta um mecanismo rigidamente interestatal, excluindo- se até mesmo a participação das organizações internacionais.531Embora seja possível pela via diplomática, um indivíduo lograr submeter à Corte um pleito relativo ao dano sofrido em razão da ação de um Estado estrangeiro, isso só será viável se o Estado de sua nacionalidade assumir a causa.532

A artificialidade do caráter exclusivamente interestatal do contencioso perante a CIJ é claramente revelada pela própria natureza de determinados casos, visto que, em muitos deles, os problemas submetidos ao conhecimento da Corte requerem desta um raciocínio que transcende a dimensão dos interesses estatais. Assim, o fato de o mecanismo ser acessível apenas para os Estados, inadequado nos dias de hoje, não significa que as fundamentações das sentenças do Tribunal considerem apenas os Estados e seus interesses.533

Nesse sentido, a Corte Internacional de Justiça já fez varias contribuições à proteção dos direitos humanos, ao mencionar a responsabilidade do Estado por violação destes em vários casos concretos: No litígio sobre o Estreito de Corfu, primeiro contencioso da Corte, ficou estabelecido que a Albânia era obrigada a notificar aos navios a existência de minas em águas territoriais albanesas, obrigação essa derivada dos princípios dos direitos humanos; no Caso Namíbia (1970), a Corte afirmou que as cláusulas sobre direitos humanos da Carta das Nações Unidas contém obrigações legais; no litígio Reféns de Teerã (1980), considerou-se que a violação das regras e princípios da Declaração Universal de Direitos Humanos constitui violação de Direito Internacional Geral; no contencioso Barcelona Traction (1970), consolidou-se o entendimento de que a ofensa aos direitos humanos constitui violação de obrigações erga omnes.534

Como evidenciado, não é admissível mais dirimir uma demanda internacional, mesmo restrita aos Estados, e ignorar a existência de seres humanos envolvidos. Afinal, os indivíduos compõem o Estado na sua dimensão subjetiva, não podendo qualquer Tribunal Internacional negligenciar os possíveis impactos de suas decisões em relação às normas cogentes de proteção dos direitos humanos. 535

530 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 128. 531TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos, p .21-22.

532 PELLEGRINO, Carlos Roberto. Estrutura normativa das relações internacionais. Rio de Janeiro: Forense,

2008. p. 346.

533 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos, p. 47. 534 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, 104-111.

Sob esse prisma, a força imperativa de tais direitos permitiria qualquer Estado terceiro denunciar outro Estado por violações de direitos humanos, ainda que não tivesse qualquer parte no litígio. Essa tese pode ser defendida tomando como pressuposto o conceito de obrigação erga omnes. Esta constitui norma imperativas que contém valores essenciais da Comunidade Internacional e que, por conseguinte, se impõe a cada Estado, não sendo-lhe facultado, enquanto autoridade internacional, o direito de violar normas imperativas e sequer de aquiescer com violações por parte de outrem. 536

Destaque-se que normas de jus cogens e erga omnes são espécies do gênero normas imperativas, mas não são categorias estanques. Todas as normas de jus cogens são consideradas obrigações erga omnes, mas o inverso não é verdadeiro. O conceito de jus cogens implica o reconhecimento da superioridade do direito material e as obrigações erga omnes significam uma qualidade de implementação do direito material, ou seja, todo Estado tem interesse no cumprimento dessa norma. Consagra-se, assim, o interesse de terceiros Estados em vê-las observadas pelos demais, o que se contrapõe ao bilateralismo das obrigações internacionais, nas quais o Estado violador responde somente em face do Estado vítima.537

No caso Barcelona Traction (1970), a CIJ estabeleceu quais seriam os exemplos de obrigação erga omnes vigentes à época. Para a Corte, essas obrigações nascem dos atos de agressão, genocídio, violações dos princípios e regras referentes aos direitos básicos da pessoa humana tais como a discriminação racial e a escravidão. Dessa forma, os instrumentos internacionais de caráter universal de proteção dos direitos humanos foram indicados como uma das fontes dessa espécie de obrigação.538

Por outro viés, a norma de jus cogens, conforme art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, é definida como “norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.” Esse conceito restringe o modelo voluntarista- positivista de soberania estatal que se consagrou a partir da Paz de Westfália, pois deriva da aceitação por toda a Comunidade Internacional de princípios que superam a vontade do Estado.539

536 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 55. 537 Ibidem, p.57.

538 Ibidem, p. 68.

Essa superioridade material reside no fato das normas de jus cogens exprimirem valores éticos universais consagrados conforme as concepções políticas, éticas, filosóficas e ideológicas da época. Portanto, trata-se de um conceito em evolução e difícil de ser delimitado com exatidão, sobretudo, devido às conseqüências revolucionárias que advém desse reconhecimento, como a anulação de tratados com ele conflitantes.540

Destarte, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 quedou silente quanto ao rol de normas cogentes. A doutrina, por sua vez, enumera como normas dessa espécie a proibição do emprego da força nas relações internacionais, contrariamente aos princípios da Carta da ONU; a interdição do tráfico de seres humanos, a pirataria, o genocídio os princípios humanitários colocados pelas quatro Convenções de Genebra de 1949; bem como atos qualificados como crimes contra humanidade, tipificados no artigo 7 do Estatuto da Corte Penal Internacional, dentre eles a escravidão, deportação de populações civis, tortura, estupro e outros.541

Destarte, embora exista a eventual possibilidade da CIJ se tornar um Tribunal de Direitos Humanos, com base na defesa, pelos Estados, das normas de jus cogens e erga omnes de forma multilateral. É preciso considerar que para além das dificuldades conceituais relacionadas a essas espécies normativas, o fato do acesso à Corte ser restrito aos Estados compromete a efetividade da tutela dos direitos humanos, visto que esta depende irremediavelmente da capacidade postulatória dos indivíduos e organismos internacionais independentes, porquanto, o Estado sempre pode sacrificar os direitos individuais em prol dos seus interesses geopolíticos. 542

A definição requer que a norma seja aceita e reconhecida pela comunidade internacional como não derrogável, não sendo necessário que todos os Estados comunguem dessa opinião: o que é necessário é que ao menos a vasta maioria dos Estados reconheça a norma como peremptória. Como resultado, a abordagem puramente consensualista do direito internacional é parcialmente abandonada, uma vez que a maioria qualificada dos Estados pode vincular a minoria. (FINKLTEIN, op cit, p. 184).

540 RODAS, João Grandino. Jus Cogens em Direito Internacional. Revista da faculdade de direito da

universidade de São Paulo, v. 69, n. 2, 1974. p. 128. Disponível em < http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66736/69346> Acesso em: 2 jan. 2017.

541 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 103.

542 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 111

Exemplo da preponderância dos interesses dos Estados sob a proteção dos direitos humanos pode ser visto no caso Breard da CIJ. O caso foi proposto pelo Paraguai contra os Estados Unidos, que teriam desrespeitado a Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Uma vez que, em 1992, quando as autoridades policiais da Virgínia prenderam o cidadão paraguaio Ángel Francisco Breard, sem notificá-lo do direito à assistência consular, ele foi preso, julgado e condenado à morte. Em 9 de Abril de 1999, a Corte acatou o pedido de medida cautelar pleiteado pelo Paraguai e ordenou a suspensão da execução da pena capital pelos Estados Unidos. O Estado da Virgínia, entretanto, não acatou tal ordem e executou o senhor Breard no dia 14 de abril de 1998. Após a execução, o caso foi arquivado a pedido do Paraguai, que aparentemente, não desejou continuar processando os Estados Unidos. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case conserning the Vienna

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