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CAPÍTULO 1 – A luta por reconhecimento e a construção do 20 de Novembro – Dia da

1.2. A noção de reconhecimento: contribuições teóricas para uma ação política

1.2.4. Achille Mbembe: o corpo e o sujeito na necropolítica

Achille Mbembe, num sentido próximo ao da/os autora/es abordada/os acima, ainda que não toque diretamente a noção de identidade, traz contribuições para a compreensão do valor intrínseco atribuído a alguns indivíduos, diferentes de outros, a partir da noção de “necropolítica”. Seu estudo também pode contribuir com a ideia de reconhecimento na contemporaneidade. Ele promove uma abordagem a partir da noção de “biopoder” de Michel Foucault, tema que está relacionado com o domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle. O pensador questiona, no espectro político, que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano, como estes se inscrevem na ordem do poder, se considerarmos esta política como uma forma de guerra (Mbembe, 2018).

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utiliza a noção de biopoder justificando que seu uso funciona a partir da divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer. Este poder estabelece um controle do campo biológico que “pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma censura biológica entre uns e outros”, que pode ser denominado de “racismo”. A raça ou o racismo, assim, tem função proeminente para o exercício do biopoder. Na sua opinião, mais do que o pensamento de classe, “a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou a dominação a ser exercida sobre eles”. A “raça”, assim, junto ao pensamento de classe, foi largamente utilizada para a alimentação dos lucros no capitalismo. Por isso, em termos foucaultianos, o racismo seria uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, que é um direito soberano de matar: “na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado”.

Tais funções são exercidas frequentemente mediante tecnologias de assassinato, constantemente inovadas, que não visam apenas civilizar as maneiras de matar, mas também de eliminar grande número de vítimas em curto espaço de tempo. O autor define a escravização como uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica, que ele denomina como “terror moderno”. Isso porque a condição do escravizado resulta de uma tripla perda: 1) do seu “lar”, 2) dos direitos sobre seu corpo e 3) do seu estatuto político – isso equivaleria, portanto, a uma dominação absoluta, a uma alienação de nascença e a uma morte social. Por isso que se pode inferir que a vida de um escravizado é em muitos aspectos como uma “morte em vida”. Se um indivíduo possui a liberdade e a propriedade de outra pessoa, ele exerce poder sobre a vida deste outro. É no espaço colonial que, conforme Mbembe (2018, p. 35), “os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’”.

Retomando a ideia de valor atribuído ao humano, Mbembe (2018, p. 65) escreve que “o corpo como tal não é apenas um objeto de proteção contra o perigo e a morte. O corpo em si não tem poder nem valor. O poder e o valor do corpo resultam de um processo de abstração com base no desejo de eternidade”. No entanto, é na morte que o futuro é colapsado no presente. É a partir da criação da noção de necropolítica e necropoder que o autor procura

dar conta das várias maneiras pelas quais, no mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’ (Mbembe, 2018, p. 71).

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Se relacionadas com as noções colocadas por Butler, as ideias de Mbembe contribuem para a compreensão da condição dos indivíduos e seus grupos em diferentes lugares. Embora trabalhem em contextos pós-coloniais e/ou de guerras, onde algumas interpretações necessitam ser levadas ao extremo, em função das condições aplicadas, elas permitem observar que pontos dificultam o reconhecimento de algumas formas de vida na contemporaneidade. Por exemplo, a supressão da liberdade e a posse a qual indivíduos são submetidos em diferentes contextos de escravização, como o que Mbembe aborda, provocam tão profundas alterações na forma de viver daqueles indivíduos, que demandam graus elevados de dedicação e investimento para serem superados.

Conforme foi abordado na seção anterior deste Capítulo, o racismo tem imbricações fatais na vida dos que sofrem suas consequências. Na análise de Mbembe, ele está associado ao próprio direito de matar em determinadas sociedades. Utilizando-o como uma forma de provocação, e mesmo que não seja abordado dessa forma no contexto brasileiro, os dados sobre população carcerária e morte de jovens negros no país favorecem uma interpretação no mesmo sentido: alguns grupos são mais passíveis de morrerem nas mãos das forças do Estado e da sociedade e muito por isso são indignos de lamento. A leitura de Mbembe possibilita inferir o quanto o racismo é nocivo para algumas formas de vida, e como o combate a ele se faz absolutamente necessário. Portanto, ele também é um aspecto determinante para a promoção de diferentes formas de reconhecimento em relação aos indivíduos e grupos em tais condições.

O objetivo da pesquisa, em um primeiro momento, neste Capítulo, foi o de apresentar o arcabouço histórico da luta por reconhecimento da população negra no Brasil, através de seus movimentos sociais, e em torno da construção de uma data comemorativa que os representasse no panteão simbólico nacional. Esse tipo de demanda, como se verá adiante, avança apesar dos inúmeros obstáculos que a impossibilitam de se institucionalizar. Num segundo momento, buscou-se abordar aspectos teóricos que contribuem para a compreensão do processo de reconhecimento, e também do não-reconhecimento, na construção dos objetivos e luta apresentados.

Embora inseridos em realidades bastante distintas, países como o Brasil ou outros em desenvolvimento, também tiveram a necessidade de lidar com os desafios na gestão das diferenças, das desigualdades sociais e do racismo. O mito da democracia racial, por exemplo, foi uma estratégia utilizada para reorganizar as tensões em torno das diferenças étnicas e raciais

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no passado, serviu para a época em que foi desenvolvida, e tem implicações profundas nas relações sociais brasileiras até hoje, em termos teóricos e práticos.

O que se coloca no tempo mais recente, portanto, são novos paradigmas associados à “modernidade tardia” (Giddens, 1991) ou à “pós-modernidade” (Hall, 2005). Pode-se destacar o imperativo da globalização e da diáspora, o desmembramento das formas de luta em várias frentes e a constituição das identidades de modo livre e independente. Mesmo os ideais de igualdade e liberdade, que acompanharam fortemente as sociedades ocidentais desde o Iluminismo, pelo menos, estão sendo colocados à prova, quando novas formas de constituição dos sujeitos e dos indivíduos se interpõem (Touraine, 2012). O tema dos direitos humanos também tangencia esses debates (Hunt, 2009).

Também se buscou apresentar um breve recorrido sobre a condição da população negra no país, a partir de dados apresentados, como forma, também, de entender as justificativas do “grupo demandante” para auferir determinado tipo de reconhecimento, para além das formas materiais de sua manifestação. Em tempo, no tangente ao significado de grupo demandante, é importante ter-se em mente que o pertencimento a um grupo ou a uma comunidade implica compartilhar um complexo simbólico-cultural que se aproxima daquilo que se entende por “representações sociais”. Elas servem como marcos de percepção e interpretação da realidade, e também como guias de comportamentos e práticas dos agentes sociais. Assim, elas definem a identidade e a especificidade dos grupos (Giménez, 1997). Tais grupos podem atuar por meio de seus agentes ou mesmo como atores coletivos, como são os movimentos sociais.

Viu-se também o quanto o racismo estrutural é nocivo a determinadas formas de vida e lugares sociais, assim como ideologias que reproduzem desigualdades raciais e sociais favorecem a manutenção de alguns status sociais no seio de uma sociedade.

Para auxiliar na compreensão dessa realidade, lançou-se mão de compreender a noção de reconhecimento. Esta noção foi uma das vias de teorização dos problemas vinculados ao multiculturalismo e da gestão da diversidade, mas também das especificidades. As ideias apresentadas pelos autores aqui estudados permitem pensar outros caminhos para a construção de ações políticas, inclusive as de teor simbólico. O autorreconhecimento, apresentado por Honneth, pode estar bastante presente no pensamento dos indivíduos e seus grupos ao travarem suas lutas por espaço político. O tema da redistribuição, em Fraser, impacta profundamente na eficácia de políticas públicas mais abrangentes. A ideia de valor intrínseco ao humano, em Butler, sugere uma mudança dos enquadramentos e da ótica dos que pensam em formas de debelar injustiças entre as diferenças. A crítica de Mbembe às formas privilegiadas de vida faz

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refletir sobre quais caminhos as sociedades contemporâneas devem tomar para que todos possam viver mais próximos de um regime de equidade – todos esses autores, assim, levantaram questões importantes para a análise dos objetos desta pesquisa.

Outros embates estão inseridos nesses movimentos, alguns mais estratégicos, como a definição de políticas afirmativas ou diferenciadas, que atentam às especificidades de alguns grupos; as estratégias de combate ao racismo; a educação étnico-racial e a educação para a diversidade; as “minorias” e as relações de poder; os espaços de representação política e a capacidade de mobilização; e num quadro mais teórico, a relação entre etnicidade e racialidade. Procurar-se-á compreender como tudo isso se dá num processo de construção da cidadania a todos os sujeitos e quais os princípios de justiça aplicados e ideais.

A ideia de reconhecimento, que está presente no debate racial/multicultural, também auxilia questionar determinados caminhos adotados. Acredita-se que ela pode contribuir para a compreensão do contexto brasileiro da gestão das diferenças. A ideia de que o Brasil é uma sociedade plural isenta de conflitos não converge com a realidade. Os próximos dois capítulos abordarão, conjuntamente com a análise dos objetos desta pesquisa, algumas das políticas promovidas pelo Estado nos últimos anos e o cenário dos movimentos por reconhecimento, tanto com ênfases pluralistas quanto específicas. Desse modo, o estudo da construção desta data – o feriado do Dia da Consciência Negra em Porto Alegre –, suscita muitos dos elementos até aqui trabalhados permitindo uma análise histórica desses temas no tempo recente, num quadro de ampliação, até então, das formas de reconhecimento, e que estão hoje sendo ameaçadas.

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