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CAPÍTULO 1 – A luta por reconhecimento e a construção do 20 de Novembro – Dia da

1.2. A noção de reconhecimento: contribuições teóricas para uma ação política

1.2.2. Honneth e Fraser: o reconhecimento e a redistribuição

Axel Honneth e Nancy Fraser encontram-se entre os principais pensadores do reconhecimento nas décadas recentes. Eles compartilham o fato de que seus trabalhos seminais fundaram-se na crítica ao modelo tayloriano da identidade e da diferença. Também realizaram debates entre si (Pinto, 2008).

Taylor tinha como objetivo final de sua filosofia uma concepção de “boa vida” (Mattos, 2007, p. 42), ou seja, “uma vida que vale a pena ser vivida”. Honneth partilhou dessa mesma premissa. Mas o objetivo central de suas discussões – e também nas de Fraser –, se direciona para um modelo onde todas as ações e resultados giram em torno de um “ideal de justiça”. Por isso se torna interessante observar alguns pontos de divergência desses autores que fundaram

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sua crítica em relação a Taylor. Eles se tornam relevantes pois levantam algumas problemáticas e limites dos modelos multiculturalistas.

Nancy Fraser (2006) apontou que as demandas por “reconhecimento da diferença” organizaram as lutas pelo reconhecimento em torno de questões como nacionalidade, “raça”, etnicidade, gênero e sexualidade. Em sua visão, a identidade de grupo suplantaria o interesse de classe como meio de mobilização política. Nesse caso, é a cultura que explica as injustiças, em vez da exploração. Assim, o reconhecimento cultural ganharia mais força do que a redistribuição socioeconômica. Esses modelos estão normalmente associados ao multiculturalismo, que propõe compensar o desrespeito por meio da revalorização das identidades grupais. O que a autora defende é o desenvolvimento de uma teoria crítica do reconhecimento, que selecione as versões da política cultural da diferença que são coerentes com a política social da igualdade. Por isso que a redistribuição (econômica) e o reconhecimento são elementares para um projeto de justiça. Essas duas formas deveriam sustentar-se mutuamente (Fraser, 2006).

O ideal de justiça presente em sua teoria rompe com o princípio ético da “boa vida”, como aparece em Taylor e Honneth. É aqui onde reside uma das principais críticas de Fraser àquele autor, por ele partir de uma premissa ética, ao entender o não-reconhecimento em termos de uma subjetividade prejudicada, sendo esse um impedimento ao alcance da “boa vida”. Ao propor o modelo de status, Fraser defende que se compreenda como uma injustiça que a alguns sujeitos e grupos seja negado o direito à condição de parceiros integrais na interação social, em função de padrões institucionalizados de valoração cultural. Assim, advoga-se a favor de uma paridade de participação, que não um limitador (Fraser, 2007).

O modelo de status defendido por Fraser pode ser tomado como um contraponto ao modelo da identidade cultural. Para a autora, entender o não-reconhecimento como um dano à identidade do indivíduo enfatiza a estrutura psíquica (como contraposição a Honneth [2007]) em detrimento das interações sociais. Essa situação se aprofundaria quando a identidade do grupo se torna o objeto do reconhecimento. Fraser parece destacar o papel do indivíduo nessa interação, ao criticar que o modelo da identidade circunscreveria o sujeito à identidade do grupo, limitando sua complexidade. Nesses casos, a própria cultura pareceria ser compreendida de forma não dinâmica, com as fronteiras muito delimitadas. O resultado disso, ao invés do

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fomento à interação, seria o enclausuramento e o separatismo dos grupos, favorecendo a construção de essencialismos ligados aos grupos identitários (Fraser, 2007).13

Em relação à esta ideia proposta pela autora, e que será retomada ao longo deste trabalho, boa parte das conquistas em torno do reconhecimento são obtidas em torno da organização dos grupos, muito a partir de seus critérios identitários, mas não só, pois favorecem movimentos em outros âmbitos, como os socioeconômicos, por exemplo. Se o papel do indivíduo é de extrema relevância nas lutas políticas, sua organização em torno de formas coletivas também é determinante para os processos de transformação social, levando em conta aqueles limites.

Pode-se entender essa noção colocada pela autora muito mais como um risco, ou um alerta a situações que podem ocorrer na gestão de políticas focadas na diferença. Porque, mesmo considerando que os grupos identitários estabelecem diferenças ou fronteiras entre si, como forma de se expressarem culturalmente numa sociedade, essa percepção faz parte de um pertencimento ao mundo social (Poutignat; Streiff-Fenart, 1998). Logo adiante, como se verá em Honneth (2007), o processo de autorreconhecimento dos indivíduos (com extensão aos seus grupos), ou também sua percepção de diferenciação em relação aos outros, é um passo importante do próprio processo de reconhecimento social. Ou, como escreveu Laclau (2000), a emancipação, em alguns casos, não depende do colapso das particularidades, mas sim da interação entre elas, sendo que não são incompatíveis com o universal. Nesses casos, um certo “essencialismo” seria positivo no processo emancipatório de alguns grupos.

O modelo de status de Fraser (2007, p. 107) propõe que “o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um grupo, mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na interação social”, como em espaços de decisão e representação. Embora admita que reparar uma injustiça exija algum tipo de reconhecimento, e mesmo o de determinadas particularidades específicas, é mais importante a superação da subordinação em que determinado grupo ou indivíduo se encontre, para que possa participar igualmente numa sociedade. Ainda que não se refira exatamente à identidade, ela percebe que determinadas “coletividades bivalentes” são atravessadas por múltiplos fatores e diferenciadas em virtude da estrutura econômico-política e, paralelamente, pela dimensão cultural valorativa (Fraser, 2006 [1995]). Poderia ser o caso dos negros, das mulheres, dos índios, dos pobres, algumas minorias, entre outros.

13 Deve-se considerar como uma característica dos grupos, muito embora se enclausurem (para usar a expressão

de Fraser) em relação a outros, que eles têm a função de abrigar indivíduos. Além do mais, os essencialismos ligados às identidades dos grupos são quase praxe, podendo por eles ser reconhecidos como fundamentais para sua existência (Barth, 1998 [1969]). Fraser parece sugerir a necessidade de se evitar o isolamento dos grupos dos contextos sociais.

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Ao se considerar aspectos das identidades, é importante destacar que os próprios indivíduos são atravessados por múltiplas delas. Elas também vivem um processo complexo de criação e recriação (Weber, 2006), o que transforma as identidades sociais continuamente. Nesse ponto, pode-se frisar que tanto as identidades como as fronteiras que se estabelecem entre elas não são imutáveis. Fredrik Barth (1998 [1969]) informou que as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato e da interdependência entre os grupos, o que faz parte da interação em um sistema social. Se as identidades se transformam e se alternam constantemente, isso influencia na compreensão da condição dos grupos numa sociedade, seja em seu aspecto cultural-valorativo, seja referente às relações de subordinação.

Apesar disso, Fraser parece apresentar o modelo da identidade como uma transformação a ser superada, já que teria evoluído do modelo socialista, onde as injustiças precisavam ser debeladas pela luta política e pela redistribuição. O debate em torno do reconhecimento colocou as identidades em evidência. Por isso, a condução do multiculturalismo deveria ser questionada afirmando-se novos princípios que integrariam o reconhecimento, mas associado à redistribuição, que tanto Taylor (1994) quanto Honneth (2007) mantêm de certa forma isolados. Os dois aspectos, portanto, devem se dar pela ação política e social.

Ela defende que “a terceira dimensão da justiça é o político” (Fraser, 2009, p. 19), ao reconhecer que distribuição e reconhecimento, ao serem demandados ao Estado, são permeados por poder. Quando diz que eles se tornam critérios políticos, ela associa mais fortemente essa dimensão “à natureza da jurisdição do Estado e das regras de decisão pelas quais ele estrutura as disputas sociais”. O Estado define como as lutas por redistribuição e reconhecimento são conduzidas. Assim, o político tangencia a justiça significativamente por meio da representação.

Nessa breve análise, pode-se perceber que a autora situa o Estado como um dos principais agentes do reconhecimento, o que permite inferir que indivíduos e seus grupos necessitam de espaços em instituições políticas e em outras instâncias de influência e poder a fim de pautarem seus objetivos, que promovam seus interesses e corrijam os déficits do reconhecimento. Esses espaços podem garantir os lugares de fala de minorias, discriminados e excluídos, ao demandarem do Estado providências em relação a suas condições, de modo direto. É importante também pensar esses sujeitos como gestores de ações que dinamizem e melhorem suas condições. Isso significa que o Estado precisaria ser muito mais influenciado pelos demandantes de suas ações.

Para isso, Fraser (2009, p. 17) salientou que “superar a injustiça significa desmantelar os obstáculos institucionalizados que impedem alguns sujeitos de participarem, em condições de

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paridade com os demais, como parceiros integrais da interação social”. Ao defender que as injustiças se fundamentam na má distribuição econômica e no déficit de reconhecimento cultural, ou no rebaixamento de status, ela chama a atenção para o terceiro elemento sugerido para compor as teorias da justiça, que é a representação, por meio da participação de agentes excluídos nas instâncias de poder, destacando um escopo político que reforça o papel do Estado como agente do reconhecimento.

Outro ponto a ser destacado entre as posições de Fraser (2009), podendo ser levado em conta pelos grupos que atuam nessas frentes, é que as formas tradicionais de luta, regionalizadas ou nacionais, ganharam características mais amplas, rompendo seus limites, ao serem influenciadas por questões globais. Os movimentos de mulheres, de camponeses, de trabalhadores, de minorias étnicas e religiosas, podem adquirir um novo tipo de força num contexto bem mais amplo do que o local. Esse aspecto de cunho político se torna o responsável pela caracterização de uma visão tridimensional das teorias da justiça, que incorporam 1) a dimensão da representação aos 2) paradigmas da redistribuição econômica e 3) do reconhecimento.

A proposta de Fraser, além de tencionar a compreensão comum sobre o espectro das ações dos estados e os princípios que balizam a elaboração de políticas em cenários complexos como os multiculturais, não apresenta necessariamente orientações práticas, de como se deveria agir nesses casos, mas possibilita a análise de determinados eventos que poderiam criar dificuldades aos modelos identitários, sugerindo, teoricamente, caminhos transformadores.

Destacar que junto ao reconhecimento valorativo-cultural, a redistribuição e a representação são elementos cruciais na construção de um projeto de justiça e de cidadania, permite complexificar o tema do reconhecimento dando-lhe novos horizontes. A própria autora (Fraser, 2006) defendeu que a necessidade de reformular os projetos multiculturais calcados no reconhecimento da diferença não invalida o significado de suas experiências, nem mesmo de sua continuidade enquanto projeto político, mas teoriza sobre uma evolução propositiva para o tema.

O teórico alemão Axel Honneth é outro autor que entrou no debate acerca do reconhecimento. Sua crítica a Taylor se concentra no modelo sócio-histórico utilizado pelo autor canadense, que enxerga as lutas por reconhecimento nos últimos séculos pautadas pela redistribuição econômica, mas que se transformaram no final do século XX em lutas identitárias. O que parece estranho a Honneth (2007) é que os movimentos de mulheres, de

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afroamericanos durante a escravidão, de trabalhadores e até mesmo dos nacionalismos europeus nos séculos XIX e XX, também podiam ser definidos como movimentos calcados em identidade(s). Assim, Taylor, e de certa forma Fraser, estariam equivocados em acatar uma cronologia como essa, que percebe fundamentos morais da discussão em torno do reconhecimento apenas no tempo mais recente, pois a política de identidade não seria algo novo (mesmo as não progressistas).

Esse modelo pautado na identidade e disseminado por Taylor favoreceria uma inclinação da filosofia política contemporânea em relação a uma política do reconhecimento, que reduz o reconhecimento social das pessoas à aceitação cultural de suas formas distintas. Isso se daria por uma desilusão política em relação às formas de redistribuição do Estado de bem-estar social. Nesse caso, solucionar os problemas em torno da degradação e do desrespeito seria uma ideia mais concessiva (Honneth, 2007).

A hipótese que Honneth defende é a de que os novos movimentos sociais alertaram para os significados políticos do desrespeito social e/ou cultural: “como resultado, passa[-se] a perceber que o reconhecimento da dignidade dos indivíduos e grupos forma uma parte vital de nosso conceito de justiça” (2007, p. 80). Essa noção de justiça está calcada num modelo em que os indivíduos se reconheçam reciprocamente.

Os caminhos sugeridos pelo autor para se alcançar esse momento ideal de justiça passam, primeiramente, pelo “autorreconhecimento”. A chegada a esse patamar está condicionada por diversos fatores dentro uma sociedade, desde o 1) encorajamento afetivo nos círculos sociais (autoconfiança), a 2) garantia de direitos e a inclusão social numa ordem legal (autorrespeito), e a possibilidade de uma 3) identificação do indivíduo com seus atributos a partir da solidariedade com relação aos outros membros (autoestima). Três noções são importantes nesse caso e ressaltam a participação de diferentes agentes determinantes para o estabelecimento de uma ordem social: uma ética em relação à sociedade; uma ordem de reconhecimento legal, na qual o Estado pode ser o ator principal; e o amor, baseado na instituição familiar e nas relações interpessoais. Aqui, percebe-se que o tema da redistribuição é tangente para Honneth, mas não um aspecto central do reconhecimento.

Já sua negativa, ou seja, o não-reconhecimento, pode se expressar através de eventos experienciados como “injustiças”, e esse é o momento em que se dá a conexão entre o aspecto moral e o reconhecimento. No caso de grupos que sofrem com essas injustiças dentro de uma sociedade, não apenas a dor física constitui uma injúria moral, mas também a consciência adicional de não ter o seu entendimento reconhecido e aceito.

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Um outro elemento dessa injustiça tem a ver com a negação dos direitos e com a exclusão social, quando os sujeitos são considerados indignos por não terem direitos morais e as responsabilidades de uma pessoa em condições legais dentro de sua comunidade, como algumas minorias em relação à ocupação e desempenho de determinadas funções nelas. A solução para esta forma de injustiça deveria passar pelo reconhecimento recíproco de que os indivíduos são portadores iguais de direitos, por parte dos outros membros da comunidade na qual estão inseridos. Aqui pode-se introduzir o tema da redistribuição, quando alguns fatores determinantes são de natureza material e mesmo de oportunidades objetivas aos membros.

Ao fazer referência à abordagem hegeliana do reconhecimento, Honneth informa que ela estabelece uma ideia audaciosa de que o progresso ético ocorre ao longo de uma série de etapas, onde os padrões de reconhecimento se tornam mais complexos e exigentes, nas quais os sujeitos batalham pela aceitação de reivindicações relativas à sua identidade. O autor destaca que Hegel teria denominado esse processo como “luta por reconhecimento”, que aconteceria em vários domínios, entre os sujeitos.14

Um último elemento dessas formas de injustiça é a depreciação do valor social das formas de autorrealização. É quando os sujeitos não se identificam com seus atributos e realizações específicas, o que prejudica sua autoestima no meio social. Esse é um aspecto profundamente individual e que se estabelece no todo através da diferença. Aqui, o autor fala do princípio da “diferença igualitária” que, como resultado de uma pressão dos sujeitos afetados, poderia ser interpretada como uma forma de reduzir as desigualdades a partir da reafirmação dos direitos concisos às diferenças.

Entre as críticas elaboradas por Nancy Fraser a esse modelo de reconhecimento defendido por Honneth, está a de que ele produz uma psicologização individual ou interpessoal, retirando os equívocos desse debate das relações sociais (Fraser, 2007). Ainda que o autor divirja de Taylor, a sua defesa da necessidade do “autorreconhecimento” retoma uma premissa ética de que o processo de reconhecer-se, portanto, reside primordialmente no sujeito, embora se saiba, por exemplo, que os sujeitos de uma comunidade, inevitavelmente, sofrerão determinação de seus grupos. Sem essa perspectiva do autorreconhecimento, uma política afirmativa, ou de redistribuição, por exemplo, se tornaria inócua se o sujeito destinatário dela não se reconhecer enquanto pertencente àquele grupo alvo. Mesmo que um membro de um grupo resista a se

14 O objetivo não é aprofundar a discussão em torno da filosofia hegeliana do reconhecimento. A noção trazida

por Honneth é extremamente relevante para exemplificar como sujeitos e seus grupos travam batalhas para serem reconhecidos enquanto entes de valor e portadores de direitos, junto ao Estado e à sociedade.

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autorreconhecer como alvo de uma política, tal comportamento não elimina a identidade deste grupo.

O processo de autorreconhecimento que Honneth aborda está calcado na ideia de que há uma hierarquização das atividades que são valiosas e necessárias numa sociedade, daí as noções de autoestima e de reciprocidade. Nessa relação é que as diferenciações se constituiriam, e as injustiças também. Por isso as lutas por reconhecimento seriam lutas pela definição cultural sobre o que torna essas atividades e atribuições relevantes e, por consequência, os papeis desempenhados pelos seus agentes. O ponto central de divergência em relação a Fraser, então, é que inclusive os conflitos em torno da redistribuição “são sempre lutas simbólicas pela legitimidade do dispositivo sociocultural que determina o valor das atividades, atributos e contribuições” (Honneth, 2007, p. 92).