• Nenhum resultado encontrado

Acontecimento discursivo e o jogo com a paráfrase e a polissemia

O acontecimento, tomado como o fato, está na ordem do contexto de atualidade. Para que se verifique a discursividade do acontecimento ele é tomado num espaço de memória. Pêcheux ilustra esta teoria com o enunciado “On a gagné”, dado na vitória do presidente socialista francês François Miterrand, em 10 de maio de 1981. Diante desse trabalho com a atualidade e a memória é que o confronto discursivo se dá “por um imenso trabalho de formulações (retomadas, deslocamentos, inversões, de um lado a outro do campo político) tendendo a prefigurar discursivamente o acontecimento, a dar-lhe forma e figura” (PÊCHEUX, 2002, p.20).

Nesse exemplo, Pêcheux ratifica o conceito de metáfora, que já havia aparecido em textos anteriores, pois ao se deslocar o enunciado “On a gagné” que vem de um campo esportivo (“Ganhamos!”) para um campo político, se instaura o jogo metafórico. Em Análise do Discurso, “o jogo metafórico” – no caso da obra em questão, o jogo que se faz com “On a gagné” – “veio sobredeterminar o acontecimento, sublinhando sua equivocidade” (idem, p.22).

Depois de apresentar as possibilidades léxico-semânticas, Pêcheux mostra em sua análise discursiva do acontecimento, que “On a gagné” é um enunciado-fórmula cuja paráfrase possível é: “A esquerda toma o poder na França” (p.26). O acontecimento discursivo está no fato de que “On a gagné” (“Ganhamos!”) é uma expressão típica pronunciada nos jogos de futebol. A partir do momento que se tem a vitória de um time, os atletas saem pelo campo comemorando a vitória e juntamente com a torcida gritam: Ganhamos! Na ocasião da eleição do presidente francês François Miterrand, os partidários políticos de esquerda saíram às ruas gritando “On a gagné!”. No campo político, o significado desta expressão é outro porque não é tão evidente. O deslocamento do discurso esportivo para o discurso político possibilita a emergência de novos sentidos e por isso tem-se outro discurso. Assim é que as palavras ganham sentido dentro das formações discursivas em que se inserem, como já foi mostrado em tópico anterior.

A partir do exemplo de um acontecimento, o do dia 10 de maio de 1981, a questão teórica que coloco é, pois, a do estatuto das discursividades que trabalham um acontecimento, entrecruzando proposições de aparência logicamente estável, suscetíveis de resposta unívoca (é sim ou não, é x ou y etc.) e formulações irremediavelmente equívocas (PÊCHEUX, 2002, p.28).

Sobre esse estatuto das discursividades é o que trata o livro “Discurso: estrutura ou acontecimento”. As discursividades, ou propriedades do que é discursivo, compreendem reconhecer as diferenças entre enunciados pertencentes a “universos logicamente

estabilizados” e aqueles pertencentes a “universos não-logicamente estabilizados”, cujas formulações são “irremediavelmente equívocas”. Ao tratar do campo científico, Pêcheux reflete sobre a diferença entre disciplinas que, inspiradas em grandes modelos explicativos, cederam ao fetiche neopositivista e estruturalista, mesmo quando seus objetos não cedem, ou sempre escapam à mera descrição. Ele postula que é preciso admitir o quanto há de intepretação no modo como os objetos de diferentes disciplinas são apresentados. Por essa razão, ele afirma que “a história é uma disciplina de interpretação e não uma física de tipo novo” (idem, p.42).

A história é uma disciplina de interpretação porque seu material, seu objeto e sua ferramenta são, ao mesmo tempo, a língua (ou as linguagens), logo, sua “descrição [...] está intrinsecamente exposta ao equívoco” (PÊCHEUX, 2002, p.52).

Tal como a história, a AD é uma disciplina de interpretação, que se assume como tal. Isso não significa ceder nem à facilidade de atribuir ao sujeito epistêmico a responsabilidade pela interpretação, nem atribuí-la a uma estrutura explicativa, anterior e indiferente às condições efetivas de produção e interpretação dos enunciados por parte dos sujeitos.

Uma maneira própria de se trabalhar cientificamente: é como Pêcheux descreve a aventura teórica do discurso. É a interpretação, mas não a interpretação fechada, hermética que encara a língua pela língua apenas. Mas também não é um movimento interpretativo que aceita tudo ou, melhor dizendo, abre para todos os sentidos. Os sentidos podem ser outros, mas também não todos. Explica Pêcheux:

[...] eu sublinharia o extremo interesse de uma aproximação teórica, e de procedimentos, entre as práticas da “análise da linguagem ordinária” (na perspectiva anti-positivista que se pode tirar da obra de Wittgenstein) e as práticas de “leitura” de arranjos discursivo-textuais (oriundas de abordagens estruturais) (PÊCHEUX, 2002, p.49).

Explicando uma possível metodologia em AD, Pêcheux coloca algumas “exigências” para que a análise seja feita por um viés discursivo. A primeira delas diz respeito ao “primado dos gestos de descrição das materialidades discursivas” que deve supor “o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela [a descrição] se instala: o real da língua” que deve admitir “o próprio da língua através do papel do equívoco, da elipse, da falta, etc.”, “e que deve admitir enfim sua equivocidade”, sua “heterogeneidade constitutiva” (2002, p.50).

É por isso que o movimento discursivo da interpretação opera tendendo ora para a

sendo essas operações jamais igualitárias ou totalmente estabilizadas. Sem nomear, assim, nesses termos que aqui se coloca (o da paráfrase e da polissemia), Pêcheux, conceitua que:

O objeto da linguística (o próprio da língua) aparece assim atravessado por uma divisão discursiva entre dois espaços: o da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedagógica do pensamento, e o de transformações do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomados no relançar indefinido das interpretações (PÊCHEUX, 2002, p.51).

A segunda “exigência” é não deixar de levar em consideração numa análise discursiva que “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 2002, p.53). E, para completar, a possibilidade de interpretação abre-se também para a possibilidade da historicidade. É assim que há a “existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes” (PÊCHEUX, 2002, p.54).

Terminando o capítulo de fundamentação teórica da Análise de Discurso é preciso dizer que os estudos discursivos contemplam diversos conceitos que não foram abordados neste trabalho, pois foram escolhidas as categorias discursivas apresentadas no início do capítulo, para que as análises que serão realizadas no último capítulo, sejam ancoradas nesse trajeto aqui traçado. Mostrar quais as formações discursivas que circularam na mídia em determinado período (2013-2015) e compreender o processo discursivo da implantação de livros didáticos: é este o movimento teórico-analítico a ser feito. Para elencar estas formações

discursivas utilizar-se-ão os processos parafrásticos e polissêmicos, o jogo com a metáfora, a memória discursiva e a constituição do (s) arquivo (s) sobre a questão, e as possibilidades dos dizeres que circulam mostrarem-se como um acontecimento discursivo ou não.

O próximo capítulo traça uma trajetória histórica do livro no decorrer dos tempos até chegar ao objeto desta tese: o livro digital, e ainda procura discutir as tipologias para gerar problematizações sobre o que é um livro didático e, no século XXI, um livro didático digital.

2 – O LIVRO NO DECORRER DOS TEMPOS: DO LIVRO IMPRESSO AO LIVRO