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Acumulação por despossessão, green grabbing: apropriação capitalista de terras e novos cercamentos

PARTE I – DETERMINAÇÕES DA ESCALA GLOBAL: O USO DA ENERGIA NO MUNDO NEXOS ENTRE O COMPLEXO INDUSTRIAL ELÉTRICO E O

Capítulo 9 Acumulação por despossessão, green grabbing: apropriação capitalista de terras e novos cercamentos

Os contratos de arrendamento para geração eólica no interior semiárido brasileiro vêm sendo firmados com períodos de vigência que variam entre 27 e 50 anos.

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Um conjunto eólico congrega um grupo de parques eólicos. Os parques eólicos são unidades que se limitam a 30 MW.

Nos 19 contratos aos quais tivemos acesso, em que a CPFL Renováveis é subarrendante de propriedades localizadas nas proximidades do município de João Câmara (RN), os contratos foram firmados entre os proprietários e a Companhia Valença Industrial com prazo de vigência de 27 anos. Posteriormente, termos aditivos a estes contratos ajustaram o interregno de vigência de 27 para 37 anos, com renovação automática por períodos sucessivos de 22 anos na ausência de manifestação em contrário das partes. O contrato da empresa espanhola Gestamp232, tem prazo de vigência, para a fase de operação, de 35 anos, prazo este que poderá ser ajustado para mais ou para menos através de termo aditivo, de acordo com os termos do Contrato de Compra e Venda de Energia (CCVE) firmado entre a empresa e a ANEEL.

Já a Renova Energia, cuja atuação se concentra no interior do semiárido baiano, especialmente na região do município de Caetité, vem firmando contratos pelo prazo de 35 anos com renovação automática por igual período, bastando para isso que a empresa faça comunicação por escrito ao proprietário. Ressalte-se que a empresa se reserva o direito de, em havendo a renovação do contrato, manter os termos contratuais, não havendo assim a possibilidade de renegociação das cláusulas contratuais com a prorrogação, incluso dos valores a serem pagos aos proprietários. Se a empresa decidir por não prorrogar o período de vigência contratual, considera-se rescindido o contrato sem qualquer ônus para as partes.

A empresa francesa Voltalia Energia, cuja atuação vem se concentrando no estado do Rio Grande do Norte, na região do município de Serra do Mel, vem firmando contratos cuja vigência é de 50 anos, podendo haver ainda prorrogação contratual, desde que manifestada expressamente pela empresa por escrito com antecedência de 24 meses contados do término do contrato. A Voltalia Energia, diferentemente da Renova Energia, prevê a possibilidade de revisão das cláusulas contratuais no caso de prorrogação do contrato.

É comum que existam longos prazos em contratos de arrendamento e penalidades expressivas para rescisões unilaterais nessa modalidade contratual. Trata-se de mecanismo que tem como objetivo reduzir os riscos do negócio para ambas as partes. É importante frisar que na geração de energia os longos prazos de vigência contratual guardam relação direta com o prazo de concessão e autorização

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para geração de energia outorgado pelo Estado brasileiro às empresas vencedoras em leilões de geração, que é de 35 anos233.

Contudo, a longa duração dos contratos e a existência de uma cláusula automática de renovação contratual, em muitos casos sem que haja necessidade de anuência dos proprietários, bastando a vontade de empresa, parece indicar que, apesar de seguirem proprietários formais da terra, pois constam da matrícula do imóvel registrada junto ao cartório de registro de imóveis, os arrendadores perdem o controle sobre seus terrenos por períodos que podem ultrapassar 50 anos quando consideramos a possibilidade de prorrogação contratual. Nestes termos, os contratos de arrendamento para geração eólica poderiam ser caracterizados como alienação completa dos imóveis, dada a perda do controle sobre a propriedade por mais de uma geração.

Como se não bastassem os longos períodos de vigência dos contratos, a perda de controle da propriedade é ainda agravada quando imposta aos herdeiros ou sucessores, no caso de morte do proprietário do terreno. De acordo com o disposto nos contratos, os termos contratuais têm caráter de irretratabilidade e irrevogabilidade e, por isso, se impõem inclusive a parceiros, sócios, compradores, herdeiros ou sucessores. Embora o artigo 15 do Decreto n. 59.566/66 de fato afirme que a alienação do imóvel rural, não interrompe os contratos agrários, ficando o adquirente ou o beneficiário sub-rogado nos direitos e obrigações do alienante ou do instituidor do ônus, em seu artigo 23, o mesmo decreto estabelece também que se por sucessão causa mortis o imóvel rural for partilhado entre vários herdeiros, qualquer um deles poderá exercer o direito de retomada de sua parte234 (DINIZ, 2006)

Isso quer dizer que, embora o contrato de arrendamento se imponha aos possíveis compradores ou beneficiários, em sendo o imóvel vendido à terceiro, o mesmo não vale para os herdeiros em caso de sucessão por morte. Reforça nossa interpretação o disposto no inciso II do artigo 26 do mesmo Decreto, que institui como uma das formas de extinção do arrendamento a retomada. Ou seja, a cláusula contratual que tenta impor os contratos também aos herdeiros dos terrenos é claramente ilegal e, ainda assim, foi encontrada em todos os contratos por nós

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Artigo 28-A da Resolução normativa n. 391, de 15 de dezembro de 2009, da ANEEL.

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Ainda assim, o legislador reservou ao arrendatário o direito à renovação contratual relativamente às partes dos demais herdeiros que não tiverem interesse na retomada.

analisados. Não por acaso, o contrato da empresa Gestamp traz também, entre suas cláusulas contratuais, dispositivo que afirma que em sendo qualquer das cláusulas contratuais considerada inválida, seja por erro manifesto ou impraticabilidade, as demais não serão afetadas conservando-se a sua validade. Trata-se de cláusula que tem como objetivo impedir que, em sendo uma cláusula contratual considerada inválida, o contrato na sua integralidade seja considerado inválido.

O caráter de irretratabilidade e irrevogabilidade dos contratos impede ainda que os proprietários desistam do negócio antes do término da vigência contratual, sem que para isso sejam onerados de forma desproporcional. A rescisão contratual somente é permitida em quatro situações e são elas: i) findo o período de vigência do contrato; ii) de comum acordo entre as partes; iii) inviabilidade técnica ou econômica do projeto; iv) se houver o descumprimento do contrato pela empresa. Não sendo a rescisão de comum acordo, ela será litigiosa e a parte que der causa terá que arcar com perdas e danos e lucros cessantes. Além das perdas e danos e lucros cessantes, alguns contratos apresentam cláusula que impõe única e exclusivamente aos proprietários fundiários multa por descumprimento contratual, cujos valores variam entre 5 (TRALDI, 2014; 2018) e 20 milhões de reais (BAUER, 2013). Assim, o proprietário da terra que por qualquer razão desistir do negócio terá que procurar a justiça para a rescisão litigiosa do contrato e terá ainda que arcar com perdas e danos, lucros cessantes, além de pagamento de multa por descumprimento contratual, quando houver.

Contudo, o caráter de irrevogabilidade e irretratabilidade contratual parece ter caráter flexível frente às empresas ou simplesmente não se aplicar a elas pois as empresas poderão, de acordo com os contratos analisados, rescindir o contrato sem qualquer ônus ou multa a qualquer tempo, desde que comuniquem o proprietário com antecedência de 30 dias. Em alguns contratos, como o da Voltalia Energia, a desistência do negócio por parte da empresa terá que ser fundamentada com laudo técnico que comprove a inviabilidade do projeto. Para o contrato da Gestamp, além da inviabilidade técnica ou econômica do projeto, poderão ser causa de desistência do negócio por parte da empresa sem qualquer ônus: i) novas condições impostas pelas autoridades que comprometam o desenvolvimento do projeto; ii) frustrações ou mudanças prejudiciais na lei que trata das fontes energéticas renováveis,

impossibilidade de operação da central geradora, a critério da empresa; iii) incertezas ou negativas quanto à outorga da autorização para funcionamento das instalações do parque; iv) em caso de descumprimento de qualquer das cláusulas contratuais pelo proprietário. O contrato de arrendamento subarrendado em favor da CPFL Renováveis garante a ela o direito de rescisão contratual sem direito a indenização aos proprietários também em caso de demora maior que 60 dias para obtenção das licenças; ou se houver recusa irreversível por parte dos órgãos públicos no fornecimento de licenças de construção e/ou operação.

Outra cláusula recorrente nos contratos diz respeito ao direito das empresas, que figuram no contrato com arrendatárias, de transferir o parque ou conjunto eólico e, por consequência, seus direitos na qualidade de arrendatária sobre a propriedade para a terceiros, como se a propriedade fosse de fato sua. A análise dessa cláusula se faz importante, pois o setor eólico é extremamente dinâmico e a troca de titularidade dos parques eólicos, ao menos no interior semiárido brasileiro, são muito frequentes. No contrato da Gestamp, a transferência do parque a terceiros está condicionada apenas a comprovação da idoneidade do adquirente e ao envio de notificação ao proprietário. Nos contratos de arrendamento firmados pela intermediária Companhia Valença Industrial, que foram posteriormente subarrendados para a CPFL Renováveis, a empresa está obrigada apenas a comunicar o proprietário com 60 dias de antecedência e a certificar-se de que o comprador se compromete a cumprir integralmente o contrato. Ocorre que, de acordo com o artigo 31 do Decreto n. 59.566, de 1966, e do inciso VI do artigo 95 do Estatuto da Terra, é vedado ao arrendatário ceder o contrato de arrendamento, subarrendar ou emprestar total ou parcialmente o imóvel rural, sem prévio e expresso consentimento do arrendador. Ou seja, contrato de cessão de direito ou de subarrendamento, que transfere a terceiro os direitos sobre a área arrendada, é vedado ao arrendatário se não houver consentimento prévio e expresso do proprietário. Inclusive, de acordo com o disposto no inciso II do artigo 32 do Decreto n. 59.566 de 1966, será concedido ao proprietário o despejo do arrendatário que subarrendar, ceder ou emprestar o imóvel rural, no todo ou em parte sem o prévio e expresso consentimento do arrendador. Novamente as empresas se valem de cláusulas que contrariam a legislação vigente com o objetivo de garantir seu poder e controle sobre as propriedades.

O que se observa é uma enorme desproporcionalidade entre as partes quanto às obrigações e ônus contratuais. Às empresas se garante o acesso e o controle integral sobre as propriedades, mesmo antes de sagrarem-se vencedoras de um leilão de geração de energia; e a proteção frente a todo e qualquer risco do negócio, em termos financeiros, reservando-lhes o direito de desistir do negócio a qualquer tempo caso o negócio não se mostre mais viável economicamente, sem que para isso corram o risco de serem oneradas pelos próprios riscos e incertezas do negócio.

Contudo, aos proprietários não se garante os mesmos direitos, que somente poderão desistir do negócio, sem que sejam onerados no transcurso do contrato, se tiverem a anuência da empresa e, caso contrário, terão que arcar com os custos da rescisão de forma desproporcional. Existem propriedades arrendadas para a geração de energia eólica cuja dimensão do imóvel é de aproximadamente 5 hectares e cujos proprietários são pequenos produtores rurais familiares. Ainda que estes proprietários queiram desistir do arrendamento rural após assinatura do contrato não terão condições financeiras para fazê-lo, pois terão que arcar com a multa contratual ou, quando não houver multa, com as perdas e danos e lucros cessantes que na geração de energia pode representar milhões de reais. Caso a implantação do parque não ocorra, seja por inviabilidade técnica ou econômica e a expectativa dos proprietários de seguir com o contrato para a fase de operação seja frustrada, não cabe multa ou perdas e danos e lucros cessantes em favor do proprietário, pois bastará à empresa alegar inviabilidade técnica e/ou econômica do projeto e estará isenta do pagamento de qualquer valor aos proprietários, não importando se o proprietário, diante da expectativa da continuidade do contrato de arrendamento eólico, deixou de: arrendar sua propriedade para outra empresa de geração de energia que poderia ter viabilizado o projeto, ou para outra empresa ou indivíduo que poderia ter iniciado atividade produtiva agropecuária que poderia lhe gerar renda, ou ainda, que ele mesmo tenha deixado de plantar ou criar animais na área designada para o projeto. Aos proprietários não cabe, de acordo com os contratos, o pagamento por perdas e danos e lucros cessantes diante da desistência das empresas.

Embora o pagamento pelo arrendamento das propriedades se refira em geral ao número, a potência ou a produção por torre, as propriedades, na imensa