• Nenhum resultado encontrado

PARTE I – DETERMINAÇÕES DA ESCALA GLOBAL: O USO DA ENERGIA NO MUNDO NEXOS ENTRE O COMPLEXO INDUSTRIAL ELÉTRICO E O

Capítulo 8 Energia Eólica e o Lugar: contratos de arrendamento eólico

Nossa análise está baseada nos contratos aos quais tivemos acesso, informações obtidas em trabalho de campo e informações tornadas públicas pelo documentário “Energia Eólica: a caçada pelos ventos” (BAUER, 2013). Entre os contratos analisados estão contratos de arrendamento das seguintes empresas: Renova Energia, para terreno localizado em Caetité (BA) (um contrato); Voltália Energia, para terreno localizado no município de Serra do Mel (RN) (um contrato); CPFL Renováveis (firmado pela intermediária Companhia Valença Industrial e Casa dos Ventos), para terrenos localizados nos município de João Câmara (RN) e Parazinho (RN) (19 contratos) e Gestamp Eólica, para terreno localizado no município de João Câmara (RN) (um contrato).

A relação social de produção predominante na exploração dos ventos para geração de energia elétrica de fonte eólica no semiárido brasileiro envolve diversos atores. Nossa análise se concentrará no papel desempenhado pelas empresas de geração eólica e pelos proprietários dos terrenos arrendados, bem como na relação contratual estabelecida entre eles.

213

Disponível em: <http://atlanticenergias.com.br/parques-eolicos-da-atlantic-sao-destaques-em-fator- de-capacidade/> e <http://www.energia.sp.gov.br/2018/05/parques-eolicos-da-echoenergia- comprovam-eficiencia-em-fator-de-capacidade/. / http://cerne.org.br/dez-fatos-sobre-energia-eolica- brasileira-que-voce-talvez-nao-saiba/>. Acesso em: 06/12/2018.

O fluxograma 01 é uma representação simplificada do processo de implantação de parques eólicos no interior semiárido brasileiro.

Fluxograma 01

Representação simplificada do processo de implantação de parques eólicos no interior semiárido brasileiro

Organização própria.

A relação entre o proprietário de um terreno e uma empresa de geração eólica se inicia quando a empresa interessada em investir na atividade passa a buscar terrenos com potencial eólico para exploração. Encontrando o terreno considerado adequado, à empresa caberá adquirir a propriedade ou firmar contrato com o proprietário do terreno para que inicie a medição dos ventos (fase pré- operação/ período de estudos), que deverá ocorrer pelo período mínimo de três anos214.

As empresas de geração eólica têm firmado um único contrato de arrendamento que contém cláusulas que regulam a fase de estudo (medição) e a fase de operação. Assim, ao iniciarem as medições, as empresas já têm seu direito de acesso à propriedade garantido caso venham a vencer um leilão de geração promovido pela ANEEL, que lhes garanta a outorga para a construção de um parque eólico. Isso revela que estas empresas possuem amplo conhecimento prévio do comportamento do vento no território e em escala que lhes permite certo grau de

214

Resolução Normativa da ANEEL N. 391/2009. Disponível em:

certeza da localização do potencial eólico antes mesmo de serem iniciadas as medições de vento exigidas pela ANEEL.

Os contratos de arrendamento para implantação de parques eólicos são contratos bilaterais, regidos pelas normas de direito privado, ou seja, deles participam apenas as partes envolvidas, não havendo qualquer interferência da ANEEL ou de qualquer ente federativo do Estado brasileiro (TRALDI, 2018). Os contratos de arrendamento rural, na sua forma e conteúdo, são regidos pelo Direito Brasileiro, especialmente pelo Estatuto da Terra215, Seção II, Capítulo IV, Título III, intitulada “Do arrendamento rural”, e pelo Decreto n. 59.566 de 14 de novembro de 1966216, que regulamenta as Seções I, II e III do Capítulo IV do Título III do Estatuto da Terra e o Capítulo III da Lei n. 4.947, de 6 de abril de 1966217. Isso quer dizer que as cláusulas contratuais não podem dispor em contrário ao disposto no ordenamento jurídico brasileiro. De acordo com o artigo 3º do Decreto n. 59.566, de 1966:

“Arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel (...)”.

Ressalte-se que, de acordo com Hironaka (2019) o constituinte brasileiro fez uma opção por criar um sistema protetor em favor do produtor não proprietário (arrendatário) e da função social da propriedade agrária, o que justifica que o Direito Agrário brasileiro possua como regra um viés protetivo que tem como objetivo garantir a tutela daquelas pessoas que são mais frágeis socioeconomicamente nas relações juridicamente estabelecidas pelo contrato de arrendamento rural. Nestes termos o produtor não proprietário (trabalhador rural) é entendido como parte mais frágil da relação contratual, hipossuficiente, pois querendo trabalhar e não possuindo terra, precisa se submeter a um contrato de arrendamento rural.

215

Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4504.htm. Acesso em: 17/04/2019.

216

Disponível em: http://www.incra.gov.br/institucionall/legislacao--/legislacao-federal/decreto/file/380- decreto-n-59566-14111966. Acesso em: 17/04/2019.

217

Esta lei fixa normas de Direito Agrário, dispõe sobre o Sistema de Organização e Funcionamento do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária e dá outras Providências. Nãoo abordaremos o disposto dessa lei em nossa tese.

Ocorre que, diferentemente do arrendamento rural descrito por Hironaka (2019), nos contratos de arrendamento rural para a geração eólica a parte hipossuficiente não é o arrendatário (empresas de geração eólica), mas os arrendadores (proprietários dos terrenos). Logo se a legislação tem como objetivo proteger a parte hipossuficiente da relação contratual, neste caso a proteção deveria ser concedida aos proprietários dos terrenos/ imóveis rurais. Ocorre que a legislação brasileira que regulamenta os contratos de arrendamento rural antecede o boom da implantação de parques eólicos no Brasil, não tendo, por isso, sido capaz de antever essa situação jurídica. Os arrendatários (empresas de geração eólica), vêm se beneficiando da legislação que trata do contrato de arrendamento rural, que lhe garante, na qualidade de arrendatário, proteção especial, sob o pressuposto de ser o arrendatário a parte mais frágil da relação. Assim as empresas de geração eólica acabam por submeter os arrendadores (proprietários dos terrenos) a uma condição de mais fragilidade. Com o objetivo de mostrar essa condição de hipossuficiência e fragilidade dos proprietários faremos adiante a análise das cláusulas contratuais. Acesso à terra para produção de energia de fonte eólica

Os funcionários de empresas de geração de energia eólica, ao enumerar os benefícios e vantagens da assinatura dos contratos de arrendamento eólico pelos proprietários dos imóveis, fazem menção ao oferecimento de assessoria jurídica especializada para regularização da situação do imóvel junto ao cartório de registro de imóveis nos casos em que as matrículas dos imóveis não estejam regularizadas ou atualizadas, como por exemplo, em se tratando de inventário não regularizado ou da ausência de título de propriedade por parte de posseiros218. Não se trata, aqui, de “bondade” por parte das empresas para com os proprietários dos terrenos, mas de uma exigência do poder concedente para a concessão de outorga219 e de um pré- requisito legal para que o contrato seja considerado válido.

A comprovação do acesso às propriedades onde os parques serão construídos é um pré-requisito para a concessão de outorga pela ANEEL e, assim sendo, exige-se das empresas o registro dos contratos de arrendamento junto à matrícula dos imóveis. Para que o registro seja realizado pelo cartório de imóveis, a

218

Informação obtida em trabalho de campo realizado em julho de 2013 na região do município de Caetité (BA) e de João Câmara (RN), duas das regiões mais importantes em capacidade instalada eólica do Brasil (TRALDI, 2014).

219

situação cadastral do imóvel deve estar regularizada e atualizada. Do ponto de vista da validade legal do contrato Diniz (2006, p. 559), ao analisar a forma contratual de arrendamento rural, afirma que as áreas objeto do contrato de arrendamento rural deverão estar livres de invasões, litígios, penhoras e quaisquer outros ônus ou impedimentos legais, sob pena de inviabilizar a celebração do contrato.

Na região de João Câmara (RN) e Caetité (BA), onde realizamos trabalhos de campo, muitos foram os relatos de moradores e corretores de imóveis sobre o início de uma corrida pela compra e, principalmente, pelo arrendamento de terrenos com a chegada das empresas do setor eólico, o que aqueceu o mercado de terras principalmente na área rural dos municípios (CPT-BAHIA, 2014; TRALDI, 2014).

A corrida por imóveis veio associada a uma série de denúncias de desrespeito por parte de empresas do setor eólico e imobiliário ao modo de vida de populações tradicionais. À exemplo podemos citar reportagem da Comissão da Pastoral da Terra da Bahia (2012; 2013), que trata da denúncia feita por grupos de remanescentes quilombolas do município de Caetité (BA) junto a representantes da Fundação Cultural Palmares, do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos e da Secretaria de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia acerca do total desrespeito de empresas de energia eólica, entre elas a EPP Energia (Empresa Paranaense de Participações SA)220, Polimix Energia221 e Atlantic Renováveis222, ao modo tradicional de vida das comunidades. Essas empresas passaram a assediar integrantes da comunidade de forma individual na tentativa de adquirir ou arrendar terras de uso coletivo, fazendo uso de coação e assédio aos moradores e as lideranças populares. É também mais um exemplo o documentário produzido pela CPT-Bahia (2011) intitulado “Contradições da Energia “Limpa” em Caetité BA”, que

220

Atualmente CEA (Centrais Eólicas Assuruá SPE S/A), empresa de investimento brasileira, sediada em Curitiba (PR), que atua na geração de energia elétrica.

221

Polimix Energia é a divisão da Organização Polimix, que tradicionalmente atua na produção de concreto. A Polimix Energia atua na geração de energia renovável. A empresa investe em diversas matrizes energéticas, como: Bioenergia, PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) e Energia Eólica.

222

Empresa que atua na geração de energias renováveis, que tem seu escritório instalado em Curitiba (PR), mas que integra o portfólio do fundo de investimento britânico Actis LLP, sediado em Londres, cuja atuação se dá na escala global e oferece ativos de private equity, energia e imobiliário. Entre os investidores em parques eólicos no Brasil através da Atlantic estão: sistema de aposentadoria dos funcionários do Texas, sistema da aposentadoria dos professores do estado de Califórnia, fundo de pensão nacional da Coréia do Sul, Instituição Financeira de Desenvolvimento do Reino Unido, fundo de pensão dos funcionários das Nações Unidas, entre outros. Disponível através

de consulta por Atlantic Renováveis em:

conta a história de moradores da comunidade de Caldeiras, localizada no Distrito de Sapé, no município de Caetité (BA), que tiveram suas casas derrubadas pela empresa Polimix Energias Renováveis. A empresa derrubou as casas de moradores da comunidade de Caldeiras e cercou a área, com base em uma liminar de reintegração de posse que foi concedida pela justiça estadual da Bahia. Ainda que posteriormente a medida liminar tenha sido revogada pela justiça, as casas dos moradores já haviam sido derrubadas. Transcrevemos abaixo relato de uma das moradoras que foi expulsa de sua propriedade:

“Meu nome é Olga Marques do Nascimento, eu estou aqui na Fazenda das Baixa, aqui na Caldeiras. Então eu cheguei aqui em Caldeiras, aqui no meu terreno, achei minha cerca toda serrada de motosserra, encontra-se um cerca muito bem feita na frente da casa e umas placas “proibida a entrada”, derrubaram a minha casa com tudo meu dentro, minhas ferramenta, tudo coisa de bota água, minha feira. Comprei essa terra tem 22 anos atrás, R$ 3.000,00 reais e tô com a escritura aqui na mão, pago meus impostos todo ano, pago minha declaração, meus Incra. Plantava aqui mandioca, feijão, melancia. E agora não posso entrar no terreno (CPT-BAHIA, 2011)” 223

Em outra reportagem, também veiculada pela CPT-Bahia (2014), há a denúncia de grilagem de terras. De acordo com a reportagem aproximadamente 1.200 famílias de 12 comunidades dos municípios de Mirangaba e Pindobaçu-BA estão sofrendo processos de grilagem das áreas de uso comum onde criam gado, bode e praticam o cultivo da agricultura de sequeiro, devido a chegada da energia eólica na região. De acordo com a reportagem, para os moradores a documentação das terras foi falsificada para legitimar a grilagem. Ainda segundo moradores, a empresa Casa dos Ventos teria cercado mais de 90% da área de fundo de pasto, violando os direitos de várias comunidades tradicionais, que dependem dessas terras para sobreviver e manter o seu modo de vida.

Também na região de João Câmara (RN) muitos foram os relatos denunciando a atuação das empresas na busca pelo acesso a propriedades com elevado potencial eólico. João Câmara (RN) está entre os municípios que concentram a maior capacidade eólica instalada, não apenas do estado do Rio Grande do Norte, mas também do Brasil. De acordo com os Censos Agropecuários de 2006 e de 2017, o município está entre os que apresentam como principal forma

223 O documentário “Energia Eólica: a caçada pelos ventos” disponível na plataforma YouTube e

produzido pela CPT-Bahia trata da temática (BAUER, 2013). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s90nKSlbgoQ&t=243s. Acesso em: 08/03/2019.

de obtenção da terra programas de reforma agrária ou de reassentamento, sendo que muitas destas propriedades, ao menos até 2006, aguardavam titulação (IBGE, 2006; 2017; SANTOS, 2012). O município integra a microrregião da Baixa Verde, caracterizada como uma região de forte concentração na posse da terra (SANTOS, 2012).

No município de Parazinho (RN), nas proximidades do município de João Câmara (RN), encontramos situação de regularização de titularidade de propriedade rural destinada a geração eólica que consideramos “questionável” (esquema 1). As informações apresentadas no esquema 01 foram obtidas a partir do acesso a matrícula de dois imóveis arrendados para geração eólica e podem ser consultadas através do “Consulta Processual”, da ANEEL, sob o número de processo 48500.001155/2010, volume 2, p. 102 a 122. Para fins de análise não apresentamos aqui os nomes originais que constam dos documentos.

Esquema 01

Esquema representativo dos atos registrados nas matrículas de imóveis rurais arrendados para geração de energia eólica

IMÓVEL A