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Analisada a presunção de inocência como direito fundamental que coloca o ser humano no patamar de sujeito de direitos, bem como normativa balizadora dos eventuais excessos e arbítrios estatais, é preciso atentar a uma preocupação não tão recente, mas que começou a rondar o nosso ordenamento jurídico de forma mais intensa a partir dos anos 90: a mídia.

Conforme observa Fernandes (2017, p. 248), desde os tempos mais remotos, a sociedade tem curiosidade pela observação e pelo desejo de conhecimento da desgraça alheia, conhecimento este que é dado, principalmente, pelos meios de comunicação, os quais, com o passar do tempo, evoluíram em formas e em velocidade, por vezes, incontrolável.

A difusão de notícias – majoritariamente, pelo lado do acusador – solidifica, no entender de Fernandes (2017, p. 248), uma espécie de crime a la carte oferecido pela mídia diariamente. Desse modo, inevitavelmente, a investigação penal e o próprio processo penal se transformam em verdadeiros espetáculos aos olhos do público, composto pela sociedade em geral, que acompanha, atentamente, cada ato destes espetáculos.

No mesmo espectro, a imprensa, ávida por atender o clamor social e por buscar notícias que atraíam a atenção e a audiência do público, não mede esforços para produzir conteúdo que lhe garanta ibope. Tomada por essa preocupação, não raras vezes, a imprensa se esquece de um direito fundamental previsto em nossa Constituição, assegurado aos cidadãos e tão caro ao Estado Democrático de Direito: a presunção de inocência.

Ao falar em sensacionalismo midiático, busca-se referir, coadunando com o pensamento de Angrimani (1995, p. 16), à produção de notícias que extrapolam a esfera do real, superdimensionando o fato que se pretende noticiar. Trata-se, modus in rebus, de sensacionalizar o que não é tão sensacional assim por meio de uma linguagem, desnecessariamente, escandalosa. E, como consequência antecipada pelo título deste

capítulo, sensacionaliza-se o cidadão, esquecendo-se, frequentemente, da sua condição de presumidamente inocente50 assegurada pela CRFB/88.

Nesse contexto sensacionalista, questiona-se para onde vai o estado de presumidamente inocente (até o recebimento da ação penal) e de presumidamente não culpado (até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória), dos quais os cidadãos, constitucionalmente, fazem jus51? Como ficam as balizas garantidoras do Estado Democrático de Direito de que a lei deve ser seguida, inobstante o clamor popular ser contrário ou favorável aos seus preceitos?

Importante ressaltar que, como norma probatória, a presunção de inocência é analisada sob os seguintes aspectos: de quem deve provar e por meio de que tipo de meio probatório deve fazê-lo. Inicialmente, não se pode esquecer que, em nosso sistema processual penal, o ônus da prova cabe, inteiramente, ao órgão acusador – em regra, o Ministério Público -, em razão de ser o titular da ação penal52.

Seria ilógico conceber, em um sistema acusatório, que alguém, acusado em um processo penal, tivesse que provar a sua própria inocência. Tal premissa se torna ainda mais descabida se analisada em relação ao escopo garantista trazido pela Constituição Cidadã. O nosso sistema é todo voltado para que a acusação produza as provas de que necessita, no afã de, ao final da persecução penal, o pedido condenatório, por ela formulado, mereça ser julgado procedente53.

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No entender do argentino Maier (2002, p. 491-492), “‘Presumir inocente’, ‘reputar inocente’ ou ‘não considerar culpável’ significa exatamente o mesmo; e essas declarações formais remetem ao mesmo princípio que emerge da exigência de um ‘juízo prévio’ para infligir uma pena a uma pessoa [...] trata- se, na verdade, de um ponto de partida político que assume – ou deve assumir – a lei de processo penal em um Estado de Direito, ponto de partida que constitui, em seu momento, uma reação contra uma maneira de perseguir penalmente que, precisamente, partia do extremo contrário”. (No original: “Presumir inocente’, ‘reputar inocente’ o ‘no considerar culpable’ significan exactamente lo mismo; y, al mismo tiempo, estas declaraciones formales mentan el mismo principio que emerge de la exigencia de un ‘juicio previo’ para infligir una pena a una persona. [...] Se trata, en verdad, de un punto de partida político que asume – o debe asumir – la ley de enjuiciamiento penal en un Estado de Derecho, punto de partida que constituyó, en su momento, la reacción contra una manera de perseguir penalmente que, precisamente, partía desde o extremo contrario”).

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Importante destacar que o acusado pode ser objeto da mídia sensacionalista durante o inquérito policial e durante a ação penal propriamente dita, momentos distintos da persecução penal. Entende-se que a observância à presunção de inocência, durante o inquérito policial, apresenta maior gravidade, isto é, singularidade, uma vez que este é mero procedimento administrativo, desprovido de garantias como contraditório e ampla defesa.

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Na dicção de Badaró (2003, p. 285), cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência segundo a qual, para a imposição de sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade de certeza.

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Como modo de reafirmar tal entendimento, vide as hipóteses de absolvição previstas no artigo 386, do Código de Processo Penal. Do modo como foram redigidas, é possível constatar que a absolvição está atrelada a não comprovação – pelas provas colhidas na instrução processual – da existência do fato ou

Segundo Lopes Júnior e Badaró (2016, p. 07), o acusado presumidamente inocente é sujeito de direitos, a quem a CRFB/88 assegura a ampla defesa, com o direito de produzir provas aptas a demonstrar a versão defensiva de um lado, e sendo-lhe assegurado, de outro, o direito ao silêncio, eliminando qualquer dever de colaborar com a descoberta da verdade. A prova da imputação, então, cabe à acusação inteiramente.

Além de ser assegurada ao acusado a oportunidade de produzir as provas necessárias à sustentação de seus argumentos (ampla defesa), também o são os direitos de constituir um defensor no patrocínio de seus interesses (defesa técnica), de estar presente nas audiências e nos demais atos processuais (autodefesa) e de conhecer os argumentos da parte contrária e ter o direito de respondê-los (contraditório).

Tais instrumentos, por assim dizer, validam o estado de presumidamente inocente do acusado no curso processual penal, sendo indispensáveis à concretização do que preceitua o devido processo legal. Seguindo essa linha de pensamento, depara-se com um segundo ponto: a presunção de inocência vista na dimensão interna, sob os vieses de norma de juízo ou de norma de tratamento para o juiz.

Quanto ao primeiro aspecto, a presunção de inocência incide, como o próprio nome sugere, no momento em que o julgador toma uma decisão, pois, neste instante, será por ele analisada a suficiência das provas carreadas aos autos para adotar alguma medida que venha a restringir o direito fundamental do cidadão ao estado de inocência que é assegurado a ele constitucionalmente.

Enquanto norma de juízo, Moraes (2010, p. 469) assegura que a constatação é objetiva: se a acusação produziu prova incriminadora e lícita, pouco importando se ela é ou não suficiente. Já sob o viés de norma de tratamento, a presunção de inocência refere-se à figura do imputado. Nesse sentido, o cidadão tem a garantia de que será tratado como inocente antes da persecução penal e de que, durante esta, será visto como não culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória54.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Moraes (2010, p. 427) vai além ao afirmar que violam a presunção de inocência como norma de tratamento todos os da concorrência do indivíduo para o fato apurado em questão, por exemplo. Dessa forma, percebe-se, rapidamente, que todos os sete incisos do artigo 386, do CPP mencionam a palavra prova direta ou indiretamente (VI – “[...] se houver fundada dúvida sobre sua existência”), ressaltando o ônus da prova como responsabilidade da acusação, titular da ação penal.

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Tal garantia é assim contemplada diante do entendimento da coexistência pacífica e harmônica da presunção de inocência e da presunção de não culpabilidade em diferentes momentos da persecução penal, conforme explicitado no subtópico 3.2.

dispositivos legais que, de forma absoluta, antecipam qualquer espécie de sanção que, prima facie, somente adviria por força de decisão condenatória definitiva.

E não só os dispositivos legais que acarretam sanções físicas e/ou morais antes do trânsito em julgado da condenação definitiva violam a presunção de inocência como norma de tratamento, mas toda conduta, inclusive praticada por particulares – aqui se confere posição de destaque à mídia – que estigmatize o acusado a ponto de torná-lo culpado por um crime antes mesmo de qualquer análise judicial.

Já externamente ao processo, nas lições de Lopes Júnior (2017, p. 97), a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização do acusado, devendo ser utilizada como limite democrático à abusiva exploração midiática em torno do delito e do próprio processo. Portanto, o espetáculo encenado pelas sentenças midiáticas deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência.

Diante da proposta do presente trabalho, observar-se-á que o exercício da liberdade de imprensa, se absoluto55, viola exatamente o princípio da presunção de inocência como norma de tratamento. Isso porque as publicações veiculadas de forma descuidada e arbitrária pela mídia transformam o cidadão, que ainda será submetido à persecução penal - ou pior: que ainda será indiciado -, em um mero objeto de sensacionalismo, desprovido de garantias, constitucionalmente, asseguradas a ele.

Como defendido nesta pesquisa, a culpa será declarada apenas ao final da persecução penal, com o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória, mas, infelizmente, desde o início, já é o acusado ou, quando não, o investigado declarado culpado pela mídia e pela sociedade por todas as suspeitas ou as imputações que pesam contra si.

O sensacionalismo encabeçado pela mídia faz crer que o acusado é merecedor, desde logo, da reprimenda estatal no sentido de antecipar-lhe toda espécie de sanção que somente poderia advir após o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória, o que é um verdadeiro absurdo ante as bases principiológicas sob as quais o nosso sistema processual penal se encontra fundado.

E o exercício, muitas vezes, desproporcional da liberdade de imprensa, sem que se respeite o mínimo do âmbito de proteção do princípio da presunção da inocência,

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Neste caso, ressalte-se que a escrita do termo “se absoluto” foi proposital, visto que se entende os direitos fundamentais como relativos e é, nesta perspectiva. que estão sendo considerados neste trabalho.

ocasiona uma reação direta na população. Assustadas com o aumento da criminalidade e com a costumeira sensação de impunidade, as pessoas, no entender de Batisti (2009, p. 9), não raro associam a própria criminalidade às garantias constitucionais, que estariam a impedir uma política eficiente do Estado, para reprimir e impedir o crime.

Tal associação, a despeito de ser um completo absurdo, ocorre com frequência nos mais diversos cantos do País. O cidadão comum, muitas vezes influenciado por determinada linha editorial dos veículos de comunicação em massa ou mesmo de perfis em redes sociais – que fomentam a ideia sob a qual os direitos humanos e os fundamentais somente servem aos acusados de crimes –, é levado a crer que a presunção de inocência se presta apenas à proteção individual.

Tanto isso ocorre que, aparentemente, todos os estados da Federação, a exemplo do Ceará e do Rio Grande do Norte, possuem programas televisivos dos tipos do Barra Pesada56 e do Patrulha da Cidade57, respectivamente. São programas consagrados entre o público em geral por se autodenominarem como reveladores da realidade da segurança pública nos estados em que são transmitidos.

Coincidência ou não, os dois programas citados acima são apresentados por homens que possuem um discurso inflamado, voltado ao combate da criminalidade a qualquer custo. São apresentadores que caíram nas graças do público por dizerem o que boa parte dos telespectadores diz ou gosta de ouvir58.

Nesse contexto, expressões das mais reprováveis – sob as óticas humanista e garantista - são verbalizadas em tais programas: desde bandido bom é bandido morto até direitos humanos são para defender bandidos. Aquele que, muitas vezes, sequer foi denunciado já é visto como meliante, bandido, delinquente, aquele que tem de ser preso mesmo para aprender. Ora, para aprender o que? Para aprender como? Aonde queremos chegar com discursos assim?

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A título informativo, vide: https://tribunadoceara.com.br/tv-jangadeiro/#. Acesso em: 12 out. 2019. 57 A título informativo, vide https://tvpontanegra.op9.com.br/programa/patrulha-da-cidade. Acesso em: 12

out. 2019. 58

Segundo Suzuki e Bezerra (2016, p. 03), “Nos meios de comunicação de massa é essencial a presença de um intérprete carismático que em alguns momentos emocione e choque o telespectador e em outros o faça rir. Este comunicador se mostra sempre preocupado com os problemas da população, profere duras críticas contra as autoridades políticas e o poder judiciário, bem como destaca reiteradamente sua revolta, indignação e inconformismo com a impunidade e ineficácia do sistema penal. Na maior parte das vezes o comunicador não possui nenhum conhecimento a respeito das técnicas jurídicas de ordem penal e processual penal, não são estudiosos do Direito e, por tal razão, não deveriam ter a liberdade que possuem para opinar a respeito de tal matéria”.

Tais expressões de forte cunho caluniador, injuriador ou difamador, veiculadas em programas jornalísticos, incitam, sobretudo no cidadão comum, um considerável indício ou mesmo já uma certeza da culpabilidade de quem, em tese, cometeu um ilícito. Isso acontece, não raro, antes mesmo do início do processo e bem antes do trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória.

Quando os meios de comunicação em massa se deparam com uma notícia que possa impactar e chocar o telespectador, esta passa a ser veiculada durante semanas e, via de regra, em todas as emissoras, em todos os noticiários. Com as manchetes mais escandalosas e exageradas possíveis, objetiva-se mexer com o imaginário do público, causando uma profunda sensação de indignação e de revolta.

Segundo Batista (1990, p. 32), a imprensa tem o formidável poder de apagar da Constituição o princípio da presunção de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo, reduzindo a sua importância e a sua aplicação a níveis insignificantes. Isso porque a imprensa sensacionalista, nos dizeres de Suzuki e Bezerra (2016, p. 06), não se preocupa com a prova dos fatos.

Na maioria das vezes, um simples rumor já é suficiente para que a notícia seja divulgada amplamente e, como consequência, ganhe profundos contornos de veracidade aos olhos do público, mesmo que ainda não exista conhecimento ou comprovação da materialidade e da autoria do fato noticiado.

Não há como negar que o fenômeno do sensacionalismo na imprensa carrega consigo interesses que ultrapassam a esfera da ética e do intuito de bem informar. Segundo Angrimani (1995, p. 17), é na exploração de fantasias e de institutos sádicos que o sensacionalismo se instala, mexe com o imaginário e com as convicções das pessoas e se destaca dos informativos comuns.

É inquestionável a existência de uma acentuada conotação emocional que influencia a população a, sem o senso crítico necessário, apreender a informação veiculada associada ao juízo de valor imposto desde o seu nascedouro. Isso acontece porque, segundo Silva (2000, p. 35), o crime é um tema que goza de alto prestígio perante a população, já que o mal revigora e desperta interesse59.

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No entendimento de Silva (2000, p. 42), os jornais que veiculam o sensacionalismo podem ser classificados em três subcategorias: sensacionalismo criminal (a exemplo de Notícias Populares e de O

Dia), sensacionalismo social (como Caras e Manchete) e sensacionalismo por procuração ou star-

Já para Vieira (2003, p. 55-56), o interesse pelos crimes e pela justiça penal é uma prática enraizada pela mídia que encontra seu melhor representante no jornalismo sensacionalista. Com uma linguagem impactante, ágil e coloquial, os programas jornalísticos promovem a banalização da violência e a espetacularização do processo penal, de forma que tais notícias não se prestam a informar – como deveriam ser -, mas sim a produzir um entretenimento barato, reforçando o lado sádico dos seres humanos.

A força que a mídia exerce sobre a população60 é uma poderosa arma que, em mãos erradas, pode acarretar injustiças graves e irreparáveis. Ainda que a população, ao se deparar com a notícia, faça algum juízo de valor, é preciso que este não resulte da intenção pessoal do jornalista – o que, do contrário, já faria cair por terra a condição de presumidamente inocente do acusado.

É impossível medir o poder que os meios de comunicação, naturalmente, detêm de influir no comportamento e na cultura sociais, o que, certamente pelo conteúdo das publicações, possui maiores chances de se transformar em potencial lesivo que em potencial de transformação positiva. Se tais informações forem veiculadas de forma sensacionalista, as consequências são ainda mais alarmantes.

Ressalte-se, por oportuno, que o direito à informação, assegurado constitucionalmente, não condiz com o sensacionalismo adotado por algumas instituições da imprensa, servindo tão somente à espetacularização do processo penal e, em uma análise macro, à desagregação social61.

Nessa linha de pensamento, a mídia se posiciona entre o processo e o público, mas, antes disso, coloca-se entre as garantias constitucionais conferidas à sociedade e a própria sociedade detentora dessas garantias. Parece um contrassenso, é bem verdade, mas, lamentavelmente, é essa a situação que ocorre em nosso País, mais intensamente, a partir dos anos 90.

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Viera (2003, p. 52-53) descreve, com precisão, o impacto que as notícias sensacionalistas veiculadas pela mídia causam no indivíduo, ao aduzir o seguinte: “Nada do que se vê (imagem televisiva), do que se ouve (rádio) e do que se lê (imprensa jornalística) é indiferente ao consumidor da notícia sensacionalista. As emoções fortes criadas pela imagem são sentidas pelo telespectador. O sujeito não fica do lado de fora da notícia, mas a integra. A mensagem cativa o receptor, levando-o a uma fuga do cotidiano, ainda que de forma passageira. Esse mundo-imaginação é envolvente e o leitor ou telespectador se tornam inertes, incapazes de criar uma barreira contra os sentimentos, incapazes de discernir o que é real do que é sensacional”.

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“A estética da aberração e a hegemonia do vulgar implica justamente a desconstrução do cidadão em favor do consumidor. Por que a mídia não deveria ser um ator social como todos os outros? Ela o é. Por que a mídia deveria ser neutra? Ela não o é. Assim, não lhe cabe ser um simples espelho do mundo. Ela não o é, mas finge ser. Aos poucos, os escrúpulos caem por terra e a grande orgia do aberrante ocupa as telas e suscita eco nos demais meios” (SILVA, 2000, p. 58).

4.1 O reflexo das publicações midiáticas: há como explicar a origem e a evolução da cultura socioinquisitiva no Brasil?

O questionamento acerca da origem de uma cultura socioinquisitiva é antigo e difícil de ser respondido, de modo que remonta à origem dos julgamentos cruéis, o que não é uma particularidade do cenário brasileiro. Segundo Ferrajoli (2010, p. 357), a mais antiga resposta à questão mencionada repousa na ideia jusnaturalista de que a pena deva igualar-se ao delito e consistir num mal de mesmas natureza e intensidade. Aqui, vai-se além ao pontuar que a intensidade não é a mesma, mas, muitas vezes, demonstra- se maior - e quanto maior, parece ser melhor aos olhos da sociedade em geral.

Tal concepção relaciona-se à concepção retributiva da pena, ideia antiga no universo jurídico. Ora, o Princípio de Talião, consistente na máxima do “olho por olho, dente por dente”, presente em conotações mágico-religiosas, fez-se presente desde o Código de Hammurabi até a Bíblia e a Lei das XII Tábuas. Perdurou, ainda, na Idade Média, onde filósofos como Kant e Hegel identificaram no Talião, expressamente, o modelo ideal e normativo da sanção penal.

Para Ferrajoli (2010, p. 357), os efeitos deletérios desta concepção naturalista e primitiva da pena são dois. Primeiro, serve para afiançar as penas corporais e capitais correspondentes à natureza do delito, com o Princípio de Talião, de forma direta e indireta - afinal, não há nenhum equivalente que satisfaça a justiça. Segundo, as penas devem ter a mesma qualidade e a quantidade dos delitos, estendendo-se, pois, o caráter repressivo da sanção penal.

Sob a ótica da mitologia processual penal, Casara (2015a, p. 253) aduz que os principais mitos que se repercutem no processo penal brasileiro ampliam ou eliminam os limites ao exercício do poder de punir. Surgem, então, para legitimar práticas que não se sustentariam em um ambiente democrático por respeito à alteridade. Nesse caso, o referido professor denomina-os de mitos autoritários, porque fragilizam a proteção que o cidadão detém contra eventuais arbítrios no âmbito processual penal, não mais sendo construída uma realidade dialética para o processo. Dessa forma, a jurisdição passa a ser vista menos como saber e mais como poder, constituindo mero exercício desenfreado do poder estatal.

Para Casara (2015a, p. 317), os mitos processuais penais autoritários

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