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A presunção de inocência como objeto de mitigação do sensacionalismo midiático: reflexões sobre a principiológica constitucional e a cultura socioinquisitiva

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MARCELA CARDOSO LINHARES OLIVEIRA LIMA

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO OBJETO DE MITIGAÇÃO DO SENSACIONALISMO MIDIÁTICO: REFLEXÕES SOBRE A

PRINCIPIOLÓGICA CONSTITUCIONAL E A CULTURA SOCIOINQUISITIVA

NATAL/RN 2019

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MARCELA CARDOSO LINHARES OLIVEIRA LIMA

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO OBJETO DE MITIGAÇÃO DO SENSACIONALISMO MIDIÁTICO: REFLEXÕES SOBRE A PRINCIPIOLÓGICA

CONSTITUCIONAL E A CULTURA SOCIOINQUISITIVA

Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior.

NATAL/RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Lima, Marcela Cardoso Linhares Oliveira.

A presunção de inocência como objeto de mitigação do sensacionalismo midiático: reflexões sobre a principiológica constitucional e a cultura socioinquisitiva / Marcela Cardoso Linhares Oliveira Lima. - 2019.

109f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito Processual e Propedêutica. Natal, 2019. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior.

1. Direito Penal - Monografia. 2. Princípio da presunção da inocência - Monografia. 3. Constituição (1988) - Monografia. 4. Sensacionalismo midiático - Monografia. I. Silva Júnior, Walter Nunes da. II. Título.

RN/UF/CCSA CDU 343.131.7

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Dedico esta pesquisa a todos aqueles e a todas aquelas que tiveram as suas vidas, profundamente, marcadas por uma condenação prévia e injusta perante os tribunais midiáticos, sem a chance de presentar qualquer recurso.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é, talvez, a parte mais difícil e importante deste trabalho. Reconhecer os esforços de todos aqueles para comigo, sem os quais esta pesquisa não estaria pronta para ser entregue à sociedade. Reconhecer o quanto fui agraciada por ter pessoas, em minha vida, que me deram o alicerce necessário para sair de Fortaleza e estudar em Natal, bem como aquelas que tornaram os dias da graduação mais leves.

Inicialmente, gostaria de agradecer a Deus por ser o pilar que sustenta e rege minha vida. Deus é tão bom que me presenteou com representantes seus aqui na Terra para me apoiar e me guiar quando os caminhos parecerem difíceis demais. Aos primeiros deles, Alda e Marcélio. Agradeço aos meus pais por apoiarem meus sonhos, sendo a base e a razão de tudo que faço.

Aos meus anjos da guarda, Regina e Damião, por me guiarem lá de cima e me protegerem a cada passo que dou. A Maria Regina, Zilda, Apolo, Fabíola, Arthur e Antônio Davi, dirijo os meus agradecimentos por me motivarem e vibrarem com as minhas conquistas ao longo da graduação. Agradeço também aos meus amigos e amigas, que aqui não nominarei para não incorrer em nenhuma injustiça, por ter vocês em minha vida, contribuindo com o meu pensamento crítico sobre as mais diversas questões da vida – não sei se sou digna de tanto.

Por falar em amizade, os meus mais sinceros agradecimentos à equipe do escritório Flaviano Gama Advogados, pelos pouco mais de dois anos de aprendizados, estímulos e alegrias. Obrigada pela convivência e pelas lições diárias de humanidade, honestidade e excelência na advocacia que tornaram a minha caminhada mais agradável e completa.

Ainda, todos os agradecimentos à minha muito amada Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que foi a minha casa ao longo de felizes quatro anos e meio, por ter me ensinado preciosas lições jurídicas, mas também humanísticas. Sempre me faltarão palavras para expressar a honra e a felicidade por estudar nesta instituição.

Obrigada ao Glorioso curso de Direito por formar uma mulher ciente do seu papel na sociedade que busca, incansavelmente, o conhecimento e o aprimoramento. Ao longo desses anos, formei opiniões, desconstruí preconceitos, debati ideias, fiz amizades, cresci, amadureci, vivi. E como vivi...

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Obrigada, Glorioso, por ter me proporcionado experiências únicas em projetos de extensão, como a In Verbis, a Sociedade de Debates e o Efetivando o Direito à Educação, que me fizeram enxergar a imensidão que existe além dos muros da univerdade e a necessidade de profissionais do direito que possam ser, antes de tudo, seres humanos. Obrigada, também, pela oportunidade de encontrar grandes mestres pelo caminho, os quais, cada um a seu modo, contribuíram para a minha formação.

Dentre os quais, destaco o meu orientador, Walter Nunes da Silva Júnior, pelo exemplo de comprometimento e de zelo com a docência, que tive a oportunidade de testemunhar de perto em virtude dos dois anos de monitoria nas disciplinas de Processo Penal I e II, bem como pela inteligência e pela excelência em tudo que se propõe a fazer. Que honra tê-lo como guia em minha vida acadêmica.

Aponto, também, o professor Morton Medeiros que, com a sua didática e a sua sabedoria ímpares, ainda no primeiro período da graduação, serviu-me de inspiração para enfrentar os mais diversos desafios do mundo jurídico e, por isso, detém toda a minha admiração. Obrigada por ter, prontamente, aceitado contribuir com esta pesquisa. Ademais, em se tratando de mestres, não posso deixar de agradecer ao professor Cândido Albuquerque, que faz encantar pelo Direito todos aqueles agraciados com a felicidade de tê-lo como mentor. Obrigada por ter se mostrado sempre disposto a contribuir com o meu crescimento acadêmico, servindo, igualmente, como luz para a minha vida profissional pela adoção de palavras e de atitudes éticas.

Não posso me esquecer de agradecer à Aparecida, sempre disposta a sanar dúvidas em relação à Coordenação do Curso de Direito, e às bibliotecárias Shirley e Eliane, pela atenção e pela paciência com que fizeram a revisão da normalização deste trabalho. Lembro, ainda, dos demais funcionários das bibliotecas central e setorial do campus, que sempre me trataram com muita cordialidade e presteza.

Por fim, mas não menos importante, agradeço a todos os brasileiros e a todas brasileiras que custearam, por meio do pagamento de tributos, a minha graduação. Serei, eternamente, grata por me presentearem com o estudo em uma das melhores universidades públicas do nosso País e espero, em algum dia, recompensá-los pela realização deste sonho.

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Para corrigir o réu, é necessário conservar-lhe a vida. Francesco Carnelutti

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RESUMO

A presunção de inocência, direito fundamental contemplado pela Constituição de 1988, eleva o homem à categoria de sujeito de direitos e o protege contra eventuais arbítrios e excessos cometidos pelo Estado. Ocorre que, a partir dos anos 90, com a proliferação dos meios de comunicação em massa e com o aumento da velocidade com que estes transmitem as informações à sociedade, sobretudo pelo meio audiovisual, a presunção de inocência vem sendo objeto constante de mitigação pelo fenômeno conhecido por sensacionalismo midiático. A mídia influencia a opinião popular, incentivando a cultura do punitivismo. O que é divulgado é colocado como a verdade, de modo que o investigado ou acusado fica com o ônus, perante o tribunal midiático, de provar que é inocente. Mediante uma análise hermenêutica da presunção de inocência desde a sua gênese até os dias atuais, buscando amparo na perspectiva comparada, é analisada a conformação constitucional da cláusula da presunção de inocência em nosso ordenamento jurídico, e como ela se porta diante da colisão com outros direitos fundamentais – notadamente, com o da liberdade de imprensa -, da cultura socioinquisitiva e do verdadeiro espetáculo que se tornou o processo penal diante da atual forma de manifestação da criminologia midiática. Conclui-se que desespetacularizar o processo e efetivar a presunção de inocência não é tarefa fácil, sendo uma responsabilidade que engloba desde os representantes dos poderes republicanos até os leigos, passando pelos profissionais da imprensa. É preciso entender a presunção de inocência como garantia da sociedade – e não apenas dos acusados em um processo penal - e tratá-la como tal.

Palavras-chave: Presunção de inocência. Constituição de 1988. Sensacionalismo midiático.

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ABSTRACT

The presumption of innocence, a fundamental right guaranteed by the Constitution of 1988, elevates man to the category of subject of rights and protects him against any arbitrary actions and excesses made by the State. Since the 1990s, with the proliferation of mass media and the increasing speed through which they transmit information to society, especially through the audiovisual media, the presumption of innocence has been a constant object of mitigation by the phenomenon known as media sensationalism. The media influences popular opinion by encouraging the culture of punishment. What is disclosed is placed as the truth, so that the defendant or accused person bears the burden in the media court of proving that he is innocent. Through a hermeneutic analysis of the presumption of innocence from its inception to the present day, seeking support from a comparative perspective, the constitutional conformation of the presumption of innocence clause in our legal system is analyzed, and how its behavior in the collision with other fundamental rights - notably with the freedom of the press - the social and inquisitive culture and the real spectacle that has become the criminal process before the current manifestation of media criminology. It is concluded that disempowering the process and making the presumption of innocence effective is not an easy task, being a responsibility that ranges from the representatives of the republican powers to the laity, as well as the press professionals. We must understand the presumption of innocence as a guarantee of society - and not just of the accused in a criminal case - and treat it as such.

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LISTA DE SIGLAS

CADH Convenção Americana de Direitos Humanos CE Ceará

ConJur Consulto Jurídico CPB Código Penal Brasileiro CPP Código de Processo Penal

CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 CRP Constituição da República de Portugal

DDHC Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão DEPEN Departamento Penitenciário Nacional

DJe Diário do Judiciário Eletrônico DPP Director for Public Prosecutions HC Habeas Corpus

IBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais INFOPEN Levantamento de Informações Penitenciárias LEP Lei de Execução Penal

Min Ministro

ONU Organização das Nações Unidas Rel Relator

Rext Recurso Extraordinário

RHC Recurso Ordinário em Habeas Corpus SP São Paulo

STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça

TJDFT Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios US United States

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 13 2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O SEU SUPORTE AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A CONSEQUENTE ADAPTAÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL À NOVA REALIDADE... 16 2.1 Os direitos fundamentais: breve evolução histórica da condição do homem enquanto sujeito de direitos... 19 2.2 Os fundamentos do direito (dever-poder) de punir do Estado: as balizas existentes ao jus puniendi e ao jus persequendi estatais... 27 3 A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO GARANTIA ESSENCIAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO... 36 3.1 Aspectos a orientar a gênese e a influência anglo-saxônica do princípio da presunção de inocência: a desconstituição do beyond reasonable doubt... 41 3.2 Presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade: escolha material do constituinte... 47 3.3 Contrastes e confrontos da presunção de inocência em perspectiva comparada... 54 4 O ACUSADO PRESUMIDAMENTE INOCENTE ENQUANTO OBJETO DO SENSACIONALISMO MIDIÁTICO... 60 4.1 O reflexo das publicações midiáticas: há como explicar a origem e a evolução da cultura socioinquisitiva no Brasil?... 67 4.2 A presunção de inocência e a liberdade de imprensa: colisão entre direitos fundamentais... 71 4.3 A influência da criminologia midiática ante os poderes republicanos e os julgamentos criminais... 81 4.4 Há meios capazes de frear a espetacularização do processo penal ocasionada pelos tribunais midiáticos?... 91 5 CONCLUSÃO... 99 REFERÊNCIAS... 103

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1 INTRODUÇÃO

Desde os tempos mais remotos, as pessoas em geral possuem verdadeiro fascínio em ver o semelhante que, supostamente, praticou um ato socialmente reprovável ser punido ao final de um julgamento, mesmo que, contra ele, não haja provas suficientes. Na condenação de Jesus Cristo, por exemplo, já se observava tal conduta, quando Pilatos perguntou à multidão o que faria com Jesus, e o povo o respondeu aos berros, sem qualquer demonstração de piedade: crucifica-o, crucifica-o!

Ocorre que tal comportamento, aparentemente arcaico, sobrevive nos dias atuais. Melhor aduzindo: a partir dos anos 90, com a intensificação dos meios de comunicação em massa ao veicularem informações superficiais e imagens exageradas, a mídia tornou ensurdecedora a voz da acusação em detrimento dos sons solitários da defesa, e o processo penal transformou-se em um verdadeiro espetáculo.

Não raro, a mídia sensacionaliza uma matéria criminal que, em regra, não é tão sensacional assim, visto que o Direito Penal é ultima ratio, e o público costuma absorver tais informações como se verdadeiras fossem. Casos de grande destaque são transmitidos por dias consecutivos, nos mais diversos veículos de comunicação – além do que é dito, sem qualquer cuidado, a respeito deles nas redes sociais -, o que constitui a gênese da criminologia midiáticaatual e impacta a organização da sociedade, bem como a estrutura de todo o sistema.

Instauram-se, assim, conflitos entre os valores jurídicos e midiáticos, de forma que quem mais perde com tudo isso é a pessoa vitimada por uma sentença midiática transitada em julgado antes mesmo da instauração de qualquer processo. Nesse contexto, as garantias que embasam o Estado Democrático de Direito são comprometidas fortemente, e o homem como sujeito de direitos, tal como apregoa a nossa Constituição de 1988, cede lugar ao sujeito indesejável, o qual deve ser retirado do convívio social o quanto antes.

Assim, a presunção de inocência, entendida como coração do Estado Democrático de Direito e princípio macro do nosso ordenamento jurídico, é objeto constante de mitigação pelo sensacionalismo realizado pela mídia, deixando a figura do julgador vulnerável ao clamor popular decorrente do apelo midiático. Além disso, os demais poderes da República não ficam isentos de tamanha influência, o que em nada tem a ver com as diretrizes do Estado de Direito, já que este deve se pautar, estritamente, pelo que reza a lei e não a mídia.

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Eis que emerge o objetivo deste trabalho: analisar como a presunção de inocência resiste e pode resistir frente à cultura socioinquisitiva e ao espetáculo que se tornou o processo penal pela divulgação dos meios de comunicação em massa. Tendo a consciência de que a presunção de inocência é um direito da sociedade, não só daqueles que se encontram na posição de investigados ou de acusados ao longo da persecutio criminis, percebe-se a urgência de o respeito a este princípio ocorrer pela sociedade e pelas decisões dos membros dos poderes da República – sobretudo, o Judiciário -, que se encontram pressionados ante o apelo emocional midiático e o clamor popular dele decorrente.

Partindo do contexto geral para o particular, o primeiro capítulo analisará a nova realidade em que a nossa sociedade emergiu após a Constituição de 1988. Por ter sido editada e promulgada após um período de forte tolhimento de direitos e ter nítido amparo na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a Constituição Cidadã preocupou-se em elencar um extenso rol de direitos e de garantias fundamentais, no sentido de conceder ao homem dignidade e proteção frente a eventuais arbítrios e excessos estatais – encabeçados pelo jus puniendi e pelo jus persequendi.

No segundo capítulo, o intento principal será o de examinar a presunção de inocência enquanto direito da sociedade. Buscar-se-á aparato no direito anglo-saxônico como forma de entender a sua gênese e a sua aplicação em terrae brasilis, inclusive, o porquê da divergência doutrinária que persiste até os dias atuais quanto às nomenclaturas presunção de inocência e presunção de não culpabilidade: qual seria o mais adequado perante a redação do artigo 5º, LVII, da CRFB/88?

Ainda, o referido capítulo contemplará a principiológica constitucional em perspectiva comparada. Como paradigma, serão utilizados alguns países europeus e sul-americanos que possuem maior proximidade jurídica, histórica ou comercial com o Brasil, no afã de alcançar uma melhor compreensão da disposição da presunção de inocência em nosso ordenamento jurídico.

De posse do conteúdo estudado nos capítulos anteriores, apresentar-se-á, no derradeiro, a preocupação central deste trabalho: o acusado presumidamente inocente enquanto objeto do sensacionalismo midiático. Questionar-se-á a origem e a evolução da cultura socioinquisitiva, que, aparentemente, transforma as pessoas em seres ávidos por contemplar a desgraça alheia. Por oportuno, será necessário se debruçar sobre o que ocorre com direitos fundamentais – in casu, a presunção de inocência e a liberdade de

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imprensa -, de mesma hierarquia, quando estão em rota de colisão, situação, frequentemente, presenciada em nosso ordenamento jurídico.

Ademais, uma análise sobre a criminologia midiática atual, a sua forma principal de manifestação e as suas incontáveis influências também serão indispensáveis, sobretudo quando essas influências estão, diretamente, vinculadas às formas de atuação dos poderes republicanos. Por fim, o capítulo terceiro será concluído indagando se há meios possíveis de frear a espetacularização do processo penal e o maniqueísmo que divide a nossa sociedade, há tanto tempo, em pessoas decentes e criminosos1, no qual serão propostas alternativas para tal cenário.

Utilizando-se de um viés garantista ao recolher informações e traçar ponderações, o presente trabalho constitui-se a partir do método de abordagem hermenêutico. Por meio de uma abordagem histórico-evolutiva, empregam-se técnicas de pesquisa documental indireta, principalmente jurisprudencial e bibliográfica com a análise de livros, artigos, monografias e dissertações de autores nacionais e estrangeiros, bem como de entrevistas, vídeos e programas televisivos, a fim de aliar ao estudo do impacto que os meios audiovisuais, geralmente, ocasionam na discussão de temas cotidianos da humanidade.

1

Referência à nomenclatura cunhada por Zaffaroni no livro “A palavra dos mortos: conferências de

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2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O SEU SUPORTE AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A CONSEQUENTE ADAPTAÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL À NOVA REALIDADE

A compreensão da imprescindibilidade da presunção de inocência2, bem como as preocupantes consequências da sua mitigação pelo sensacionalismo midiático, requer certa digressão histórica no sentido de, efetivamente, conhecer e entender a origem desse princípio – e, igualmente, direito fundamental - que teve o seu ápice, em nosso ordenamento jurídico, com o advento da Constituição de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã.

Nesse contexto, nas palavras do Ministro Barroso (2015, p. 482), o Brasil percorreu longo e difícil caminho até alcançar, de fato, o Estado Democrático de Direito3. Somente em 1808, trezentos anos após o descobrimento, a família real chegou ao Brasil, e, somente em 25 de março de 1824, o País teve outorgada a sua primeira Constituição. A famosa Carta Imperial de 1824, elaborada pelo Conselho de Estado e marcada pelo Poder Moderador, contemplou, timidamente, os direitos fundamentais - até então tratados como princípios desprovidos de força normativa.

Utilizando-se, ainda, das expressões de Barroso (2002, p. 480-481), nosso País começou a busca pela democracia tarde e mal. Afinal, mais de duzentos anos separam a vinda da família real para o Brasil e o vigésimo quinto aniversário da Constituição de 1988. Nesse longo caminho, diversos foram os percauços: passou-se do status de uma colônia semiabandonada produtora de numerosas riquezas para a sua metrópole até uma nação silenciada pelo autoritarismo da Ditadura Militar entre os anos de 1964-1985.

Em nosso meio, a mudança de paradigma começou na metade dos anos 80, tendo como base normativa a Constituição de 1988 e retomando-se a democracia como ideologia política nacional. Silva Júnior (2019, p. 51) assevera que, no paradigma do Estado Democrático-Constitucional, a Constituição é a ordem jurídica global e concreta

2

Frise-se, desde logo, que a presunção de inocência possui acepção diversa da presunção de não culpabilidade, conforme será explicitado mais adiante em subtópico específico para tal, qual seja o 3.2. 3

Mais do que tão somente Estado de Direito, nos ensinamentos de Canotilho (2003, p. 92-93), “qualquer que seja o conceito e a justificação do Estado – e existem vários conceitos e várias justificações – o Estado só se concebe hoje como Estado Constitucional. [...] O Estado constitucional democrático de direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito”. Dessa forma, o Estado Constitucional é de direito, mas é também democrático.

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que define a base teórica do ordenamento jurídico, cuja essência se encontra na declaração dos direitos fundamentais, posta em princípios.

Por meio deste sucinto relato, é possível relembrar a série de dificuldades que marcaram a nossa trajetória constitucional rumo ao que hoje se entende como Constituição Cidadã. Não há dúvidas de que a consagração, bem como a manutenção, do Estado Democrático de Direito, em terrae brasilis, deve-se a muita luta, suor e sangue derramados.

Logo, compreende-se o porquê de a Constituição de 1988 ter se preocupado em elencar um rol extenso de direitos e de garantias fundamentais que objetivam, em geral, proteger os cidadãos de atos arbitrários e ilegítimos do próprio Estado, bem como garantir a todos eles a dignidade humana, a qual fora elevada ao verdadeiro fundamento de nossa República Federativa, nos termos do artigo 1º, inciso III, da CRFB/88.

Não por acaso, como leciona Siqueira (2014, p. 104), a Constituição se destaca, em tempos de pós-positivismo, como o documento conformador de todo o direito, de modo que, para a continuidade da vigência de uma norma, esta deve ser compatível, material e formalmente, com o texto constitucional. Desse modo, a análise dos temas jurídicos públicos ou privados deve passar pelo filtro do texto constitucional.

É bem verdade, afinal Kelsen (1998, p. 263-264) já afirmava que a dinâmica do direito nasce com a elaboração da Constituição e segue por meio da legislação e do costume, até a decisão judicial e a execução da sanção. Esse movimento, no qual a ciência jurídica se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto), constituindo-se em um processo de individualização sempre crescente.

Nessa esteira, o Código de Processo Penal – assim como outros diplomas legais em nosso ordenamento jurídico - precisou se adaptar à nova realidade advinda após 1988. Melhor aduzindo, necessitou ser reestruturado e passou a ser visto sob o viés normativo das normas constitucionais democráticas e não mais, conforme afirma Silva Júnior (2019, p. 51), como um instrumento de força nas mãos do Estado.

Disso resultou um conjunto de transformações que afetaram o modo como se pensa e se pratica o direito no mundo contemporâneo. Afinal, não era crível que se continuasse adotando um sistema processual penal de forte sotaque inquisitivo diante de uma Constituição que preza, sobretudo, pela garantia da condição do homem enquanto

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sujeito de direitos4 e pelo respeito aos direitos fundamentais, ou seja, diante de uma Constituição garantista em essência.

Na dicção de Silva Júnior (2019, p. 51), precisou-se alterar o modelo ditatorial e policialesco com o qual o Código de Processo Penal de 1941 foi elaborado, a fim de adaptá-lo ao perfil constitucional, que tem como diretrizes as garantias e os direitos fundamentais. Mesmo em relação a dispositivos que não tiveram sua redação alterada com a Reforma Tópica5, o CPP deve ser enxergado sob a perspectiva democrática, alicerçada pelo rol de direitos fundamentais contemplados pela Carta Magna.

Todos os homens e todas as mulheres são seres humanos e merecem ser tratados como tal; a garantia de direitos deve se sobrepor a qualquer situação, ainda que seja o cometimento de um delito. Nos dizeres de Carnelutti (2009, p. 26), não é possível fazer uma clara separação dos homens entre bons e maus, pois isso resultaria de um intelecto que não está iluminado, a priori, pelo amor.

Nesse sentido, a lei, atendendo aos anseios da Carta Constitucional, deve ser justa, quando, então, harmonizam-se os conceitos de direito e de justiça. O homem deve ser sujeito de direitos e cumpridor dos deveres impostos a ele, resguardando as premissas do Estado Democrático de Direito ao tempo em que é, concomitantemente, salvaguardado por ele.

Em consonância com o entendimento de Silva Júnior (2019, p. 43), a densidade principiológica da Constituição de 1988, primordialmente no que se refere à declaração de direitos fundamentais concebidos como normas jurídicas elevadas à potência máxima, revogou diversos dispositivos do CPP e determinou uma (re)leitura e uma (re)interpretação com esteio na nova ordem jurídica, a fim de adequá-lo ao paradigma do Estado Constitucional que possui como meio e fim os direitos fundamentais.

4

Segundo Siqueira (2014, p. 108), “Sujeito de direito é a expressão tradicionalmente utilizada no universo jurídico para designar aquele que passa a ser visto pelo ordenamento como verdadeiro titular de direitos e obrigações”.

5

Silva Júnior (2019, p. 50) explica um pouco mais do movimento reformista, aduzindo que ”A despeito da necessidade de rearrumação das ideias a ser promovida com a edição efetiva de um novo Código de Processo Penal, a arte da interpretação deve ser utilizada como ferramenta para contornar as dificuldades para um olhar sistêmico e coerente do ordenamento processual criminal. [...] O sentido nuclear da reforma global do sistema processual penal é a sua adequação à Constituição de 1988, notadamente quanto a sua organização com base nos direitos fundamentais. Note-se que, após a Segunda Guerra Mundial, surgiu um novo paradigma constitucional que dá suporte para falar-se daquilo que se convencionou, entre os doutrinadores estrangeiros, denominar Estado

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2.1 Os direitos fundamentais: breve evolução histórica da condição do homem enquanto sujeito de direitos

O artigo 5º da nossa Constituição, com seus 77 (setenta e sete) incisos, elenca o que se denomina de “Direitos e de deveres individuais e coletivos”, ou seja, a verdadeira declaração das liberdades públicas. Correspondem aos clássicos direitos de liberdade, cumprindo, primordialmente, a função de direitos de defesa, ainda que tenham sido acrescidas novas liberdades e garantias.

Como é cediço, a CRFB/88 apresenta uma significativa inovação na seara dos direitos fundamentais, contemplando, no grau mais alto já visto em nosso ordenamento jurídico, direitos das mais diversas dimensões em perfeita sintonia com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 19486.

É importante lembrar que o acender das luzes, no tocante aos direitos fundamentais em nível mundial, deu-se com a Magna Carta inglesa do Rei João Sem Terra, de 1215. Segundo Torres (2015), este documento, por tudo o que significou para indicar um novo modelo de governo e de submissão do poder às deliberações de representantes do povo, tornou-se o real motivo pelo qual se vive em liberdade nos dias atuais7, quando cada homem e cada mulher se submetem à legalidade e à Constituição, unicamente, sob a égide dos valores da igualdade e da liberdade.

Entretanto, a aparição significativa dos direitos fundamentais é fruto da Revolução Francesa, com a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual, em seu preâmbulo, já destacava, solenemente, os direitos

6

Ressalte-se que a Declaração de 1948 reafirmou os ideiais trazidos com a Declaração de 1789, que, porventura, possam ter sido esquecidos pelo mundo pós-Guerra. Nas lições de Bonavides (2016, p. 588-589), com aquele documento, “[...] o humanismo político da liberdade alcançou seu ponto mais alto no século XX. Trata-se de um documento de convergência e ao mesmo passo de uma síntese. Convergência de anseios e esperanças, porquanto tem sido, desde sua promulgação, uma espécie de carta de alforria para os povos que a subscreveram, após a guerra de extermínio dos anos 30 e 40, sem dúvida o mais grave duelo da liberdade com a servidão em todos os tempos. Síntese, também, porque no bronze daquele monumento se estamparam de forma lapidar direitos e garantias que nenhuma Constituição insuladamente lograra ainda congregar ao redor de um consenso universal”.

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Albuquerque (2017, p. 19) complementa tal linha de pensamento, aduzindo que “A Magna Carta do rei João-sem-Terra teve em seu favor o fato relevantíssimo de não ter caído no esquecimento e, mais que isso, considerando o momento histórico, foi difundida e marcada culturalmente, tendo migrado como princípios constitucionais séculos depois para a América do Norte, onde encontrou acolhida nas primeiras Constituições do Continente”.

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naturais, inalienáveis e sagrados do homem. Positivou-se, a partir daquele instante, o respeito aos direitos e aos deveres do povo, de modo que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, tivessem como objetivo a conservação da Constituição e a felicidade geral8.

Ainda que incorporasse tais ideais, a Constituição de 1988 foi além – se comparada às anteriores - ao destinar um conjunto importante de normas de direito processual e, dentro dele, especificamente de normas processuais penais. Fundada na teoria dualista clássica, abrigou, de um lado, o evidente interesse público na repressão ao crime – isso porque há um capítulo da Carta Magna dedicado à segurança pública e ao papel das diferentes polícias (artigo 144) - e, de outro, o interesse do indivíduo de provar sua inocência.

O acusado - e mesmo o condenado – possui um conjunto de direitos a serem respeitados e caberá, normalmente, ao juiz tutelá-los. Afinal, como entende Barroso (2002, p. 91), a justiça, também no campo penal, é produto dialético do confronto entre pretensões antagônicas. De um lado, está a pretensão acusatória do Estado; de outro, tem-se a pretensão de liberdade do acusado em uma disputa, na qual poderes e direitos são delimitados constitucionalmente.

Nos dizeres de Silva Júnior (2015, p. 190), desde a Constituição de 1824, a doutrina de Beccaria, no que tange ao seu pensamento central sobre o processo penal, vem sendo mantida, de forma que os fundamentos do direito processual penal se confundem com os próprios direitos fundamentais. A despeito de o processo ser um instrumento para o poder público garantir a ordem social, ele constitui meio de tutela dos direitos fundamentais do cidadão, de forma que o dever-poder de punir do Estado deve ser exercido na perspectiva democrática.

Importante atentar que garantias não podem – e nem devem – ser confundidas com direitos. Isso porque as garantias funcionam em caso de desconhecimento ou violação do direito, ou seja, existe a garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar. E tal distinção possui fundamental importância, pois fazer os termos sinônimos, segundo Bonavides (2016, p. 538), é um ato reprovável aos olhos da doutrina atual que separa os dois institutos com nitidez.

8

Vide DDHC. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-

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Nas lições de Bonavides (2016, p. 538), professor de todos nós, tal equívoco ocorre sempre que a garantia é posta numa acepção em conexidade direta com o instrumento de organização dos fundamentos e dos princípios do Estado, qual seja a Constituição. Se tal confusão fosse aceita, seria deveras complicado fincar um conceito preciso e prático de garantia constitucional, o que acarretaria, sem dúvidas, o obscurecimento de uma das noções mais valiosas para o entendimento da progressão valorativa do Estado liberal em sua passagem para o Estado social.

Compreendida a diferença entre os termos acima, resta claro que a garantia se apresenta como requisito da legalidade, defendendo o direito contra possíveis ameaças e é, basicamente, pelas vias doutrinária e forense que as garantias constitucionais promovem a defesa da liberdade do cidadão contra os abusos e a violência do Estado. Emerge, deste ponto, a condição do homem enquanto sujeito de direitos fundamentos, digno de proteção.

Não sendo coisa, o homem possui direitos fundamentais, ou seja, direitos vigentes que são, na pura essência, os direitos da liberdade de cada indivíduo. Tal vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana conduz, indubitavelmente, ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana, a qual se manifestou, primeiramente, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Naquela época, pretendia-se discutir as balizas da sociedade, mas, sobretudo, do sistema processual penal, abalado profundamente após os tempos sombrios da Santa Inquisição9.

À época, os pensadores da nova corrente não eram apenas homens de leis e não almejavam tão somente a substituição do procedimento penal da Inquisição. Fala-se, em verdade, de filósofos, escritores, historiadores, diplomatas e também juristas, os quais expunham toda a sua insatisfação com o status quo político, social, econômico e, por conseguinte, jurídico vivido durante o período nefasto da Inquisição.

Tais pensadores, então, insurgiram-se contra o predomínio do poder central em todos os campos e contra o seu total descomprometimento com os interesses e com as necessidades da população. Limitando-se ao que releva como objeto deste estudo, a maior alteração foi quanto ao novo dimensionamento que se deu ao indivíduo diante do poder estatal central.

9

De forma objetiva, como define Reinaldo (2019, p. 12), “a Santa Inquisição foi um tribunal eclesiástico instaurado no século XIII com o objetivo de identificar e punir hereges e feiticeiras (os)”.

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Para a corrente filosófica inaugurada no século XVIII, pós Revolução Francesa, o ser humano não deveria – e nem poderia - ser mais visto como inimigo do Estado, mas sim como fonte e destino de seu poder e das suas ações. Ao lado da consciência da necessidade de um ente supraindividual (Estado) com os deveres de reger e de proteger a sociedade para garantir sua melhoria e aperfeiçoamento, colocou-se, no mesmo patamar, o ser humano.

Melhor aduzindo, o ser humano passou a ser o início e o fim do agir estatal: o início, por ser ele, como integrante do corpo social, a única fonte legítima do poder, apenas exercido pelo Estado, e o fim, porquanto deve ser em seu favor e para sua melhoria de condições que o Estado deve atuar.

Logo, é possível concluir que, para aquela época do pensamento humano, qualquer agir estatal que não tivesse como objetivo a mais profícua ação em favor do indivíduo se deslegitimaria na origem, pois o Estado agiria em interesse próprio ou contra o indivíduo, desmerecendo o poder que a ele o cidadão conferiu.

O Estado deixa de ser fruto da força ou da hereditariedade e passa a ser fruto da vontade (contrato) social, contexto tal em que o indivíduo ocupa papel primordial. Em verdade, o indivíduo passa a ser valorizado, pois se retira a pressuposição da maldade intrínseca e do pecado original que, até então, era-lhe atribuída e passando a figurar como sujeito de direitos, na mais fiel acepção de tal expressão.

Neste cenário, as mudanças passam a ter justificativas sociais e econômicas comuns, traduzidas, unicamente, na mudança do poder político reinante por meio não apenas da queda de seus ocupantes, mas, principalmente – e essa foi uma característica da Revolução Francesa –, pela mudança dos paradigmas até então vigentes.

O Estado não mais deveria ter como escopo a perpetuação e o locupletamento por meio da força produtiva de seus súditos, mas deveria a eles servir e voltar as suas preocupações no sentido de lhes propiciar melhores condições de vida. Filosoficamente, portanto, os pensadores iluministas rompem com a ideia de poder fundada em critérios religiosos, militares ou hereditários, invertendo-se a lógica até então vigente.

A secularização estabelece a racionalidade como novo alicerce para a construção de um novo sistema político, social, econômico e, como não poderia deixar de ser, jurídico. A racionalidade leva à valorização do indivíduo diante do Estado e este passa a ser justificado de forma legítima pelo contratualismo. A racionalidade, portanto,

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coloca o indivíduo no centro de importância do Estado Iluminista, passando a ser para quem estava voltado todo o atuar público.

As ideias revolucionárias na França, dada a conquista de espaço político na Assembleia Francesa, têm, na lei, o seu pilar fundamental de sustentação. Dessa forma, a lei passa a ser o meio dos revolucionários inscreverem seus ideais, e a secularização impunha que a lei não fixasse privilégios e não reconhecesse vantagens políticas ou sociais de um indivíduo diante do outro.

Nesse contexto, a lei deveria ser elaborada de forma abstrata, geral e sem qualquer diferenciação entre os cidadãos, fazendo que a concepção de igualdade se tornasse um dos fundamentos do pensamento revolucionário iluminista. Afinal, se a finalidade do Estado é a promoção do bem comum, cabe-lhe, no entender de Silva Júnior (2015, p. 191), efetivar a justiça com o desenvolvimento da macropolítica que deve ser pensada para efetivar os direitos incrustados no sistema jurídico.

Dentre as revoltas do século XVIII, a mais significativa para a história é a Revolução Francesa, da qual decorreu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, posteriormente promulgada em 1793. Tal documento serviu de base para a mudança de pensamento em todo o mundo. E não é exagero falar que os reflexos foram mundiais, afinal, a França era o grande palco das transformações daquela época, de modo que a propagação das ideias lá nascidas não se restringia ao território europeu. Então, o cenário das grandes transformações que atingiriam o mundo inteiro estava firmado: território francês com as mentes brilhantes que lá habitavam. Silva Júnior (2015, p. 143) faz questão de pontuar a diferença existente entre o movimento francês e o norte-americano, no que atine à preocupação de cada um desses movimentos, e, consequentemente, ao reflexo que essas preocupações ganhariam pelo mundo afora.

A despeito de ter como contexto o mesmo pensamento filosófico, o movimento francês guarda peculiaridade distinta do estadunidense, visto que este foi um movimento separatista, enquanto aquele objetivou romper o sistema político do Estado para instaurar outro, cujo poder político, embasado na premissa de que ele emana do homem e deve respeitar os direitos naturais deste, não seria essencial apenas ao povo francês, mas aos demais povos pelo mundo afora.

Ora, tal distinção é imprescindível para a compreensão da difusão dos direitos fundamentais como se encontram positivados hoje. Os pensadores franceses, diferentemente dos norte-americanos, priorizaram, com fulcro no movimento iluminista

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que embasou a Revolução Francesa de 1789, a edição de uma declaração dos direitos do homem em vez da edição imediata de uma Constituição10.

Tal iniciativa foi de suma importância, afinal a Constituição Francesa seria escrita somente depois, forjada em uma gama de direitos fundamentais que fornecessem as balizas necessárias ao Estado Democrático de Direito11. Para Silva Júnior (2015, p. 143), os revolucionários franceses acreditavam que professavam a verdade das verdades ao contrário dos norte-americanos que estavam mais preocupados em concretizar sua independência e criar o seu próprio regime político.

Por isso, os franceses sustentavam mais questões quanto à ordem política e aos direitos da liberdade civil individual, visto que, segundo o entendimento de Dimoulis e Martins (2018, p. 27), apoiando-se nas ideias ilumistas, tinham por objetivo a fundamentação racional das decisões políticas, perseguindo ideias universalistas.

Não é por acaso que, já no artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, resta posto que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, de modo que as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum. Tal construção, por si só, confere o novo enfoque do pensamento daquela época: o homem como sujeito de direitos e como centro da nova organização do Estado. A igualdade entre os homens perante a lei foi, ainda, reforçada com o artigo 6º da supramencionada declaração12.

Ressaltada a importância inquestionável da Declaração de 1789 para a solidificação e a positivação dos direitos fundamentais em nível mundial, é preciso entender o processo de internacionalização desses direitos no cenário constitucional brasileiro. Como já aduzido, a Constituição de 1988 possui papel de destaque no que se

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“Destarte, os colonos norte-americanos não se sentiam devidamente representados no parlamento da metrópole. Surgia historicamente um ceticismo acentuado dos colonos, vale dizer, de parte do “povo” em relação aos órgãos de representação política do Poder Legislativo, pois um parlamento democraticamente legitimado pode criar – eis a lição historicamente incontestável – normas que prejudiquem minorias e indivíduos. Por isso, o documento jurídico chamado “Constituição” que deveria fundamentar o poder soberano e legitimar o legislador, isto é, a maioria parlamentar, surgiu nos Estados norte-americanos, declarados independentes em 1776, com o principal objetivo de garantir a liberdade individual em face de todos os poderes estatais, ou seja, também em face do legislador ordinário” (DIMOULIS; MARTINS, 2018, p. 27).

11

Não é de se estranhar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, já em seu artigo 2º, verse, in litteris, que “O fim de toda a associação política é a conservação

12

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.

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refere ao enfoque conferido aos direitos fundamentais, mas não foi só nessa Constituição que tais direitos começaram a se revelar em nosso ordenamento jurídico.

Efetivamente, o movimento constitucionalista no Brasil teve início em 1821, como um reflexo direto das transformações que estavam ocorrendo em Portugal no ano anterior – por influência da Independência Americana e da Revolução Francesa, frise-se. Tais mudanças foram determinantes para o surgimento de uma nova concepção de Estado democrático-liberal, assegurando a divisão dos poderes e os direitos dos homens em novas Constituições para Portugal e, consequentemente, para a terrae brasilis.

A Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824, estabelecia a organização dos poderes políticos e definia os direitos fundamentais. No entender de Silva Júnior (2015, p. 150), a declaração dos direitos fundamentais estava contemplada na Constituição de 1824, inscrita que foi nos 35 (trinta e cinco) incisos do artigo 179, tendo como diretriz, conforme o caput do referido artigo, a liberdade, a segurança individual e a propriedade13.

Ainda, Silva Júnior (2015, p. 151) afirma que a Constituição Imperial destinou 15 (quinze) itens no artigo 179, plasmando garantias penais e processuais penais, sendo que treze deles se relacionavam diretamente às questões de ordem processual, sendo algumas dessas grandes avanços para a época – por exemplo, a independência do Poder Judiciário (artigo 179, alínea 12, última parte).

Com o avançar do tempo, a fonte de inspiração transmudou-se da Europa para os Estados Unidos; deixou-se um pouco de lado o modelo constitucional francês para dar lugar, em importância, à Constituição norte-americana. Não é por acaso que o sistema republicano e a forma federativa estabelecidos no Brasil recebem influência do constitucionalismo estadunidense, tendo a nossa primeira Constituição republicana sido editada sob a epígrafe de Constituição dos Estados Unidos do Brasil.

Ressalte-se que, sendo a Constituição norte-americana bastante concisa, nossos constituintes precisaram buscar complementações nas Constituições suíça e argentina, as quais também possuíam forte inspiração no modelo federalista estadunidense. Entretanto, as transformações não pararam por aí, pois, com o cenário mundial em chamas com as mudanças empreendidas pela Revolução Russa e pela

13

“Art.179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte”.

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Primeira Guerra Mundial, os países precisaram se ajustar à nova ordem mundial instaurada.

Afirma Silva Júnior (2015, p. 154) que, com o subterfúgio de contemplar os homens de uma outra categoria de direitos fundamentais, o novo modelo de Estado proposto, não obstante a manutenção da divisão dos poderes e a salvaguarda dos direitos fundamentais, rompe com a doutrina do Estado Liberal e faz instaurar o Estado Social, com forte viés intervencionista.

Posteriormente, em decorrência do regime autoritário imposto a partir de 1964, a Constituição de 1967 manteve, ainda que de forma modesta, a tradição de homenagem aos direitos fundamentais. Em que pese, na prática, tais direitos estavam bem longe do seu ideal de aplicação, restando positivados no texto contituinte, meramente, a título pro forma meramente.

Perdendo força já no final dos anos 70, a Ditadura Militar foi cedendo lugar ao processo de redemocratização. O Congresso Nacional produziu um texto, amplamente debatido nos mais diversos ambientes acadêmicos e jurídicos, a fim de oportunizar a saída de tempos tão sombrios, de limitada garantia de direitos fundamentais, para tempos de luz, tempos de glória, em que tais direitos representassem o cerne do sistema jurídico brasileiro, com hierarquia superior às demais normas jurídicas.

A força desses direitos está presente no Título II da Constituição de 1988, que os elencou e os detalhou, prevendo, de forma direta e específica, quais direitos fundamentais são tutelados pelo Estado. Não apenas foram mantidas as garantias que já estavam positivadas nas Constituições anteriores como foram acrescidas outras que ainda não tinham ganhado status constitucional, a exemplo da presunção de inocência e do direito ao silêncio, contemplando, prima facie, o valor democrático-constitucional.

Os direitos fundamentais são aqueles inerentes a cada ser humano, não necessitando que se faça nada para merecê-los ou possuí-los. São interesses considerados imprescindíveis, integrando parte do patrimônio jurídico do Estado, que disponibilizará os instrumentos necessários para assegurá-los.

Com o movimento constitucionalista brasileiro, o qual passou por diversas fases, tais direitos foram, gradativamente, crescendo em importância no cenário nacional, atingindo o seu ápice na Constituição Cidadã, passando, no entender de Silva Júnior (2015, p. 163), à posição de espinha dorsal do sistema jurídico brasileiro, assumindo funções hegemônica, estruturante e interpretativa de todo o sistema normativo.

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Ainda, como aduzem Dimoulis e Martins (2018, p. 140), é possível falar em dimensão objetiva dos direitos fundamentais quando estes atuam como critério de interpretação e de configuração do Direito infraconstitucional. É o chamado princípio da interpretação conforme a Constituição14 que, uma vez ignorado ou inaplicado quando cabível, afronta, potencialmente, o texto constitucional.

A partir do reconhecimento de que possuem força normativa e hierarquia superior às demais normas jurídicas do nosso sistema, os direitos fundamentais só podem ser relativizados por outros direitos fundamentais quando em caso de colisão, pois aqui se defende que eles não assumem caráter absoluto. Portanto, apenas existindo, o homem já possui direitos fundamentais: é sujeito de direitos, e são tais direitos ditos fundamentais - os quais devem ser respeitados e garantidos a qualquer custo - que buscam fazer da vida do homem digna, livre e igual15.

2.2 Os fundamentos do direito (dever-poder) de punir do Estado: as balizas existentes ao jus puniendi e ao jus persequendi estatais

De fato, os direitos fundamentais vivenciam o seu melhor momento do constitucionalismo brasileiro, reconhecido pela ordem jurídica positiva16, em que pese ainda esteja bem longe do ideal. O conjunto desse extenso catálogo de direitos fundamentais regrou e limitou, mas também legitimou o direito (dever-poder) de punir do Estado, o qual se revela por meio do jus persequendi e do jus puniendi.

Ao estudar a razão de ser do Estado, a sua concepção tem origem na necessidade de formalização do poder político com força coercitiva suficiente para

14

De forma sintética, explicam Dimoulis e Martins (2018, p. 141): “quando o aplicador do direito está diante de várias interpretações possíveis de uma norma infraconstitucional, deve escolher aquela que melhor se coadune às prescrições dos direitos fundamentais”.

15

Relembrando o artigo 1º, da CRFB/88, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e, tem como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana (inciso III).

16

“A Constituição de 1988, influenciada por multiplicidade de concepções jurídicas e por documentos constitucionais diversos, terminou por acolher as duas fórmulas normalmente excludentes. Previu, assim, no inciso LIV do art.5º, de maneira ampla: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Em seguida, especificou, em normas autônomas, alguns dos significados evidentes do princípio, como, e.g, o contraditório, a ampla defesa e o direito de recorrer, inscritos no art. 5, LV. A este propósito, embora não haja consenso nem cláusula explícita, parece-me de melhor inspiração o entendimento de que, ao menos no processo penal, decorre do sistema constitucional a garantia do duplo grau de jurisdição – com pleno efeito devolutivo – implícita no princípio geral e na regra específica do direito de recorrer” (BARROSO, 2002. p. 91).

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garantir a segurança nas relações sociais. Com o surgimento do Estado, ainda nas suas formas mais primitivas, revelou-se que a tarefa de distribuição da justiça, como modo de manutenção social, teria, segundo Albuquerque (2015, p. 15), de ser ao ente estatal confiada, passando este a perseguir e a punir quem cometesse atos ilícitos.

Com a institucionalização da persecução penal, no entender de Almeida (2014, p. 06), o Estado se viu obrigado a criar um procedimento para a aplicação da pena. Entretanto, sob a égide do absolutismo, este procedimento persecutório era deveras arbitrário e invasivo. Ao ser instituído o Estado liberal, os revolucionários cercaram-se de cuidados para que o Estado não mais voltasse a interferir em suas vidas, de modo que as leis - e não mais o monarca – deveriam reger a sociedade e conferir direitos aos cidadãos em todas as esferas, protegendo-os de sanções arbitrárias.

Dentre os instrumentos dos quais o Estado poderia se valer para tal, o mais eficiente, aos olhos de Silva Júnior (2015, p. 126) – entendimento este do qual se faz coro – é o dever-poder de punir, que se mostra como uma das funções essenciais do Estado desde que atue em consonância com as balizas previstas na CRFB/88, quais sejam os direitos fundamentais, em atenção ao princípio da legalidade constitucional.

Ao falar em jus persequendi, faz-se referência ao direito (dever-poder) de ação do Estado, isto é, o Estado é incumbido de perseguir o autor do delito, o qual advém dos direitos fundamentais na perspectiva objetiva17. O jus puniendi também se trata de um direito (dever-poder) do Estado, onde ele tem a permissão para punir, aplicar sanção penal, a quem pratique um ato ilícito, tipificado como crime.

Portanto, é necessário que o Estado exerça o jus persequendi (direito de ação, de perseguir o autor do crime) para que o jus puniendi (direito de punir) possa ser aplicado. Afinal, conforme ressalta Ferreira (2008, p. 104), a Constituição, vista como ordem objetiva de valores, impõe normas de comportamento e de convivência aos indivíduos, estabelecendo padrões axiológicos e éticos que incidem sobre todas as esferas jurídicas.

Nesse contexto, os direitos fundamentais impõem uma delimitação ao dever-poder do Estado, ou seja, delimitam o exercício do poder do ente público. No entender de Silva Júnior (2015, p. 127), o direito de punir é poder político do Estado e

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Consoante a doutrina de Silva Júnior (2015, p. 128), isso acontece porque “na visão moderna decorrente de um sistema criminal pautado de acordo com o entendimento de que a teoria do processo penal tem raiz nos direitos fundamentais, o jus persequendi é oriundo da perspectiva objetiva dessa classe de direitos”.

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monopólio dele, que deve ser exercido de forma legítima e em estrita observância aos direitos fundamentais do homem. No mesmo sentir, a política criminal, justificadora do direito de punir, deve seguir critérios que se conformem com a estrutura política do próprio Estado, a fim de evitar rupturas com as premissas constitucionais.

Se o processo penal regula o dever-poder de punir do Estado, na perspectiva democrática, deve, segundo Silva Júnior (2015, p. 190), ser um instrumento de tutela essencial dos direitos fundamentais do cidadão. Logo, embora o processo sirva de instrumento para que o poder público exercite a persecução penal com legitimidade, ele, ao mesmo tempo, possui como principal função a de estabelecer os limites do uso da força estatal na busca da punição do agente que infringiu a lei.

Com a secularização, os Estados deixaram de ser teocráticos, e o direito de punir não mais encontra justificativa na religião, mas sim na representação política. Para Silva Júnior (2015, p. 127), com o movimento democrático nascido após a Segunda Guerra Mundial, o direito (dever-poder) de punir é resguardado como forma de defesa social, sob uma visão moderna que tem raiz teórica nos princípios normativos que enunciam os direitos fundamentais da pessoa humana.

Quanto a este assunto, pondera Grinover (1982, p. 13) que, no Estado moderno, não existe razão para se debater o problema da possibilidade ou impossibilidade de autolimitação de atribuições pelo próprio Estado, pois esta limitação resulta de um poder superior, o constituinte, em cujo exercício se manifesta a vontade político-institucional do povo.

Nesse contexto, a liberdade do cidadão é demarcada como limite à atividade estatal, de modo que todas as diversas funções do Estado são limitadas pela liberdade do indivíduo. Nesta perspectiva, portanto, o Estado, no exercício das suas funções, encontra uma série de limites.

Tais limites, diante da posição hegemônica conferida pela Constituição de 1988, expressam, segundo Silva Júnior (2015, p. 164), a teoria constitucional do processo penal, que possui, como uma de suas categorias, o princípio da presunção de inocência, o qual será discutido, mais detalhadamente, a seguir.

Resta nítido que o Estado possui o papel de garantir a liberação do homem dos obstáculos políticos, econômicos, sociais e naturais que o aflijam18. É exatamente,

18

Enriquecendo as discussões, Barroso (2002, p. 89-90) assegura que “A Constituição contém, ademais, ainda no art. 5º, um conjunto de preceitos restritivos do poder do Estado de proceder à prisão de

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neste ponto, que o poder estatal e a liberdade se entrelaçam como forma de garantir a soberania dos direitos fundamentais, tal como resta prevista em nosso ordenamento jurídico.

Oportunamente, Grinover (1982, p. 15) relembra que, no processo penal, os direitos do acusado se colocam como limite à função jurisdicional e, de outro lado, é o próprio processo penal que se perfaz em instrumento de tutela da liberdade jurídica do acusado. O Estado, ao exercer a sua função, deve colocar-se frente a frente com os direitos de liberdade daquele contra quem vai exercer o jus puniendi.

Ora, a liberdade é o bem máximo tutelado pelo Estado Democrático de Direito, sendo esta premissa uma expressiva limitação à atuação excessiva do Estado. Mais que punir, controlar ou prender, o Estado deve zelar pela correta aplicação dos direitos fundamentais, de modo que a liberdade, entendida como direito inegociável do homem, seja resguardada.

Na mesma temática, Miranda (2002, p. 510) pondera que as liberdades individuais são direitos supraestatais do homem inorganizáveis pelo Estado. Cabe ao Estado, apenas, protegê-los, dentro do seu território e onde quer que tenha jurisdição, de modo que o cerne do problema deixou de ser, nos dias atuais, o da limitação às limitações para ser o de garantia.

Binder (2003, p. 25), referindo-se ao ideal que se aspira para o processo penal atualmente, postula que é a preocupação em estabelecer um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado. Neste caso, procura-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, na essência, proteger a liberdade e a dignidade da pessoa humana.

O próprio Marquês de Beccaria (2013, p. 24) já afirmava que o conjunto das pequenas porções de liberdade do homem constitui o fundamento do direito de punir e que todo poder que se afastasse da base garantidora destas porções de liberdade seria visto como abuso e não mais como justiça.

pessoas, estabelecendo a presunção de inocência (“LVII - Ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado da sentença penal condenatória”), os casos de prisão legal (“LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”), o dever de relaxamento da prisão ilegal (“LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”) e a proibição da decretação de prisão quando a lei admitir a liberdade provisória (“LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”)“.

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O conceito moderno de liberdade considera o cidadão na sua individualidade. Ao longo da História, as garantias de liberdade foram estruturadas sobre o amparo da liberdade negativa, limitando a conduta estatal para evitar abusos e invasões por parte do Estado nos direitos individuais.

Segundo Silva (2004, p. 235), o artigo 5º, inciso II da Constituição Federal revela duas dimensões: de um lado o princípio da legalidade e do outro o direito de liberdade de ação. Melhor aduzindo, do referido artigo, depreende-se a ideia de que a liberdade só pode sofrer restrições por normas jurídicas preceptivas (que impõem uma conduta positiva) ou proibitivas (que impõem uma abstenção), provenientes do Poder Legislativo e elaboradas segundo o procedimento estabelecido na Constituição.

Dito de forma mais nítida: a liberdade só pode ser condicionada por um sistema de legalidade legítima. E faz todo o sentido pensar segundo o referido doutrinador, afinal a liberdade é a regra no Estado Democrático de Direito – sendo a prisão e todas as formas de cerceamento daquela meras exceções.

Endossando tal posicionamento, Barroso (2002, p. 89) preleciona que o princípio da legalidade, quando aplicado ao direito penal, converte-se no princípio da reserva legal, expresso no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição, sendo, indiscutivelmente, de reserva de lei formal. De parte isto, a dignidade constitucional do direito de liberdade é incompatível com a precariedade da eficácia de tais atos normativos oriundos do Executivo.

Ora, a Constituição é o primeiro e o mais importante documento de superioridade jurídica de um Estado em relação aos demais. Traça a proteção jurídica do indivíduo em face do Estado, junto aos ideários de autonomia, autodeterminação e participação. Bonavides (2016, p. 640) assegura que “sociedade sem Constituição é sociedade sem liberdade”, de forma que liberdade significa que ninguém deve se submeter a qualquer vontade, mas apenas à vontade da lei quando esta for, formal e materialmente, constituída.

Isso porque a lei no Estado Democrático de Direito é a concretização do conteúdo capitulado na Constituição, e, nesse papel, opera a transformação da sociedade e influencia a realidade social. Quando o Estado determina um modo de condutas de acordo com um espírito democrático, limita a sua própria atividade em relação às interferências junto aos indivíduos, ao passo que garante a eles os direitos fundamentais como a vida, a liberdade e a dignidade da pessoa humana.

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Nesse contexto, é por meio da noção de Constituição em um Estado Democrático de Direito que deve ser realizada a nova interpretação processual penal. Em consonância, assevera Lopes Júnior (2017, p. 34) que é por meioda consciência de que a Constituição deve, efetivamente, constituir que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá por meio da sua instrumentalidade constitucional.

Melhor aduzindo, o processo penal contemporâneo somente se legitima ao passo que se democratiza e é devidamente constituído a partir da Constituição. Logo, foi a introdução de um sistema democrático pela Constituição de 1988 que evidenciou a necessidade de adaptação do Código de Processo Penal – editado com forte sotaque inquisitivo – à nova realidade, em que o agir estatal encontra, nos direitos fundamentais, as balizas para a sua atuação.

Tal realidade clama por um processo penal que não mais se limita à busca da verdade real como o seu fim único ou principal, mas também - ou principalmente também - à busca e à efetivação das garantias processuais, o que não deve ser visto como sinônimo de impunidade.

Nesta perspectiva, a democratização do processo deve refletir sobre a sua instrumentalidade, ou seja, a sua utilização para a determinação e para a imposição da pena, pois esta não pode ser instrumento de poder absoluto, tornando o jus puniendi e o jus persequendi estatais ilimitados, sobretudo quando o bem jurídico tutelado é a liberdade. O regime democrático é uma garantia geral da realização dos direitos fundamentais, portanto.

Uma vez decorrente do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, consagra-se a liberdade como pressuposto para o Estado Democrático de Direito nos moldes em que hoje se conhece. É na democracia que a liberdade encontra o seu campo de expansão, fazendo o homem dispor da mais ampla possibilidade de controlar os meios que conduzem à sua realização enquanto sujeito de direitos.

De forma sintética, Lopes Júnior (2017, p. 34) ressalta que o processo não pode mais ser visto como simples instrumento a serviço do poder punitivo, visto que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Ressalte-se que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e, em momento algum, defende-se isso para a realidade social.

Defende-se, em verdade, que o agir democrático e garantista, no processo penal, é o caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena, somente se

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