• Nenhum resultado encontrado

4.1. A DAPTAÇÃO E M P OPULAÇÕE S H UMANAS

4.1.1. Adaptação Não-Biológica

Desde o trabalho seminal de Emille Durkheim, na virada do século XX, os cientistas sociais tendem a aceitar que o comportamento humano não é adaptativo no sentido biológico, e que a maior parte dos padrões de comportamento são melhor entendidos em termos do contexto social no qual ocorrem. Assim, acreditam que o comportamento humano e as normas culturais são reflexos da sociedade da qual fazem parte. É a cultura, ou a sociedade, que determina no que um indivíduo acredita, ou o que ele faz. Por outro lado, biólogos evolutivos trabalhando com o paradigma Darwiniano acreditam que o comportamento do indivíduo é desenhado de forma a maximizar seu fitness genético. Conseqüentemente, é o indivíduo (ou a coletividade de indivíduos morando juntos) que molda a sociedade e suas crenças para servir a seus próprios interesses (Dunbar 1993).

Apesar de não haver consenso quanto à definição do termo adaptação na antropologia, a maior parte dos antropólogos não exige que as adaptações sejam livres de conseqüências deletérias. Algumas vezes, os antropólogos utilizam o conceito de adaptação nas esferas cultural e comportamental para se referir aos mecanismos homeostáticos e seus resultados (Rappaport 1968). Outros, definem adaptação comportamental e cultural em termos das escolhas individuais entre as alternativas existentes aos problemas impostos pelo meio ambiente (Pelto e Pelto 1989). Conforme enfatizado por Ellen (1982: 249), boa parte da confusão inerente às discussões sobre adaptação cultural surge de julgamentos feitos a priori sobre o que é adaptativo, e generalizações post hoc sobre o

que foi adaptativo 5.

Entre os antropólogos evolutivos existe um consenso crescente de que os genes humanos e a cultura evoluíram como sistemas relativamente independentes. Os genes estão sujeitos à seleção natural, enquanto a adaptação cultural é uma das formas através das quais uma população humana pode adquirir uma certa vantagem em relação à outra. Mesmo podendo haver influência da cultura e da sociedade humanas sobre as adaptações que irão prosperar e ser transmitidas aos descendentes, a sobrevivência cultural e a genética não são, necessariamente, conectadas. De fato, processos de mudança cultural, tais como o colonialismo ou o uso da violência, podem resultar em morte cultural mesmo que o sistema esteja bem adaptado ao ambiente físico (Morphy 1993).

Na opinião de Dunbar (1993), a diferença teórica entre biólogos e cientistas sociais parece ser um problema de referência. No curto prazo, o comportamento de um indivíduo é realmente determinado pela cultura na qual ele nasceu mas, numa perspectiva temporal evolutiva, é o indivíduo que determina a cultura (Dunbar 1993).

De acordo com Harrison (1997a), adaptabilidade é uma propriedade tanto do indivíduo quanto do grupo como um todo. A adaptação envolve mudanças nas atividades físicas e sociais de grupos humanos para atender às demandas do meio ambiente. Mas, também, significa mudanças no ambiente em si (biótico e abiótico), de forma a atender às demandas dos seres humanos. Nesse sentido, o ambiente refere-se à totalidade da paisagem na qual a comunidade está inserida, incluindo fatores bióticos e abióticos (Harrison 1997a: 401). É importante mencionar que, com relação às populações humanas, o ambiente vai muito além de seu habitat imediato, dado aos processos migratórios, as atividades mercantis, e a consciência social, por exemplo (Harrison 1997a).

Na antropologia social britânica, os conceitos de adaptação e cultura foram praticamente negligenciados no século passado, como resultado de uma rejeição ao paradigma evolucionista do século XIX e sua substituição pelo paradigma funcionalista. Por outro lado, na antropologia americana, a cultura como um sistema adaptativo tem sido investigada pela ecologia cultural e pela teoria evolutiva. Até a metade do século XX, poucos autores britânicos adotaram esta abordagem, como Darryl Forde, E vans-Pritchard (em Os Nuer, de 1940) e Richards (1939). Foi somente após as décadas de 1960 e 70 que o interesse pelas abordagens ecológicas se desenvolveu na antropologia britânica, como pode ser visto nos trabalhos de Burnham e Ellen (1979), Dyson-Hudson (1966), Ellen (1978), Ingold (1980), Morphy (1993), Woodburn (1968). Tanto Ellen (1982) quanto Morphy (1993) discutem de forma abrangente o conceito de adaptação cultural.

Ellen (1982: 241) definiu adaptação como “...a means of maintaining conditions of existence in the face of change”. Mesmo assim, ele salientou que um traço adaptativo só pode ser definido em termos de seus efeitos sob as condições presentes, e não em termos da forma como passou a existir. Neste sentido, é impossível definir adaptação em relação a fatores únicos: “...the processes of adaptation are almost as diverse as the traits through which it takes place·” (p. 242).

De acordo com E llen (1982: 238), a adaptação cultural pode acontecer através de três mecanismos distintos, que podem ser combinados de diversas formas:

1. Sobrevivência diferencial de populações: baseada na existência de uma variabilidade de traços culturais que podem ser selecionados pelos indivíduos e pelas culturas. A escolha de traços culturais pode se mostrar mais ou menos adaptativa, dependendo das circunstâncias, afetando as chances de sobrevivência de uma dada população. Mas apenas uma pequena parte das adaptações culturais conhecidas pode ser explicada através deste mecanismo, especialmente com relação às práticas que afetam diretamente a mortalidade e a natalidade. Além do mais, devemos ser cuidadosos para não confundi-las com seleção natural:

“Cultural adaptation can never be entirely equivalent or analogous to natural selection. Variation and selection are not remotely similar to biological processes. Cultural variation is due to invention, discovery, borrowing, plans and unconscious accidents (Service, 1971: 10). Culture cannot replicate and transmit traits between individuals and generations precisely, and traits are subject to infinite blending and reinterpretation.” (p. 239)

2. Problemas percebidos e respostas conscientes: indivíduos e populações podem modificar ativamente seu comportamento para manter ou alterar certas condições, melhorar as existentes e lidar com os problemas ambientais. De qualquer forma, a adaptação depende dos problemas percebidos e da existência de condicionantes culturais que afetam as respostas. De maneira geral, esta é a forma mais comum de adaptação cultural (Ellen 1982).

3. Acaso: algumas adaptações culturais são efeitos inconscientes de práticas culturais e sociais. Pela mesma lógica, a simples existência de uma adaptação não significa que ela seja necessária (Ellen 1982).

Morphy (1993: 100) definiu adaptação como a sobrevivência de um grupo em dado ambiente ou seu ajuste para sobreviver em um novo ambiente (referindo-se mais ao ambiente físico que ao sócio- cultural, apesar do conceito poder ser aplicado a situações em que um grupo deve se ajustar a contextos político-culturais). Morphy (1993) também fez uma distinção entre estudos adaptativos fortes e fracos, de acordo com a importância dada ao ambiente como fator causal das variáveis sócio-culturais. Comparando sua análise com a distinção entre possibilismo e determinismo, feita

por E llen (1982), Morphy (1993) preferiu considerá-las como situações opostas de um mesmo

continuum.

Na opinião de Morphy (1993), os fatores culturais e a adaptação influenciam-se mutuamente. Ele também aceitou a possibilidade que, apesar de raro, certas práticas culturais podem ser altamente determinadas por seu valor adaptativo. Em ambientes extremos, os problemas impostos pelo ambiente são relativamente mais determinísticos que em ambientes menos severos. Segundo o próprio autor (p. 103):

“In general, however, I prefer to adopt an intermediary position which sees adaptations as one of the factors which influences the way in which a cultural system develops over time. But it is only one factor operating in conjunction with others and it is unlikely to be the sole determinant of a particular cultural practice.”

O conceito de cultura pode ser visto de duas formas diferentes: como um recurso que os seres humanos usam para atingir determinados objetivos, ou como algo constitutivo das pessoas e dos membros de uma sociedade e, por este motivo, como determinante de seus objetivos. A cultura pode ser um mediador entre as pessoas e o ambiente, e seus componentes adaptativos incluem a tecnologia produtiva e as práticas usadas pelos indivíduos para sobreviver e manter sua saúde e o controle populacional (Morphy 1993).

Por causa da importância da consciência humana no processo de tomada de decisão, as dimensões simbólicas devem ser incluídas em modelos adaptativos humanos. Nem a cultura, nem o ambiente, os genes ou as relações sociais, são variáveis realmente independentes. Para Morphy (1993), a cultura é um recurso que, de certa forma, pode ser considerado análogo ao código genético, exceto pelo fato de ser externa ao indivíduo.

A consciência e as escolhas desempenham papéis fundamentais na evolução humana. A escolha permite que os indivíduos desempenhem um papel ativo nas decisões referentes ao estilo de vida e quanto as estratégias adaptativas que irão adotar. A consciência permite que as escolhas sejam feitas com alguma idéia de suas conseqüências. Porém, o processo de escolha ou tomada de decisão é feito sob numerosas condicionantes, incluindo o conhecimento e os fatores sociais e culturais que o estruturam. Lideres políticos e grupos de elite podem controlar os processos de tomada de decisão de tal forma que são eles, e não a população com um todo, que determinam a trajetória do grupo (Morphy 1993). De qualquer forma, sistemas sociais, culturais ou adaptativos são abstrações culturais humanas, e não entidades delimitadas. Logo, qualquer estudo de um sistema que seja capaz de se adaptar a diferentes ambientes regionais deve definir claramente quais limites estão sendo considerados. Mesmo assim, é preciso ter sempre em mente que estas delimitações são,

inevitavelmente arbitrárias, até certo ponto, dadas as complexas interconexões históricas às quais todas as populações humanas estão sujeitas.

De acordo com Morphy (1993), a relação entre cultura e a adaptação de uma população ao ambiente pode ser vista em três escalas diferentes

1. dentro de um sistema sócio-cultural definido;

2. pela variação sincrônica dentro de um sistema regional caracterizado por uma diversidade ambiental;

3. pelo desenvolvimento de sistemas culturais regionais ao longo do tempo, numa região ambientalmente diversa.

Conforme enfatizado por Morphy (1993), as estruturas culturais possuem uma coerência própria, relativamente independente de qualquer função adaptativa, e portanto possuem um papel determinante próprio. A má adaptação é provavelmente rara em populações humanas, já que a maior parte dos componentes dos sistemas culturais são adaptativamente neutros, e a relação entre o ambiente e a população não é determinístico, mas permite inúmeras variações. Grandes mudanças na organização social, no uso dos recursos alimentares e tecnológicos podem ocorrer sem que haja mudanças significativas no tamanho da população ou na sua viabilidade.

De qualquer forma, medir adaptação é um desafio6, e Ellen (1982) discutiu alguns dos métodos

mais utilizados, que são resumidos na Tabela 4.2.

Tabela 4.2 – Algumas formas de medir adaptação em populações humanas (E llen, 1982)

1. Sobrevivência 2. Abundância relativa

3. Taxa de aumento do tamanho populacional 4. Redução populacional ou estabilidade numérica

5. Habilidade de tolerar grandes variações no tamanho populacional

6. Versatilidade ecológica (número de ambientes em que uma dada população pode sobreviver)

7. Território ocupado

Entre os problemas envolvidos na avaliação da adaptação em populações humanas está a escolha da unidade de análise, a existência de várias pressões seletivas, os vários graus de resistência, a escala temporal, e a definição dos limites ambientais. Além disso, adaptação cultural não pode ser medida através de uma única variável, já que não existe comparação possível, a priori. De forma geral, “…the measures employed depend entirely on the adaptations involved, and, more importantly, on the hazard for which such strategies are adaptive.” (Ellen, 1982: 243).

Conforme já demonstrado por E llen (1982: 244), “culturas” e “sociedades” não podem ser unidades adaptativas, apenas as populações:

“Cultures cannot adapt since they are no more than the sum of attributes of a population and second-order constructs used to describe similarities in the knowledge and practice of individuals·. Similarly, it is a nonsense to characterise social institutions, such as religion or art, as adaptive, since these are second-order abstractions made by the analyst. Even to claim that certain subsistence strategies are adaptive to certain environmental conditions requires considerable qualification, since how a population adapts depends on the techniques and resources available at a particular time.”

Além disso, não se pode considerar que uma população se adapta como um todo, conforme já questionado no debate entre seleção de grupo versus indivíduo, na biologia. Na opinião de Ellen (1982), adaptação cultural devia ser entendida como ocorrendo, em primeira instância, no indivíduo. Adaptações de grupo só podem ser consideradas num senso derivado, como produtos cumulativos da adaptação de indivíduos, ou como a manipulação adaptativa de coletividades poderosas dentro de uma dada população.

Seguindo o mesmo raciocínio, ao especificar adaptação devemos também levar em consideração a escala temporal de que estamos falando. Adaptações culturais variam de acordo com o tempo que leva para serem implementadas e o grau em que são sustentáveis. Apesar de não ser possível traçar limites temporais claros, Ellen (1982) chamou de adaptações de curto prazo aquelas cujo período de vida está dentro de um ciclo anual; as de médio prazo como aquelas que se situam dentro do ciclo de vida do indivíduo e as de longo prazo como aquelas que promovem a sobrevivência populacional através de um período mais longo. É muito comum que adaptações de curto prazo sejam desvantajosas a longo prazo. Da mesma forma, determinadas estratégias podem ser adotadas não porque são efetivas, mas porque são mantidas por outras condicionantes culturais e sociais. Por outro lado, adaptações de longo prazo podem parecer sem sentido a curto prazo. Em outras

6 Apesar dos problemas envolvidos na definição de adaptação, “...it is always necessary to specify the processes by which

palavras, há inúmeras contradições entre adaptações nos diferentes níveis de organização, entre indivíduos e grupos, e em relação às escalas de tempo consideradas