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A A NTROPOLOGIA N UTRICIONAL COMO M E TODOLOGIA DE P E SQUISA

A ANTROPOLOGIA NUTRICIONAL

5.1. A A NTROPOLOGIA N UTRICIONAL COMO M E TODOLOGIA DE P E SQUISA

As condições nutricionais de uma população humana são o resultado inseparável de forças biológicas e culturais. O alimento, devido a seu papel primordial na experiência humana pode ser considerado, ao mesmo tempo, um amontoado de energia e nutrientes na esfera biológica, uma

commodity na esfera econômica, e um símbolo nas esferas social e religiosa. A ideologia e as atitudes relacionadas ao alimento, a estrutura sócio-econômica, os padrões de alocação de recursos, o consumo alimentar e o status nutricional de uma população deveriam sempre ser estudados conjuntamente. As técnicas de obtenção e produção alimentar afetam o ambiente que, por sua vez, afeta os requerimentos alimentares. Os padrões fundiários, a distribuição do alimento dentro da sociedade, as tradições culinárias familiares, os gostos pessoais1 e as pressões financeiras, juntas,

influenciam a maneira como as pessoas se alimentam e o quão bem nutridas elas serão. Por outro lado, o status nutricional diferencial, que faz algumas pessoas serem mais saudáveis do que outras, traz implicações sociais, políticas e econômicas (Kandel, Jerome et al. 1980).

A antropologia nutricional é uma abordagem teórica interdisciplinar, que reúne pesquisadores que investigam os problemas relacionados à nutrição sob um ponto de vista contextual, combinando teoria e método tanto das ciências sociais quanto da nutrição. Esta abordagem surgiu da integração de quatro linhas básicas de pesquisa: (1) da longa tradição dos estudos de dieta que existia dentro da ciência da nutrição; (2) do estudo dos hábitos alimentares, tanto na antropologia quanto na nutrição, que investiga os aspectos não-nutricionais da alimentação (identidade cultural, tradição culinária, estrutura social, status social, e mudanças culturais); (3) da investigação dos aspectos cognitivos da alimentação (significados não-nutricionais do alimento dentro dos sistemas ideológicos); e (4) dos estudos ecológicos (Kandel, Jerome et al. 1980).

A grande força dos estudos ecológicos é que em princípio eles permitem relacionar fatores biológicos e culturais dentro de um mesmo nível de análise. Assim, uma explicação ecológica para uma deficiência nutricional na primeira infância, em uma população agrícola de Terceiro Mundo, pode incluir num mesmo grau de magnitude, por exemplo, o tamanho e a composição familiar, as práticas de amamentação e desmame, a elaboração cultural da alimentação calórica, os métodos de cultivo, os altos níveis de infestação crônica de parasitoses, e os baixos níveis educacionais e de rendimentos (Kandel, Jerome et al. 1980).

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As pessoas fazem decisões dietéticas individuais dentro de uma gama relativamente limitada de possibilidades, de acordo com seus valores e objetivos pessoais, a maior parte dos quais não está relacionada à nutrição. As preferências pessoais, a tradição e a adequação, o status e o prestígio, os aspectos econômicos, e a disponibilidade e o acesso ao alimento, desempenham um papel importante na seleção e nas necessidades dietéticas (Kandel et al. 1980).

Uma das formas de se avaliar o “sucesso” ecológico de uma população é através de sua qualidade de vida. Em termos biológicos, isto pode ser feito através de padrões médicos ou demográficos, tais como tamanho populacional ao longo do tempo, morbidade, mortalidade ou status nutricional, por exemplo (Newell 1998, Siqueira 1997).

Desde seu surgimento como espécie, o Homem tem encontrado meios de produzir dietas adequadas, palatáveis, ecologicamente adaptativas, e ideologicamente aceitáveis, dentro de uma vasta gama de contextos ambientais e culturais. Jerome et al. (1980) propôs um modelo ecológico para a antropologia nutricional (Figura 6.1.):

Figura 6.1 – Modelo ecológico de antropologia nutricional (Jerome, Pelto et al. 1980).

No centro do diagrama estão os requerimentos biológicos de nutrientes e as necessidades psicológicas para o desenvolvimento. Os requerimentos individuais são condicionados não apenas pelas características gerais de nossa espécie, mas também pelo estágio de desenvolvimento do indivíduo, pelo nível de atividade, pelas demandas reprodutivas, pelas características genéticas e pelas várias situações de estresse vividas ao longo da vida. Os requerimentos nutricionais são satisfeitos através da ingestão de alimento, que compõe a dieta, que por sua vez é o produto de um sistema de produção alimentar particular. Os componentes que circundam o centro do diagrama representam um sistema aberto, e mostram os vários aspectos do sistema de produção alimentar de uma sociedade (Jerome, Pelto et al. 1980).

DIETA

Necessidades biológicas e psico- biológicas individuais

Ambiente físico Ambiente social

A abordagem ecológica é importante pois permite delinear os elementos de um sistema dinâmico, determinando como os vários elementos funcionam em conjunto, identificando perigos e áreas de estresse potencial, prevendo mudanças, e investigando respostas adaptativas e/ou deletérias às mudanças esperadas e inesperadas no sistema (Jerome, Pelto et al. 1980).

A desnutrição humana, por exemplo, é um problema ecológico, já que é o resultado dos vários ambientes que formam a ecologia da comunidade investigada – físico, biológico, social e cultural (incluindo as restrições econômicas e as prioridades políticas). A disponibilidade de alimento e nutrientes para uma população vai depender, entre outros, do clima, do tipo de solo, das práticas agrícolas, dos métodos de estocagem, do transporte e da comercialização. Também dependerá de uma série de fatores culturais e políticos, tais como o nível econômico, as políticas governamentais, o nível educacional, as mudanças populacionais decorrentes de processos migratórios, as práticas culinárias locais, os padrões de dieta e da classificação dos alimentos e, especialmente, da distribuição diferencial de alimento para os grupos mais vulneráveis da população (crianças e idosos) (Jelliffe et al. 1989).

Dietas inadequadas podem estar relacionadas à pobreza, à insuficiência de terras, ao tamanho da família, à falta de alimento, ao conhecimento inadequado das necessidades nutricionais, a costumes que limitem a ingestão de alimentos nutricionalmente importantes, ou a qualquer combinação destes ou outros fatores. A desnutrição infantil em países menos desenvolvidos raramente é causada apenas pela inadequação da dieta (Jelliffe, Jelliffe et al. 1989).

Pelo fato de ser uma abordagem biocultural, a antropologia nutricional utiliza métodos e técnicas de pesquisa de várias disciplinas: nutrição, economia agrícola, bioquímica, antropologia física, biomédica, antropologia cultural, sociologia, psicologia, ciência política, entre outras, essenciais para o estudo das dimensões sociais, culturais, e psicológicas da produção e distribuição alimentar. Assim, não existe um método na antropologia nutricional, mas diferentes perspectivas metodológicas, que são utilizadas dependendo dos problemas a serem enfrentados (Pelto et al. 1980).

Os métodos de investigação nutricional podem ser divididos em dois grandes grupos: aqueles que investigam diretamente o consumo de alimento (recordatório de 24 horas, consumo estimado, consumo mensurado, história dietética e questionários de freqüência alimentar), e aqueles relacionados ao status nutricional resultante (antropometria nutricional, composição corpórea, estudos bioquímicos, imunológicos e clínicos) (Ulijaszek e Strickland 1993). Nesta tese, os métodos escolhidos foram a antropometria e o consumo alimentar, que serão detalhados a seguir.

Apesar da diversidade metodológica, Pelto, Jerome et al. (1980) ressaltaram a importância de alguns procedimentos: utilizar a comunidade como unidade de análise; proceder a análises comparativas entre comunidades e regiões, de forma a identificar igualdades e diferenças nos processos ecológicos; analisar a diversidade intra-grupos; e avaliar a ligação entre as análises intra-comunitárias e os macro processos que afetam essas comunidades, para identificar como as forças externas atuam sobre os ecossistemas locais. Numa situação em que os aspectos ecológicos mais cruciais mostrem variações significativas dentro de uma região, como é o caso das várzeas do Amazonas, uma análise comparativa pode ser considerada como um desenho metodológico de grande potencial. Na opinião de Pelto, Jerome et al. (1980), quando é possível demonstrar similaridades processuais básicas, a despeito das diferenças regionais, a análise comparativa ganha grande poder explicativo. Por estes motivos, as unidades de análise utilizadas nesta tese são os ecossistemas regionais, a comunidade e a unidade doméstica. Os ecossistemas regionais (várzea estacional e estuarina) já foram discutidos no Capítulo 2. A comunidade e a unidade doméstica serão discutidas a seguir.

5.1.1. As Unidades de Análise

A importância dada à comunidade como unidade de análise deve-se ao fato de ser aí que todos os componentes interagem. A abordagem comunitária tem, ainda, a vantagem de definir claramente os limites da população pesquisada, e de estabelecer um relacionamento de longo prazo entre o pesquisador e o objeto de pesquisa, aumentando a quantidade e a qualidade dos dados recolhidos (Pelto, Jerome et al. 1980). Porém, a diversidade interna da comunidade só pode ser evidenciada por unidades de análise intra-comunitária, das quais as mais utilizadas são as unidades domésticas. A pesquisa nutricional tem a vantagem de possibilitar a realização de análises quantitativas e estatísticas que permitam comparações entre populações ou sub-grupos da mesma população (Ulijaszek and Strickland 1993). Por outro lado, uma análise intra-comunitária não significa abandonar a busca por generalizações mais amplas ou uniformidades no que se refere ao status nutricional. Ao contrário, a pesquisa deve buscar processos ecológicos mais gerais, sem abandonar a investigação dos fatores sócio-culturais e de outras variáveis que atuam sobre o indivíduo2 (Pelto, Jerome et al. 1980).

A ligação entre a análise local e os macro processos é importante porque os micro processos são normalmente afetados pelos macro eventos (como políticas econômicas, por ex.), e porque as implicações políticas e as sugestões que surgem da análise comunitária podem parecer irreais se não

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Um exemplo de uma generalização inter-cultural de grande significância, é o fato de que, em praticamente todos os contextos onde existe uma diferenciação sócio-econômica intra-comunitária, esta variável desempenha um importante papel na dieta e na análise nutricional (Pelto et al. 1980).

se considerarem a maneira pela qual as ligações com o sistema regional afetam as mudanças locais (Pelto, Jerome et al. 1980).

Uma unidade doméstica possui uma base biológica e econômica e, em muitas sociedades tradicionais, forma a unidade de produção e do consumo de alimento. As unidades domésticas possuem um ciclo de desenvolvimento, quanto à sua capacidade de produzir e à necessidade de consumir alimento, ao longo do qual ocorrem mudanças demográficas em sua estrutura (número de componentes, estrutura etária). Em sociedades onde existem sistemas de herança, normalmente seu funcionamento tem como base a unidade doméstica (Ulijaszek 1995). A unidade doméstica também é a arena onde categorias sociais são continuamente expressas e reafirmadas (Murrieta 2000). O status de um indivíduo na sociedade se reflete, por exemplo, na quantidade e no tipo de alimento consumido dentro da unidade doméstica (Ulijaszek 1995, Wheeler e Abdullah 1988) (ver Capítulo 4).

Nas sociedades camponesas, a unidade doméstica normalmente é a unidade social básica (Ellis 1988, Netting 1993), e o campesinato histórico amazônico não é exceção (Chibnik 1994, Futemma 1995, Futemma 2000). Na Amazônia, a unidade doméstica pode incluir a família nuclear, múltipla ou extensiva, composta por parentes consangüíneos, não parentes, e outras formas intermediárias, incluindo parentesco por afinidade (apadrinhamento)3. Para Futemma (1995), a unidade doméstica é

a unidade de análise mais apropriada para investigar a vida social e econômica dos caboclos.

O tamanho e a composição flexíveis da unidade doméstica cabocla tem uma forte relação com sua economia, pelo menos na várzea. A flexibilidade é garantida pela presença de, pelo menos, dois indivíduos adultos, normalmente a esposa e o marido. Enquanto um deles pode se mudar temporariamente em busca de trabalho (normalmente o marido e/ou os filhos mais velhos), o outro permanece temporariamente como o chefe da casa (normalmente a mãe ou crianças mais jovens). O grande número de membros da unidade doméstica e os papéis distintos representados pelo homem e pela mulher, dentro da unidade doméstica, são de fundamental importância para a manutenção de uma economia doméstica mista, que pode representar uma estratégia adaptativa à diversidade da várzea e à imprevisibilidade do ambiente, juntamente com a instabilidade das economias regional e nacional (Futemma 1995).

A economia mista dos caboclos é possível graças ao baixo custo dos equipamentos e à diversidade e disponibilidade de recursos naturais na várzea. O envolvimento de todos os membros da unidade doméstica na produção Cabocla reduz o custo do trabalho nas atividades de subsistência. Todavia,

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Mesmo assim, a organização social Cabocla não se restringe à unidade doméstica, uma vez que a comunidade e o sistema de parentesco exibem uma forte relação (Ayres 1992 apud Futemma 1995), o que não concorda com o

como a produção comercial demanda o envolvimento de mais força de trabalho, a solução é formar grupos maiores através de parcerias entre unidades domésticas. Um caso típico é a parceria entre uma unidade doméstica com mais posses e outra mais pobre (Futemma 1995). Apesar de muitos estudos indicarem a existência de mudanças na economia da unidade doméstica cabocla ao longo da história, poucos incluem informações sobre as mudanças na estrutura interna, como tamanho e composição. Futemma (1995) e Ayres (1992) são exceções.