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Adaptação transcultural de instrumentos para crianças e adolescentes no Brasil

2. Revisão de literatura

2.3. Adaptação transcultural de instrumentos para crianças e adolescentes no Brasil

Este capítulo teve como objetivo traçar um breve panorama dos estudos de adaptação transcultural de instrumentos para crianças e adolescentes no Brasil. Para tanto, inicialmente, abordou-se o conceito de ATC, os modelos de sistematização operacional que se destacam e que são utilizados no contexto brasileiro. E – por fim – apresenta-se a metodologia e resultados principais de revisão integrativa da literatura, com a finalidade de caracterizar instrumentos traduzidos e adaptados para o público infanto-juvenil no Brasil, publicados no período de janeiro de 2010 a fevereiro de 2016 (Pereira, Maia, Rocha, Hazin, & Maia, 2016b).

A adaptação transcultural, do inglês cross-cultural adaptation, é um procedimento metodológico que promove o intercâmbio cultural de instrumentos e/ou métodos de uma realidade cultural para outra (Almeida, 2005). Este processo procura seguir uma série de cuidados e severidades metodológicas, com a finalidade de garantir que os aspectos de mensuração do instrumento sejam fidedignos e que não se tornem distorcidos para a realidade para a qual ele será adaptado (Almeida, 2005).

Existem diferentes abordagens teóricas e metodológicas para a realização da adaptação transcultural (Reichenheim & Moraes, 2007). No contexto internacional, Herdman, Fox- Rushby e Badia (1998) propuseram um roteiro básico que envolve a apreciação de equivalência conceitual, de itens, semântica, operacional, de mensuração e funcional entre o instrumento original e a versão adaptada.

Esta proposta foi realizada em função de haver falta de clareza conceitual e uma quantidade considerável de formas de realizar os diferentes tipos de equivalência, sendo premente a necessidade de uma padronização das definições e operacionalização destas equivalências. Como também por ser cada vez mais crescente a demanda por instrumentos traduzidos oriundos de outros contextos culturais, a fim de realizar estudos de comparações interculturais entre diferentes populações (Herdman, Fox-Rushby, & Badia, 1997). Assim, é possível que se realize a generalização e a comparação de dados provenientes de um instrumento que avalia um determinado construto por meio de uma mesma perspectiva teórica e metodológica (Borsa, Damásio, & Bandeira, 2012; Hambleton, 2005).

Além de Herdman et al., (1998), outros autores como Beaton, Bombardier, Guillemin e Ferraz (2000), Fayers e Machin (2002), Gjersing, Caplehorn e Clausen (2010), Guillemin, Bomabardier e Beaton (1993) e Hambleton (2005) se destacam neste campo, fornecendo diretrizes operacionais para realização do processo de adaptação de instrumentos. A preocupação com as diretrizes para este tipo de procedimento também foi objeto de estudo de

organizações, como a International Test Comission (ITC), que, desde 1992, iniciou um projeto para preparar orientações para tradução e adaptação de testes e instrumentos psicológicos, estabelecendo pontuação de equivalência entre linguagem e/ou grupos culturais (ITC, 2010).

No Brasil, Reichenheim e Moraes (2007) sugeriram uma sistemática operacional para a realização da adaptação transcultural de instrumentos desenvolvidos em outros contextos linguístico-sócio-culturais. Borsa et al. (2012) também criaram uma sistematização para adaptação de instrumentos para o Brasil, focando na importância da pertinência e manutenção do sentido dos itens do instrumento no processo de tradução e retrotradução, considerando as peculiaridades da população.

Em geral, estas operacionalizações envolvem a realização de diferentes tipos de equivalências. Reichenheim e Moraes (2007), por exemplo, sugerem a investigação da equivalência conceitual e de itens, semântica, operacional, de mensuração e funcional do instrumento.

A equivalência conceitual e de itens objetiva avaliar a relevância e a pertinência dos itens do instrumento original quanto à apreensão do fenômeno que vai ser investigado no contexto para o qual este será adaptado transculturalmente. Este tipo de equivalência é realizada através de discussão entre um grupo de especialistas, a partir de revisão de bibliográfica tanto de estudos do processo de construção do instrumento e do contexto cultural do instrumento original, quanto de publicações do contexto local acerca do tema. Neste processo, também podem ser incluídos indivíduos da população-alvo por meio de entrevistas abertas ou grupos focais (Reichenheim & Moraes, 2007).

A equivalência semântica tem o objetivo de manter o sentido dos conceitos contidos no instrumento original na versão traduzida. Esta é atingida em vários passos: traduções;

retraduções; avaliação da equivalência semântica; e discussão com especialistas e com a população alvo (Reichenheim & Moraes, 2007).

Inicialmente, o instrumento original é traduzido para o idioma da população-alvo. Indica-se que esta tradução seja realizada em duas ou mais versões, de modo independente. Em seguida, estas versões são retraduzidas por outros tradutores, também independentemente. É desejável que essas traduções e retraduções sejam feitas por profissionais cuja língua-mãe e cultura sejam aquelas para as quais a versão adaptada se destina (Reichenheim & Moraes, 2007).

O próximo passo é a equivalência semântica entre o instrumento original e as versões traduzidas e retraduzidas com a discussão entre especialistas e a população-alvo, a partir da avaliação da equivalência idiomática e cultural. A primeira se baseia pelo significado referencial – denotativo – das palavras constituintes, quanto à correspondência literal entre os itens do instrumento original e da retradução A segunda, por sua vez, consiste na realização de uma comparação entre o instrumento traduzido e o original, com base no significado geral – conotativo – de cada item, indo além da correspondência literal dos termos e da literalidade da palavra, envolvendo aspectos mais sutis, como a influência que um determinado termo pode ter no contexto cultural da população-alvo à qual a versão é destinada (Reichenheim & Moraes, 2007). Assim, busca-se compreender possíveis implicações emocionais ou afetivas evocadas pelas palavras utilizadas (Herdman et al., 1998).

Ainda na etapa de equivalência semântica, é proposta a versão síntese do instrumento, a ser aplicada a um grupo da população-alvo. Esta aplicação tem por finalidade avaliar a aceitabilidade, a compreensão e o impacto emocional dos itens da versão proposta (Maia, 2014).

A equivalência operacional, por sua vez, está associada ao procedimento anterior. Nessa etapa, realiza-se o pré-teste da versão traduzida, com a finalidade de avaliar a

pertinência e adequação do formato das questões e instruções do instrumento; o cenário de administração; o modo de aplicação; e o modo de categorização. Há, nesta fase, uma busca pela opinião dos sujeitos da população-alvo na avaliação e são feitas possíveis alterações de sutilezas e/ou especificidades dos itens da versão do instrumento (Reichenheim & Moraes, 2007). Para tanto, questiona-se os sujeitos acerca do entendimento das instruções e dos itens (Sampaio, Moraes, & Reichenheim, 2014), para que estes apontem dificuldades de compreensão ou outras dúvidas quanto ao instrumento (Lima, Rech, & Reis, 2013).

A equivalência de mensuração consiste na investigação das propriedades psicométricas do instrumento traduzido e adaptado. Nela, avalia-se: (1) a validade dimensional e a adequação dos itens componentes; (2) a confiabilidade; (3) a validade de constructo e de critério. Por fim, a equivalência funcional representa uma síntese das etapas pregressas. Esta é, pois, dada pelas equivalências identificadas nas demais etapas de avaliação (Reichenheim & Moraes, 2007).

A literatura aponta a importância da realização das etapas de avaliação das equivalências supracitadas quando se objetiva adaptar instrumento oriundo de outro contexto cultural (Sampaio et al., 2014). Esta importância é dada em função de cada sociedade possuir comportamentos, crenças, atitudes, costumes e hábitos sociais próprios que precisam ser ponderados em um processo de adaptação transcultural (Leite, Ferreira, Prado, Prado, & Carvalho, 2014; Mathias, Tannuri, Ferreira, Santos, & Tannuri, 2016).

A decisão de realizar este tipo de estudo, em geral, pode estar relacionada com a inexistência ou insuficiência de questionários multitemáticos nacionais que mensurarem um determinado constructo em estudos epidemiológicos (Reichenheim & Moraes, 2007). Esta escassez de instrumentos sugere ser ainda maior no contexto de pesquisa em que os sujeitos são crianças e adolescentes. Entretanto, atualmente, observa-se um número crescente de pesquisas realizadas considerando a perspectiva da própria criança. Considera-se que é cada

vez mais contundente a necessidade de captar a voz das crianças em estudos científicos, visto que estas podem fornecer dados sobre si a partir de sua fala (Oliveira, Sparapani, Scochi, Nascimento, & Lima, 2010).

Nesse sentido, realizou-se revisão integrativa da literatura buscando estudos que tinham por objetivo adaptar transculturalmente instrumentos para crianças e adolescentes no contexto brasileiro, com a finalidade de caracterizá-los (Pereira et al., 2016b), contribuindo para a escolha da metodologia do processo de ATC relatada nesta dissertação. Esta revisão partiu da questão de pesquisa “Quais são as características dos instrumentos oriundos de estudos que realizaram uma adaptação transcultural para a população infanto-juvenil no contexto brasileiro?” e seguiu os procedimentos metodológicos sintetizados por Souza, Silva e Carvalho (2010).

A partir do total de 2389 referências, aplicando-se os critérios de seleção dos estudos, obteve-se um banco de dados de 24 artigos, que foram lidos integralmente e analisados. Delimitou-se a existência de quatro categorias temáticas. A “Categoria A” envolveu artigos referentes à adaptação de instrumentos que inquerem a prática de atividade física, os quais representam 12,5% da amostra (três artigos); a “Categoria B”, escalas que averiguam aspectos relativos à avaliação de prejuízos clínicos, em especial, disfunções orofaciais e miccionais, formada por dois artigos, (8,3% dos estudos incluídos); a “Categoria C”, estudos que investigam aspectos psicossociais, como psicopatologias na infância e adolescência, apoio social percebido e/ou recebido, por exemplo, a qual detém 37,5% das publicações (nove artigos); por fim, a “Categoria D”, pesquisas que aferem a qualidade de vida geral e/ou relacionada à saúde, tanto de crianças saudáveis quanto com condições crônico-degenerativas, que apresenta dez estudos, 41,7% da amostra (Pereira et al., 2016b).

A maioria dos estudos (41,7%) incluídos investigava a qualidade de vida geral e/ou relacionada à saúde, tanto de indivíduos saudáveis quanto com condições crônico-

degenerativas (Categoria D) (Pereira et al., 2016b). Confirmando apontamentos da literatura de que existe um número crescente de estudos com o objetivo de investigar a qualidade de vida de crianças (Souza et al., 2014).

Ademais, verificou-se uma quantidade expressiva de publicações referentes aos instrumentos que mensuram aspectos psicossociais (37,5%), como psicopatologias na infância e adolescência, Categoria C (Pereira et al., 2016b). Este percentual pode estar relacionado com os dados de que distúrbios psiquiátricos na infância e adolescência podem interferir significativamente no funcionamento dos infantes, podendo se cronificar e implicar em dificuldades na vida adulta, o que torna fundamental que se disponha de instrumentos adequados para a avaliação de sintomas, bem como o rastreio e o diagnóstico de psicopatologias (DeSousa et al., 2012).

Outro resultado importante diz respeito às faixas etárias a que as escalas se destinam. Na referida revisão, observou-se que 11 publicações não mencionaram esta informação. Enquanto sete estudos realizaram adaptação transcultural de instrumentos para crianças e adolescentes (8-16 anos; 8-18 anos; 9-18 anos; 10-18 anos); quatro, para crianças (3-5 anos, 5 anos, 7-12 anos, 8-10 anos); uma, para adolescentes (11-14 anos); e apenas uma com uma versão infantil e outra juvenil (8-13 anos e 14-18). Dentre eles, sete tem uma versão para a criança e para os pais (Pereira et al., 2016b).

Diante destes dados, é fundamental ressaltar o fato de as fases da infância e adolescência serem vivências distintas nas quais perpassam diferenças cognitivas, psicomotoras, biológicas e sociais, decorrentes da historicidade de cada indivíduo ou grupos. Este representa um fator crítico à construção de dados baseados em amostras cujos resultados sejam tratados unificadamente em uma mesma avaliação (Frota, 2007).

Quanto aos estudos que apresentaram uma versão para a criança e outra para os pais. A literatura refere que instrumentos com essas características permitem a escolha da versão a

ser utilizada de acordo com o delineamento da pesquisa e da amostra a ser estudada. Além de possibilitar a avaliação da percepção da própria criança sobre si, bem como de outros respondentes sobre ela (Souza et al., 2014).

Além disso, cabe ressaltar que a partir desta revisão, verificou-se que, atualmente, diversos trabalhos bem sucedidos vêm sendo desenvolvidos, nas diversas áreas de estudo. Dentre eles, destacam-se os que investigam aspectos referentes às atividades motoras e físicas, como a prática de atividades físicas. Trata-se, por exemplo, do “Physical Activity Questionnaire for Children (PAQ-C)” e do “Physical Activity Questionnaire for Adolescents (PAQ-A)”, indicados, respectivamente para crianças de 8 a 13 anos; e para adolescentes, de 14 a 18, que oferecem medidas de autorrelato da prática de atividade física (Guedes & Guedes, 2015); e do “Physical Activity Checklist Interview (PACI)”, pessoas de 7 a 10 anos (Adami et al., 2011; Cruciani, Adami, Assunção, & Bergamaschi, 2011).

Ademais, constatou-se estudos voltados para a ATC de instrumentos que investigam aspectos psicossociais da criança e do adolescente. Dentre estes, destacaram-se o “Social Support Appraisals (SSA)”, que avalia o apoio social percebido e/ou recebido de indivíduos de 9 a 18 anos (Squassoni & Matsukura, 2014); como também os questionários de avaliação da qualidade de vida de crianças e adolescentes considerados saudáveis ou com condições crônicas: DISABKIDS® (Fegadolli, Reis, Martins, Bullinger, & Santos, 2010), DISABKIDS® – Cystic Fibrosis Module (Santos et al., 2013), “Vécu et Santé Perçue de l'Adolescent (VSP-A)” (Aires, Auquier, Robitail, Werneck, & Simeoni, 2011; Aires & Werneck, 2012); de avaliação de ansiedade “Spence Children's Anxiety Scale (SCAS)” (DeSousa et al., 2012) e de irritabilidade “Affective Reactivity Index (ARI)” (DeSousa et al., 2013), por exemplo.

Além do instrumento “Child Perceptions Questionnaire (CPQ8-10)”, de 29 itens,

de vida das crianças de 8 a 10 anos de idade, avaliando a percepção do impacto das desordens orais no bem-estar físico e psicossocial do infante (Barbosa, Vicentin, & Gavião, 2011). O CPQ8-10 foi traduzido e adaptado para o português (Brasil) recentemente, por Barbosa et al. (2011), e vem sendo amplamente utilizado em pesquisas realizadas no referido país (Barbosa & Gavião, 2015; Barbosa, Tureli, Nobre-Dos-Santos, Puppin-Rontani, & Gavião, 2013; Leme, Barbosa, & Gavião, 2013; Mota-Veloso et al., 2016; Paula et al., 2015; Paula, Tôrres, Ambrosano, & Mialhe, 2012; Rovaris et al., 2014).

Considera-se que os artigos revisados colaboram no processo de dar voz para crianças e adolescentes. Uma necessidade apontada como cada vez mais requerida em estudos científicos, visto que as crianças podem fornecer dados sobre si (Francischini & Fernandes, 2016; Oliveira et al., 2010; Pereira et al., 2016b).

Entretanto, enfatiza-se a relevância de se considerar que a infância e adolescência são fases distintas, com diversas peculiaridades em cada um desses períodos desenvolvimentais. Assim, faz-se necessário que o uso de instrumentos construídos simultaneamente para estes públicos seja realizado com cautela e que o investigador os utilize considerando essas diferenças (Pereira et al., 2016b).

Por fim, ressalta-se que a literatura indica que, no Brasil, esse tipo de estudo se apresenta como uma tendência cada vez mais presente em pesquisas na área da Psicologia, Saúde Coletiva, Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia, por exemplo (Maia, Torres, Oliveira, & Maia, 2014). Como também, é preciso considerar a importância da realização das etapas de ATC quando se objetiva utilizar um instrumento oriundo de outro contexto cultural, visto que cada sociedade tem idiossincrasias que precisam ser consideradas (Pereira et al., 2016b).

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