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Adelheid Koch: pioneira da Psicanálise em São Paulo

Capítulo 3 – A artista Eleonore Koch: para além de Theon Spanudis e Alfredo Volpi

3.1 Adelheid Koch: pioneira da Psicanálise em São Paulo

Adelheid Koch (1886, Berlim, Alemanha – 1980, São Paulo, Brasil), nascida Adelheid Lucy Schwalbe, casou-se com o advogado Ernst Heinrich Koch237. Foi a psicanalista

responsável pelos trâmites que levaram Theon Spanudis a migrar de Viena para São Paulo a partir de um convite da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). E também é um personagem fundamental no estabelecimento de sua filha Eleonore na cidade brasileira. Na iminência da Segunda Guerra Mundial, por conta de sua origem judaica, começou a considerar migrar do país com marido e as duas filhas, feito que se concretizou em 1936238.

Entender a posição obtida por Adelheid Koch passa por entender a institucionalização da Psicanálise na cidade de São Paulo em começos do século XX, além da migração de inúmeros judeus da Europa a países do continente americano.

237 Nesta pesquisa, não conseguimos traçar a trajetória nem de Ernest nem de sua filha Esther, embora compreendamos que esses dados sejam interessantes para a compreensão mais ampla do cenário familiar de Adelheid e Eleonore. No livro Lore Koch, aponta-se que o pai da artista nasceu com o sobrenome Cohn e sua família materna era proprietária de uma das maiores casas editoriais em princípios do século XX, a Ullstein. In: KOCH, Eleonore (org.). op. cit. 2013. p. 13.

238 MORETZSOHN, Maria Angela Gomes. Introduction to the life and work of Adelheid Lucy Koch. In: LISMAN-PIECZANSKi, Nydia; PIECZANSKi, Alberto (org). The Pioneers of Psychoanalysis in South America - An essential guide. Routledge, 2014. p. 231

Parte das menções feitas ao trabalho de Eleonore Koch como pintora recuperam sua herança judaica e seu deslocamento à época da guerra. No livro Germany and the Americas –

Culture, Politics, and History, que é parte de uma série de obras cujo intuito é estabelecer

relações entre história e cultura a partir de uma proposta transatlântica, a pintora é citada no recorte sobre alemães exilados no Brasil, trecho escrito por Patrik von zur Mühlen:

German painters and actors were somewhat more successful than their fellow poets and journalists. The painter Eleonore Koch became famous in artists’ circles, and the Austrian Axel von Leskoschek influenced generations of Brazilian wood carving artists. The actors Wolfgang Hoffmann-Harnisch, Werner Hammer, and Willy Keller became important directors at Brazilian theaters. A small number of psychoanalysts, biochemists, social scientists, and economists received positions at Brazilian universities and introduced new academic disciplines.239

Se o trecho destaca o reconhecimento que Eleonore recebeu como artista em círculos artísticos, comparativamente maior do que poetas e jornalistas de origem semelhante à dela, sua mãe poderia ter sido mencionada ao fim do parágrafo dentre os psicanalistas que tiveram notória importância na formação da área no país, ainda que nunca tenha se atrelado à universidade e ao meio acadêmico propriamente dito.

A relação da psicanálise com a universidade em São Paulo das primeiras décadas do século XX passou por renitências envolvendo áreas do saber vinculadas ao estudo da Medicina. Roberto Yutaka Sagawa, em texto sobre a história da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPSP), aponta um esforço por parte de Durval Marcondes para integrar a prática e o estudo de Psicanálise à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo na década de 1930. Entretanto, houve resistência por parte de alguns setores, no texto associados à figura do médico Antonio Carlos Pacheco e Silva, ocupante da cadeira de neuropsiquiatria240. Essa conturbada relação entre psicanálise e psiquiatria no começo do

século XX em São Paulo foi também explorada em texto escrito por Plínio Montagna. Em 1936, informa o autor, Durval Marcondes teria concorrido à cadeira da Cátedra da Clínica Psiquiátrica e de Doenças Nervosas da Faculdade de Medicina que pertenceu ao médico Franco da Rocha, cujo trabalho no Hospital Psiquiátrico do Juqueri era acompanhado de perto

239 Patrik von zur Mühlen. German Exile in Brazil. In: ADAM, Thomas (ed). Germany and the Americas – Culture, Politics, and History. Transatlantic Relations. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2005. v. 1 p. 175

240 SAGAWA, Roberto Yutaka. A história da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. In: SAGAWA, R. Y. et al. Álbum de Família – Imagens, Fontes e Idéias da Psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994. p. 17.

por Marcondes241. À época, psicanálise e psiquiatria podiam diferir muito nos métodos

empregados para tratamento de seus pacientes e a academia refletia essa tensão entre as áreas242.

A criação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 1944 é um marco, mas não foi propriamente o início do processo de institucionalização da Psicanálise no Brasil, que é consideravelmente anterior. Ainda na década de 1920, uma primeira versão da Sociedade foi criada por Marcondes, focada em difundir a Psicanálise através de reuniões, palestras e publicações na imprensa paulistana; Franco da Rocha foi o primeiro presidente e Durval Marcondes secretário243. No entanto, tal agrupamento foi descontinuado em poucos

anos. Nesse período, Marcondes teve o conhecimento da existência do Instituto de Psicanálise de Berlim e sua maneira de formar psicanalistas baseando-se em “análise didática, supervisão de dois casos clínicos e cursos teórico-técnicos”244.

Empenhado em empregar esse modelo de formação adotado por filiais da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), por volta de 1932, Marcondes iniciou a busca por docentes estrangeiros formados sob esse molde, sendo finalmente alcançada com a indicação feita por Ernest Jones, à época presidente da IPA, da doutora Adelheid Koch que, como outros médicos europeus de origem judaica, procurava então migrar do continente para a América. Em entrevista à Revista Ide, em 1976, Adelheid Koch mencionou seu interesse em mudar-se para o Brasil naquela época:

A decisão de sair da Alemanha não era só nossa: em Berlin, tínhamos um casal muito amigo nosso que também pensava em emigrar. Esse amigo era do mesmo Clube Estudantil, um clube de estudos de que participávamos. Numa viagem de navio, conhecemos alguns brasileiros - o navio era brasileiro - e nosso amigo fez amizade com o médico de bordo. Esse médico sabia do histerismo na Alemanha, e recomendou a nosso amigo para emigrar para o Brasil. O Brasil, nessa época, era um dos poucos países que dava visto de entrada. Então nos aconselharam a emigrar para o Brasil. E nós conseguimos, em pouco tempo, arranjar um visto para cá. Antes do Brasil, tínhamos pensado em ir para a Palestina - que, nessa época, ainda não era Israel. Eu tinha viajado para lá, tinha falado com o Dr. Max Eitingon, que era analista em Berlin, perguntando se poderia trabalhar lá, e ele me deu a permissão para trabalhar como médica analista na Palestina. Mas havia 241 Ibidem. p. 31.

242 Ainda que Marcondes pareça ter buscado formar quadros em Psicanálise a partir dos formados em Medicina e desejasse o reconhecimento a partir da psiquiatria acadêmica, vale ressaltar que uma das primeiras alunas de Adelheid Koch não era advinda da Medicina. Vírgina Bicudo, depois de formada na Escola Normal, concluiu um curso de educação sanitária no Instituto de Higiene de São Paulo e foi diretora do Instituito de Psicanálise da SBPSP na década de 1960. In: SAGAWA, R. Y.. op. cit., 1994. p. 25.

243 Ibidem. p. 15. 244 Ibidem. p. 16.

grandes conflitos entre árabes e israelitas, e então decidimos emigrar para o Brasil.245

A família Schwalbe-Koch embarcou para o Brasil em outubro de 1936, chegando à cidade de São Paulo no mês seguinte. Em 1937, no mês de julho, Adelheid Koch iniciou junto com Durval Marcondes o primeiro centro de formação de analistas da América Latina que viria a ser conhecido como Instituto de Psicanálise de São Paulo, e foi nesse mesmo ano que começou a exercer a posição de analista didata, isto é, ensinar Psicanálise a interessados.

Há, nas fontes pesquisadas, uma contradição acerca do reconhecimento internacional do grupo como uma sociedade afiliada à Associação Internacional de Psicanálise. A reportagem da Revista Ide, escrita por Arlindo J. A da Cunha sobre Adelheid Koch e a instituição, publicada em 1976, informa que o reconhecimento pela IPA deu-se em 1944, através de questionamento a Ernest Jones e recebimento de resposta formal. Durval Marcondes teria, naquela data, tornado-se o primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)246. Por outro lado, no texto de Roberto Yutaka Sagawa, o

processo apresenta-se muito mais complexo, porque, apesar da resposta formal concedida por Jones, o reconhecimento definitivo não foi ratificado em Congresso Internacional da instituição, protelando tal decisão até a década seguinte. Escreveu Sagawa:

Em 1951, o grupo obteve, no Congresso Internacional em Amsterdã, o reconhecimento definitivo como filial da IPA. A vinda de Spanudis deve ter pesado bastante na decisão dos dirigentes da IPA, assim como pode ter chegado ao ponto de saturação a protelação que se vinha fazendo com o reconhecimento provisório do grupo. O grupo passou a ser denominado Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e se tornou a primeira filial da IPA no Brasil.247

Maria Angela Gomes Moretzsohn em texto publicado em um compêndio sobre os pioneiros da Psicanálise na América do Sul aponta Otto Fenichel e Salomea Kempner como mentores de Koch na Sociedade de Psicanálise de Berlim248. Além disso, Koch e Melanie

Klein frequentaram a Sociedade no mesmo período, tendo uma se convertido em membro em 1929 e a outra em 1922, respectivamente. Apesar de não haver registros documentais conhecidos sobre ambas terem convivido ou se conhecido pessoalmente, Koch tinha como 245 CUNHA, Arlindo J. A. da. Adelheid Koch: uma história que se confunde com a vida de uma instituição. Revista Ide. Ano 2, nº 3, 1976. p. 8.

246 Ibidem. p. 12.

247 SAGAWA, R. Y.op. cit. 1994. p. 20. Grifo nosso. 248 MORETZSOHN, M. A. G. op. cit. 2014. p. 231.

referência teórica valiosa os escritos de Klein e isso é perceptível em um texto seu intitulado “Onipotência e sublimação”249 – um dos poucos materiais de estudos publicados pela

psicanalista, em uma revista buenairense em 1956. Muitos dos psicanalistas formados por Koch no Brasil, utilizaram-se da teoria de Klein, mas, segundo Moretzsohn, também em razão de seus estudos no exterior, como foi o caso de Décio de Souza, Virgínia Bicudo e Lygia Amaral.

Foi por conta da perseguição a judeus na Alemanha, mas graças à atividade profissional de Adelheid que a família toda mudou-se para o Brasil, a partir do interesse de um pequeno grupo pela Psicanálise, encabeçado por Durval Marcondes, e que buscava, através da Associação Internacional de Psicanálise, docentes para o avanço de sua área de atuação. Indicada por Ernst Jones250, a psicanalista, acompanhada pela família, estabeleceu-se

no país sem qualquer conhecimento prévio de língua portuguesa.

Chegar a outro país sem o domínio da língua e da cultura levou Adelheid Koch a se esforçar para entender qual era no Brasil a normalidade dos costumes, algo fundamental para sua profissão. Em entrevista à Revista Ide, em 1976, usou como exemplo o caso de pais que não deixavam a filha sozinha em companhia de seu noivo, exigindo sempre a presença de outro membro da família em encontros dessa natureza, algo que diferia de sua experiência na Europa251. Em depoimento ao livro Álbum de Família – Imagens, Fontes e Idéias da

Psicanálise em São Paulo, Eleonore Koch falou sobre a adaptação dos pais ao novo país: Acho que foi difícil por causa da língua. Eles não sabiam como se comportar. A coisa não é só a língua falada, mas é a gente entender a coisa extraverbal. Eu senti isso muito na Inglaterra. Quando fui (anos 60) para a Inglaterra, eu tinha a idade que a minha mãe tinha quando veio para cá. A gente aprende a língua, mas fica um mundo de coisas que a gente fica completamente desnorteada. Como é que a gente se comporta quando é convidada por alguém? É para ir? Ou não é para ir? É para ir na hora? Ou mais tarde? Como a gente retribui? Acho que foi muito difícil. (...) Acho que meu pai admirou a minha mãe de ela se adaptar tão bem aqui porque para o meu pai ficou muito mais difícil.252

249 KOCH, Adelheid Lucy. Omnipotence and Sublimation. Trad: Ana Pieczanski. In: In: LISMAN- PIECZANSKi, Nydia; PIECZANSKi, Alberto (org). The Pioneers of Psychoanalysis in South America - An essential guide. Routledge, 2014. pp. 234-238.

250 “Judia, berlinense, médica e recentemente formada pelo Instituto de psicanálise de Berlim, Adelheid Koch chega ao Brasil fugindo do nazismo e por indicação de Ernest Jones, então presidente da IPA, e responsável pela adoção da política que ficou conhecida como de ‘salvamento da psicanálise’.” OLIVEIRA, Carmen Lucia Montechi Valladares de. Percursos da psicanálise em São Paulo. In: Pulsional – Revista de Psicanálise. Ano XV, n. 161, set/2002. p. 19.

251 CUNHA, Arlindo J. A. da. op. cit. 1976. p. 9. 252 SAGAWA, R. Y. op. cit. 1994. p. 18.

Adelheid Koch é apontada de modo recorrente como uma pioneira na institucionalização da Psicanálise, segundo as fontes consultadas na SBPSP. De certo modo, sua trajetória é contemporânea a esse processo que compreende desde a época em que a sociedade era quase que tão somente um grupo de estudos, sem sede própria e demandando uso da residência e do consultório de Marcondes, até a garantia de uma sede na celebração de vinte anos de existência, em 1964, na rua Itacolomi, e, posteriormente, em 1978, quando se instalou em um prédio na rua Sergipe, no bairro de Higienópolis, onde está localizada até o tempo presente. Ainda que não tenha legado muitos textos escritos, Koch formou gerações de psicanalistas em São Paulo e, por mais que a documentação arquivística não apresente muitos dados sobre a personagem, é possível perceber alguns desafios da instalação da família no ambiente paulistano, tanto na ordem dos costumes quanto do reconhecimento profissional.