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Neoconcretismo: tensão interna para além da memória vigente

Capítulo 2 – A Coleção Theon Spanudis: do gosto privado ao acesso público

2.4 Neoconcretismo: tensão interna para além da memória vigente

Se a memória do nome de Theon Spanudis está intrinsecamente vinculada à assinatura do Manifesto Neoconcreto, é justamente nas fragilidades da proposta neoconcreta que se faz mais compreensível sua visão sobre a arte e sobre sua coleção. Um dado fundamental nesse sentido é aquele que constatamos ao analisar a coleção de Spanudis doada ao MAC-USP: dos 367 itens doados, nenhum exemplar foi produzido por outro participante do Neoconcretismo171. Cabe aqui discutir a consolidação de determinados preceitos do Manifesto

Neoconcreto na historiografia da arte no Brasil e também a adesão parcial – ou o rompimento – de Spanudis com o projeto neoconcreto.

No texto do Manifesto, os signatários alegam que como participantes da exposição não constituíam um “grupo”, embora houvesse ligações daquelas pessoas anteriores àquele momento. Lê-se, no parágrafo final do manifesto:

Os participantes desta I Exposição Neoconcreta não constituem um “grupo”. Não os ligam princípios dogmáticos. A afinidade evidente das pesquisas que realizam em vários campos os aproximou e os reuniu aqui. O compromisso que os prende, prende-os primeiramente cada um à sua experiência, e êles estarão juntos enquanto dure a afinidade profunda que os aproximou.172

O fato de não se designarem como um grupo é controverso na medida em que frequentavam as mesmas reuniões e por vezes trabalhavam no mesmo veículo. O Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB) tinha diagramação do artista Amílcar de Castro e o crítico e poeta Ferreira Gullar como colunista173. Theon Spanudis também colaborara para o

periódico174. Em Constructing an Avant-Garde: Art in Brazil, 1949-1979, Sergio Martins

reforça a importância desse espaço no SDJB, principalmente como meio para que Gullar discursasse, direta ou indiretamente, para seus aliados e adversários que produziam poesia, artes visuais e crítica no período (fossem os grupos que se convencionou chamar de paulistas, os artistas do Grupo Frente, os neoconcretos ou o crítico Mário Pedrosa)175.

Essa afinidade profunda descrita no manifesto parece não ter durado muito. Martins 171 Além de Spanudis, assinaram o manifesto: Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape e Reynaldo Jardim.

172 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 11.

173AMARAL, Aracy A. Textos do Trópico de Capricórnio – Artigos e ensaios (1980-2005): modernismo, arte moderna e o compromisso com o lugar, v. 1. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 211.

174 SPANUDIS, Theon. O poema transsintático. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 de abril de 1959. Suplemento Dominical.

advoga uma compreensão do Neoconcretismo a partir do reconhecimento de seu estatuto mítico. Diz o autor:

In brief, neoconcretism is not consistent enough to be manipulated as an autonomous signifier, that is, as a name, without generating a good deal of mystification. Neoconcretism is more properly the name of a provisional “aesthetic commitment”: as a “movement” it is nothing but the stitching together of a few manifestos and exhibitions of more or less disparate works and of some initial retrospective accounts of it (like Oiticica’s in 1967 and, more important, Ronaldo Brito’s in 1975)176

É na relação entre Ferreira Gullar e Hélio Oiticica que essa leitura vai sendo construída, e passa pela maneira com que ambos elaboraram os tópicos neoconcretos em suas obras posteriores, em momentos políticos muito diferentes daqueles anos de otimismo desenvolvimentista, com vertentes concretistas da arte alcançando outros patamares, como a arquitetura modernista de Brasília.

Enquanto o poeta seguiu um caminho evolucionista de compreensão histórica, Oiticica permitiu-se entender o presente como um momento passível de radicalidade. Para Martins, Gullar precisou romper – de maneira quase psicanalítica – com a figura de Mário Pedrosa, ainda na década de 1950177. Oiticica teria tido a mesma urgência em relação a Gullar ao

necessitar defender sua produção contra acusações de que ela era alienante e inefetiva politicamente, em um ambiente autoritário da ditadura civil-militar de meados dos anos 1960178. Para o autor, a questão da antropofagia é reafirmada em Oiticica não apenas como

uma retomada oswaldiana, mas sim como uma maneira de explicar sua obra desde seus primórdios, em sua luta contra a identidade e contra a teleologia neoconcreta.

As concepts go, it may be that anthropophagy is easier to retrieve from our contemporary critical viewpoint than the constructive—indeed, anthropophagy has undoubtedly become an (un)critical cliché that seems applicable to all matters Brazilian. And the constructive, after all, strikes us almost as a relic of past utopianism. But bringing both back together seems relevant not as a synthesis so much as a trigger for rethinking histories of recent Brazilian art. Oiticica initially shaped the constructive from a refined process of formal dialectics. But having become discursive and set against the Brazilian “adversity,” it becomes fully operational as a concept. It becomes, more specifically, the signifier of Oiticica’s radical present, whose 176 MARTINS, Sérgio B. op. cit. 2013, p. 11.

177Esse pensamento está expresso também na tese de Flávio Rosa de Moura, “Obra em construção: a recepção do neoconcretismo e a invenção da arte contemporânea no Brasil”: "Por mais sentido que façam as afirmações de Gullar, é importante vê-las como rompimento não apenas com os artistas que mirava em São Paulo, mas com um ideário erigido pelo crítico que a vida inteira lhe serviu de modelo." MOURA, Flávio Rosa de. op. cit.. 2011, p. 39.

continued validity lies beyond the formal immediacy of his works and propositions.179

Visto que a Coleção Theon Spanudis é composta por obras que percorrem outros caminhos pictóricos, mesmo com o colecionador tendo apoiado a princípio os ditames do Manifesto Neoconcreto, cabe aqui indicar pontos de tensão que ele explicitou sobre outros participantes do movimento. Não é de se estranhar que em um cenário com diferentes movimentações dos agentes contra ou a favor de determinadas visões sobre a arte a opinião de Theon Spanudis sobre membros entusiastas do movimento neoconcreto tenha se alterado ao longo do tempo.

No documento A arte das formas e a arte das formações180, Spanudis distingue duas

tendências da arte contemporânea que em seu contexto repetem a intensidade da polêmica entre arte figurativa e não-figurativa. Localizadas em lados extremos, as duas correntes seriam o concretismo e o neoconcretismo e a artista que ilustra seus argumentos é Lygia Clark, que participara da I Exposição de Arte Neoconcreta (1959). Spanudis vê nas esculturas polifásicas a fundição de ambas as correntes, superando as formulações teóricas do neoconcretismo, que o próprio ajudara a desenvolver, por meio da novidade da composição (vista de forma positiva pelo autor). No ano de 1983, entretanto, em entrevista a Antônio Gonçalves Filho, Theon Spanudis desfere críticas não só a Lygia Clark como também a Ferreira Gullar: “São graves falhas e injustiças como essas que desautorizam a crítica brasileira. Quando não ignora, promove o mediano, como Ferreira Gullar fez com Antônio Henrique Amaral, Aldemir Martins e Lygia Clark.”181

Embora esteja exposta a contradição, faltam elementos que justifiquem o porquê de Theon Spanudis achar esses artistas medianos ou mesmo a crítica que faz a Ferreira Gullar. As hipóteses acerca dessa mudança de opinião de Spanudis são ainda superficiais neste estudo, mas possivelmente a sua fidelidade à manifestação moderna da arte seja um dos caminhos plausíveis a se percorrer. A consagração de Gullar e Clark deu-se muito mais por suas obras posteriores às de suas vivências neoconcretas.

O poeta maranhense é lembrado principalmente por sua obra publicada em 1976 intitulada Poema sujo. Escrito no ano anterior, durante seu exílio político em Buenos Aires, traz em sua forma rupturas típicas do período concretista, mas incorpora à forma um conteúdo 179 Ibidem, p. 78.

180 Documento TS-TEX-012, constante do Fundo Theon Spanudis do Arquivo do IEB-USP.

181 SPANUDIS, Theon. Falta audácia aos críticos de arte brasileiros. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 de dezembro de 1983. Caderno Ilustrada, p. 44

político. Vale destacar que nos anos 1960, Gullar chegou a ser diretor do Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes, o CPC da UNE. Em seus escritos, Spanudis deixa entrever que a arte, quando se propõe política, perde sua qualidade de ser extra-mundana. Assim, uma produção explicitamente política, entendida como parte de um projeto que extrapola sua própria confecção, pode ser um dos incômodos que levam Spanudis a chamar Gullar de um incentivador do mediano182.

Quanto a Lygia Clark, que faria parte dessa seara de artistas medianos, mesmo depois de ter sido entendida e valorizada pelo crítico e colecionador como síntese das tensões artísticas do País, uma possível explicação para a mudança de opinião de Theon Spanudis é, novamente, de preferência estética. Clark, cujas experiências artísticas migraram de telas para performances e acontecimentos, propunha à época da entrevista mencionada anteriormente novos caminhos para a arte e, em certa medida, a transformação da arte como era até então entendida e apreciada. Como a coleção de Spanudis aponta àqueles que a veem, poucos objetos extrapolam o limite do quadro – os que extrapolam é por serem objetos tridimensionais como brinquedos de madeira.

Sobre Hélio Oiticica, impera no Fundo Theon Spanudis do Arquivo do IEB-USP um silêncio um tanto quanto revelador. Há referência onomástica no acervo de todos os signatários do Manifesto Neoconcreto (Spanudis trata das obras de Clark, Gullar, Jardim, Pape; Amílcar de Castro e Franz Weissmann são mencionados em correspondência por Montez Magno). Spanudis não estava alheio à produção de Oiticica, visto que seu nome figurava em cadernos de endereços do colecionador, mas não se encontrou no acervo nem sequer uma única elaboração crítica sobre sua obra.

Os motivos do desinteresse de Spanudis sobre Oiticica podem ser diversos, a começar pela elementar explicação sobre gosto pessoal. O que interessa pontuar aqui é que, se o Manifesto Neoconcreto seria o ponto de partida para a construção de um movimento artístico – com conotações não apenas estéticas mas também éticas como as discussões anteriores puderam indicar –, e Hélio Oiticica foi içado ao patamar de artista neoconcreto por excelência, esse caminho não é tão linear ou ausente de fissuras e tensões.

Ao transformar o Neoconcretismo em uma espécie de ápice da arte brasileira - numa transição entre o que seria dito moderno para uma expressão entendida como contemporânea, 182 Sérgio Martins aponta que, em sua fase como militante de esquerda, Gullar apoiava artistas que recusavam o caminho de uma abstração alienante e se punham a favor de uma arte focada nos problemas do homem e da sociedade a que esse artista pertencia. MARTINS, Sérgio B. op. cit. 2013, p. 87.

um artista cuja poética e produção crítica sobre si mesmo era excepcional foi entendido como exemplar pela crítica e pela História da Arte183. Assim, o epíteto neoconcreto acaba por

explicar bem uma porção diminuta do próprio grupo. Se pensarmos na posição de Spanudis como signatário do manifesto na posição de poeta, e não de artista plástico, essa separação faz-se ainda mais notável, visto que a prática poética neoconcreta, ainda que estivesse presente na exposição, não tenha resistido à construção da memória sobre o grupo184.