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1. O LEGADO EDITORIAL DE LIMA BARRETO (1909-1923)

1.4. O sistema literário e o mercado editorial carioca entre 1900 e 1922

1.4.2. A posição de Lima Barreto diante do oficialismo das letras

1.4.2.2. Adesão ao oficialismo: anseios e realização

Lima Barreto não tinha apenas seu projeto de literatura, como também apresentou a visão de que se precisava de livros ao gosto mediano do público, flertando com o mercado de romances populares. É o caso específico de Numa e a ninfa, publicado em folhetins pelo jornal A Noite: o romance apresentou como um dos subtítulos “romance sugestivo de escândalos femininos (figura 2). Coincidentemente, o proprietário de A Noite, Irineu Marinho, vai fundar, a partir das oficinas do jornal, uma editora que se chamará Empresa de Romances Populares, por onde sairá publicado Bagatelas em 1923.

O escritor de Numa e a ninfa procurou colocar em suas obras a indicação “obras do mesmo autor” (figura 5), mostrando um traço de distinção, fazendo uso da publicidade. Propaganda ou publicidade é

a comunicação persuasiva que, por meio de um conjunto de técnicas e atividades de informação e persuasão, destina a influenciar as opiniões, os sentimentos e as atitudes do público num determinado sentido. É uma ação planejada, desenvolvida através de veículos de comunicação para a divulgação das vantagens, das qualidades e da superioridade de um produto material ou espiritual, como sabonetes, cigarros, bebidas, no primeiro caso, e ideias, crenças, instituições, doutrinas, no segundo caso. Tanto no que tange aos produtos materiais, quanto no que se refere aos produtos espirituais o objetivo da publicidade é claro: ela pretende vendê-los. (FANTINATI, 2012, p. 145).

No mercado editorial, a indicação de “obras do mesmo autor” é feita com o intuito de mostrar que há outras obras do escritor, chamando a atenção do público consumidor que se trata de autor que já possui outras publicações, dando-lhe aspectos de notoriedade. O artifício lembra outras publicações do autor, dando-lhe o traço de distinção que, eventualmente, liga-se ao interesse de ser consumido pelo público leitor:

As técnicas de persuasão e o objetivo de venda da publicidade se inserem no mecanismo geral da oferta e da procura (da produção e consumo), onde ela procura

38CAMARGO, Áureo Joaquim. “A luta dos discursos” em Lima Barreto. Itinerários, Araraquara, n. 36. p. 311- 313, jan./jun. 2013.

não só despertar necessidades, mas também satisfazê-las. Por isso, os produtores procuram, por meio de marcas, tornar as mercadorias capazes de concorrência no mercado, no geral saturado e em mãos de grandes grupos econômicos, e aptas para serem aceitas socialmente. As mercadorias possuem um duplo valor: um valor de troca para o produtor, isto é, o produtor quer trocá-la por dinheiro; e um valor de uso para o consumidor, isto é, o consumidor deseja por meio da mercadoria satisfazer suas necessidades. (FANTINATI, 2012, p. 145).

Lima Barreto soube usar os procedimentos para sua inserção dentro do mercado editorial através dos mecanismos de publicidade exigidos para a venda de seus livros. Os folhetins de Numa e a ninfa foram anunciados como compostos de uma charge dos homens políticos da época do governo Hermes da Fonseca (cf. p. 12 dessa tese); portanto, ao ser publicado em livro, com a sátira aos políticos da época e indicado como romance de “escândalos femininos”, estava criada uma publicidade sobre a obra do escritor.

Outra atitude do escritor para se firmar no sistema literário foi a tentativa de pertencer ao quadro dos imortais da Academia Brasileira de Letras, concorrendo por duas vezes e não obtendo êxito; na terceira vez em que concorreria, retirou sua candidatura. Em 1919, inscreveu a obra Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá para concorrer ao prêmio de “melhor livro do ano”: o resultado foi a “menção honrosa”.

Figura 5: indicação de “obras do mesmo autor” colocada na edição de 1917 de Recordações do escrivão

Isaías Caminha.

O escritor também saiu a campo para auxiliar escritores amigos seus, fazendo indicações de suas obras para os editores, como no caso de uma carta enviada ao proprietário

da Livraria Clássica Editora, de Lisboa, em que recomenda um livro de Domingos Ribeiro Filho (1875-1942):

Aproveito a oportunidade para apresentar-lhe o meu amigo Domingos Ribeiro Filho, escritor bem conhecido nas nossas rodas literárias e autor de um romance – Cravo

Vermelho, que só não teve o sucesso da livraria que merecia, pelo fato do mau

aspecto tipográfico que da brochura em que apareceu. [...]

Ele lhe envia um manuscrito de romance – Vãs Torturas – segundo da série de estudos de uma moral que se propôs a examinar, e para a qual, se tanto lhe mereço, eu pedia um pouco da sua atenção e, caso o julgasse da mesma forma que o julgo, uma obra original e vigorosa, o fizesse editar.

E, sem mais, sou seu amigo agradecido. (XVI: C1, p. 177-178).

Lima Barreto já havia feito elogios ao livro Cravo Vermelho de Domingos Ribeiro Filho no segundo número da revista Floreal, em novembro de 1907, e agora indicava outra obra do escritor ao editor que publicara a primeira obra limabarretiana. A relação estreita entre Ribeiro Filho e Lima Barreto decorreu do fato de ambos terem sido colegas de trabalho na Secretaria de Guerra; além do mais, o autor de Bagatelas acreditava no mérito da literatura do autor de Vãs Torturas, pois este também era um militante anarquista, embora Lima afirmasse que as ideias do colega eram contrárias às suas. É o que se depreende na leitura da crônica que Lima Barreto escreve sobre o lançamento do livro Cravo Vermelho:

Encontramo-nos, eu e o Domingos, discutindo. Daí em diante temos discutido sempre. Vale a pena, portanto, ter em mãos obra sua, já por ser um livro de opiniões acentuadas e, em geral, de opiniões contrárias às minhas, já por ser meu amigo o seu autor e não haver nesse antagonismo de opiniões nenhum perigo de inimizade virulenta. (XII: IL, p. 185).

Se Lima Barreto se mostrou prestativo em ajudar um amigo em publicar um livro, também lhe foi solicitado que intercedesse junto a Monteiro Lobato para que editasse a obra de um jovem escritor. O pedido foi feito por Paulo Hasslocher em carta datada de 02 de maio de 1921:

Enviei-te, por intermédio do teu irmão, os originais de um livro de versos de Prado Kelly, rapaz de grande talento e filho do nosso comum amigo Otávio Kelly (juiz federal) que ele deseja ver editado por Monteiro Lobato.

Venho pedir-te “com todas as minhas forças” que obtenha do teu amigo Lobato a realização dos desejos do meu amigo. Verás que apesar de muito moço (Prado Kelly tem dezessete anos) o poeta tem muitas qualidades e merece a proteção do veterano da inteligência que és.

[...]. (XVII: C2, p. 144-145).

Hasslocher na época em que escreveu esta carta a Lima Barreto, estava na direção, junto com Luís Moraes, da revista semanal A. B. C., um dos mais influentes periódicos na época. Trata-se, então, de uma personalidade de vulto na época, demonstrando na carta que tinha

apreço pela experiência de Lima Barreto. Ganha em importância o pedido por se tratar de um favor a um filho de juiz federal, o que destaca a eminência intelectual de Lima Barreto junto a seus amigos.

Comprovamos esse destaque à pessoa de Lima Barreto pela admiração demonstrada por Jaime Adour, em carta de 19 de março de 1919:

Caro confrade Lima Barreto.

A sua obra de dia para dia cresce no conceito de todos aqueles que sabem prezar o que, ainda, se escreve neste país. Aqui, pelo menos, neste pequeno Estado [Rio Grande do Norte], onde pouco se lê, o seu nome é acatado e admirado por todos. É raro o intelectual ou simples ledor que não conheça o maravilhoso Triste Fim de

Policarpo Quaresma, – que não cite em “rodas” de palestras, a todo transe, como

modelo real, perfeito, um ou outro personagem de suas produções. (XVII: C2, p. 158).

Mencionamos antes aqui sobre a aproximação entre os irmãos Félix Pacheco e João Luís Ferreira, e que o segundo pode ter ajudado o escritor a publicar Triste fim de Policarpo Quaresma em folhetins no Jornal do Comércio, em 1911, o que justificaria a dedicatória ao amigo no livro publicado em 1915.

Importante em questão de aproximação do escritor aos órgãos governamentais foi sua colaboração com o periódico A.B.C., cujo surgimento “está intimamente ligado ao tratado diplomático de mesmo nome firmado, em 1915, por Argentina, Brasil e Chile” (MAUL, 1968, p. 138, apud CORRÊA, 2010, p. 541). O acordo foi firmado pelo ministro das Relações Exteriores e foi assinado no dia 25 de maio de 1915:

Ferdinando Borla fundou então o periódico no mesmo ano de 1915, cerca de três meses antes da concretização do tratado, utilizando-se de sua sigla, que era formada pelas iniciais dos países envolvidos (Argentina, Brasil e Chile. Maul informa que o semanário recebeu subvenção do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) para dar ao país um órgão de publicidade que se distinguiria dos demais existentes no nosso mundo jornalístico”. A esse respeito, o número inicial do A. B. C. deixa algumas pistas, apesar de negar com veemência sua relação com as aventuras diplomáticas do Barão do Rio Branco e de quem o sucedeu após sua morte. (CORRÊA, 2012, p. 96-97).

No periódico, Lima Barreto publicou as crônicas que constituíram o volume Os Bruzundangas, textos satíricos em que o escritor criou um país com características do Brasil da época, aludindo a algumas personagens históricas e coetâneas (CORRÊA, 2010, p. 122). A própria figura do maior expoente do Itamaraty, Barão do Rio Branco, é satirizada nesses textos, comprovando o espírito livre do escritor carioca: mesmo escrevendo para um periódico ligado ao Ministério das Relações Exteriores, não deixou de criticar todas as instituições governamentais, eclesiásticas e acadêmicas do Brasil.

Outro órgão da imprensa carioca que manteve fortes laços com o Ministério das Relações Exteriores foi o Jornal do Comércio, cujo proprietário, José Carlos Rodrigues, fez do periódico

o porta-voz do Itamarati e do seu grande Ministro Rio Branco. Isto para o progresso do Brasil e seu maior prestígio entre as nações. Era muito frequente que Rio Branco, terminados os trabalhos do dia, viesse passar horas na redação do Jornal do

Comércio para um prolongado “bate-papo” com o seu grande amigo. Tornou-se-lhe

isto uma espécie de hábito. Deu motivo a que jornalistas estrangeiros visitando o Rio, escrevessem que o Jornal do Comércio era um órgão semioficial. (GAULD, 1953, p. 435-436).

Foi no Jornal do Comércio, “órgão semioficial” do Itamaraty, que Lima Barreto publicou uma das obras literárias mais desmistificadoras do idealismo nacional39, o romance

Triste fim de Policarpo Quaresma. Mesmo com a proximidade do oficialismo o escritor manteve sua crítica pela sátira desmascarando um Brasil primado pela falácia de um discurso oficial que privilegiava apenas a república dos doutores e os mandarins da literatura.

Em síntese, procuramos demonstrar neste tópico e subtópicos como se configurou o sistema literário brasileiro nas duas primeiras décadas do século XX. A partir das ideias defendidas por Antonio Candido, constatamos um cenário ainda de permanência em relação aos dois últimos decênios do século XIX, constituindo uma literatura de permanência e de poucas novidades estéticas. Ao lado dessa literatura estagnada em questões estéticas, resiste o problema do mercado editorial brasileiro que ainda não dava condições suficientes para uma remuneração satisfatória para os escritores, principalmente para os iniciantes.

Nesse cenário de reduzido mercado editorial, criou-se em torno da livraria Garnier uma espécie de monopólio que privilegiava apenas escritores que estavam alinhados aos ideais propostos pela Academia Brasileira de Letras, o que consequentemente, levou escritores que não estavam alinhados a esse grupo a buscarem outras alternativas para se verem publicados, como a publicação através de editores portuguesas ou por intermédio de empréstimos e outras subvenções que não a oficial.

O posicionamento de Lima Barreto nesse campo é o de confronto, fazendo de sua literatura a arma para a denúncia das dificuldades de se ver publicado e valorizado por seus escritos. Barreto apresenta nos seus escritos a crença de que somente um mercado editorial

39“Estão aí os dois polos máximos da vida política brasileira: as mesquinhas ambições da turbamulta que acotovela em torno do tesouro público, e o idealismo ingênuo que se fecha às realidades mais patentes, e somente enxerga o Brasil através dos primas da excelência e da perfeição. O apetite grosseiro, de um lado; o otimismo beócio, mais belo com certeza, mas igualmente estéril, do outro. Quem nos daria uma síntese mais perfeita? Lima Barreto não era um subjetivista: sentiu e soube exprimir o Brasil. (PRADO JÚNIOR, Caio. “Lima Barreto sentiu o Brasil”. Leitura, Rio de Janeiro, ago. 1943. In. LIMA BARRETO, 1997, p. 438).

mais aberto e mais democrático podia ser a solução para a necessidade dos escritores, ao passo que critica as instituições governamentais e seus vícios.

O escritor, mesmo com a aproximação que teve com os órgãos oficiais, como o periódico A. B. C., não deixou de usar a sátira par desmistificar o discurso oficial, colocando seu espírito livre de intelectual militante que ousou mostrar seu desejo de viver de sua literatura, embora ele mesmo reconhecia que o mercado editorial nacional não lhe proporcionaria este êxito.