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1. O LEGADO EDITORIAL DE LIMA BARRETO (1909-1923)

1.3. A evolução do sistema literário na Europa

1.3.1. Brasil: a evolução do sistema literário

No Brasil, segundo Antonio Candido32, o sistema literário é dividido em três fases. O

primeiro período, de manifestações literárias, que corresponde à época colonial até meados do século XVIII. O segundo momento consiste no período de configuração do sistema literário, que coincide com o espaço que antecede a Independência do Brasil e o Romantismo, até a

32CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. 5ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. 136 páginas.

década de 1880, quando começa a terceira fase, em que o sistema literário nacional se consolida.

Em seu clássico “O escritor e o público”, Antonio Candido atesta:

Quando consideramos a literatura no Brasil, vemos que sua orientação dependeu em parte dos públicos disponíveis nas várias fases, a começar pelos catecúmenos estímulos dos autos de Anchieta, a eles ajustados e sobre eles atuando como lição de vida e concepção do mundo. Vemos em seguida que durante cerca de dois séculos, pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aqui os auditórios – de igreja, academia, comemoração. O escritor não existia enquanto papel social

definido, vicejava como atividade marginal de outras, mais requeridas pela

sociedade diferenciada: sacerdote, jurista, administrador. (CANDIDO, 2008, p. 87.

Grifos do autor).

Durante os séculos XVI e XVII ocorreram apenas manifestações literárias isoladas por ainda não haver condições de configurar um sistema, sendo umas das causas principais disso a falta de um público consistente. Predominam por aqui as manifestações públicas, em que os próprios escritores eram ao mesmo “tempo grupo criador, transmissor e receptor” quase sempre produtores de uma literatura dominada “pelo sermão e pelo recitativo” (CANDIDO, 2008, p. 88).

No movimento que antecede a Independência é que se “esboçam os elementos característicos do público e da posição social do escritor, definindo-se os valores de comunicação entre ambos” (CANDIDO, 2008, p. 88). Foi o momento em que se configurou um panorama de militância intelectual por parte dos escritores envolvidos na valorização das coisas da terra – nativismo, seguindo de nacionalismo, ao que cita Candido a figura de Silva Alvarenga,

provavelmente o primeiro escritor brasileiro que procurou harmonizar a criação com a militância intelectual, graças ao senso quase didático do seu papel. Em torno dele formou-se um grupo, o da Sociedade Literária, que se prolongou pelos dos alunos por ele formados como Mestre de Retórica e Poética, entre os quais alguns próceres da Independência. Assim, não apenas difundiu certa concepção da tarefa do homem de letras como agente positivo na vida civil, mas animou um movimento que teve continuidade, suscitando pequenos públicos fechados que se ampliariam pela ação cívica e intelectual, até as reivindicações da autonomia política e, inseparável dela, da autonomia literária. (CANDIDO, 2008, p. 88).

O processo de Independência e a consequente valorização da literatura não significou aos escritores status de profissionais das letras, por não haver um público consumidor suficiente para tal. O Estado e os grupos dirigentes funcionam como

público vicariante, poderíamos dizer. Com efeito, na ausência de públicos amplos e conscientes, o apoio ou pelo menos o reconhecimento oficial valeram por estímulo, apreciação e retribuição da obra, colocando-se ante o autor como ponto de referencial. (CANDIDO, 2008, p. 94).

Dentre os exemplos de proximidade de escritores com o mecenato oficial está o caso de Domingos José Gonçalves de Magalhães, que publica em Paris Suspiros poéticos e saudades em 1836, considerada obra-marco do Romantismo brasileiro. Magalhães foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro33 e teve sua obra A Confederação dos Tamoios

editada pelo imperador D. Pedro II, o qual outorgou ao artista o título de Barão de Visconde e Araguaia (cf. BOSI, 2003, p. 97-98).

Ao par desse oficialismo das letras, os escritores ocupavam funções públicas, como a de médicos, juristas e mesmo cargos políticos. Joaquim Manuel de Macedo, embora tenha se formado em Medicina, lecionou História do Brasil no Colégio D. Pedro II e foi preceptor dos netos do Imperador, além de deputado pelo Partido Liberal. O maior prosador do Romantismo nacional, José de Alencar, cursou Direito e foi deputado provincial pelo Ceará.

A imprensa foi outro campo fecundo para as letras nacionais a partir da implantação da imprensa no Brasil com a chegada da Família Real no Brasil, em 1808, com todos os romancistas publicando romances em folhetins e, no caso de alguns, como Manuel Antônio de Almeida, ocuparam cargos de redatores. E não se pode ignorar a figura daquele que será a maior de todas na literatura nacional, Machado de Assis, filho de um pintor mulato e uma lavadeira açoriana, que aos 16 anos entrou na Imprensa Nacional. O escritor teve uma carreira burocrática, “primeiro no Diário Oficial (1867-73) e, a partir de [18]74, na Secretaria da Agricultura” quando “pôde entregar-se livremente à sua vocação de ficcionista” (BOSI, 2003, p.174). Não se pode esquecer também que a imprensa teve papel fundamental para o desenvolvimento da literatura machadiana, como também na maioria dos escritores nacionais a partir dos meados do século XIX.

O processo de consolidação do sistema literário nacional se dá, segundo Antonio Candido, a partir da década de 1880, quando a literatura que

não consta mais de produções isoladas, mesmo devido a autores eminentes, exprimindo-se através de veículos que asseguram a difusão dos escritos e reconhecendo que, a despeito das influências estrangeiras normais, já podem ter como ponto de referência uma tradição local. (CANDIDO, 2007, p. 64).

33 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi fundado em 1838, existindo até os dias atuais, é “caracterizado por atividades múltiplas, nos terrenos cultural e cívico, pela reunião de volumoso e significativo acervo bibliográfico, hemerográfico, arquivístico, iconográfico, cartográfico e museológico, à disposição do público, durante todo o ano, e pela realização de conferências, exposições, cursos, congressos e afins.

Contou com o patronato do imperador d. Pedro II, a quem foi dado o título de Protetor, o qual incentivou e financiou pesquisas, fez doações valiosas, cedeu sala no Paço Imperial para sede do Instituto, em seus passos iniciais, e presidiu mais de 500 sessões. (FONTE: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, disponível em http://www.ihgb.org.br/ihgb2.php. Acesso em 08 ago. 2015.)

O mercado editorial brasileiro começa a partir de 1808, quando deixamos a condição de colônia, tornando-se o centro da Metrópole com a chegada da Família Real. Nesse mesmo ano foi criada a Imprensa Régia, permitindo a impressão de livros, jornais e folhetos. No entanto,

o custeio da impressão da obra, em muitos casos, ficava a cargo do autor, como ocorreu com a Corografia Brasílica. O autor do texto levantava o dinheiro necessário para pagar a edição da obra através de subscrições públicas. Por esse sistema, cada interessado subscrevia uma determinada quantia para ter o direito de receber um livro. A impressão era feita se fosse alcançado um número mínimo de subscritores que permitisse cobrir os gastos. (KOSHIYAMA, 2006, p. 24).

Este aspecto da dificuldade de impressão pelos altos custos é uma tônica do emergente mercado editorial do país. E é por meio dos jornais, como mencionamos, que muitos escritores tiveram os periódicos como meios para suas obras atingirem o público leitor. A escrita literária em jornais e revistas durante o Segundo Reinado levou os autores

a escrever para um público de mulheres, ou para os serões onde lia em voz alta. Daí um amaneiramento bastante acentuado que pegou em muito estilo; um tom de crônica, de fácil humorismo, de pieguice, que está em Macedo, Alencar e até Machado de Assis. Poucas literaturas terão sofrido, tanto quanto a nossa, em seus melhores níveis, esta influência caseira e dengosa, que leva o escritor a prefigurar um público feminino e a ele se ajustar. (CANDIDO, 2008, p. 95).

Esta literatura de fácil acesso não permitiu, porém, aos escritores uma remuneração por parte do público, “obrigando o Estado a interpor-se entre ambos, como fonte de outras formas de retribuição” (CANDIDO, 2008, p. 95), como no referido caso de Gonçalves Magalhães. A despeito da ausência de um público amplo que fornecesse remuneração suficiente para os escritores, aconteceu a instalação das livrarias, que aumentaram em proporção a partir de 1808, como a Livraria Garnier, “um exemplo eloquente das novas estratégias do comércio livreiro no movimento internacional e circulação de mercadorias na segunda metade do século XIX, bem como da inserção brasileira nesse circuito de negócios com livros e livrarias” (DUTRA, 2010, p. 70).

A livraria Garnier tem o início da sua história em 1837, na França, com os irmãos François Hippolyte, Auguste Désiré e Pierre Auguste. Um quarto irmão, Baptiste Louis expandiu os negócios da Garnier, sendo diretor da livraria na cidade do Rio de Janeiro. No Brasil, a comercialização dos livros pelo representante da livraria francesa se dava pelos títulos editados pela matriz parisiense e encarregava-se da “impressão das edições dos autores brasileiros, os quais não foram poucos” (DUTRA, 2010, p. 70), o que tornou a principal referência pelo desenvolvimento editorial por aqui, proporcionando

pagamento regular de direitos autorais, boa remuneração aos tradutores, formação de um corpo fixo, qualificado, de redatores-revisores e um investimento maciço em literatura, tanto europeia quanto nacional. Baptiste Louis publicou, entre outros, Honoré de Balzac, Walter Scott, Charles Dickens, Alexandre Dumas e Oscar Wilde. Mas evitava lançar autores desconhecidos. Mesmo assim, acabou editando a maioria dos romancistas brasileiros importantes de seu tempo. (PAIXÃO, 1995, p. 19).

Outras importantes livrarias e editoras, na passagem do século XIX para o XX, eram a Laemmert, Quaresma e Francisco Alves. E quem monopoliza o “melhor comércio da capital, tornando-se a principal referência na importação de livros de autores em língua francesa e na difusão de autores franceses em geral, bem como de almanaques e revistas publicados na França” (DUTRA, 2010, p. 71) foi a Garnier; e em torno dela, estava Machado de Assis, que em 1897 era aclamado presidente da recém-criada Academia Brasileira de Letras, entidade que teve fortes laços com a livraria de Baptiste Garnier.