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Repúdio ao oficialismo e a consciência crítica de Lima Barreto

1. O LEGADO EDITORIAL DE LIMA BARRETO (1909-1923)

1.4. O sistema literário e o mercado editorial carioca entre 1900 e 1922

1.4.2. A posição de Lima Barreto diante do oficialismo das letras

1.4.2.1. Repúdio ao oficialismo e a consciência crítica de Lima Barreto

Nicolau Sevcenko escreve que havia dois grupos de intelectuais: o primeiro foi aquele formado pelos “vencedores”, conforme citamos no tópico anterior. O segundo é o dos “derrotados”,

Ou ratés, por oposição aos primeiros [“vencedores”], apresenta por sua vez também uma modesta clivagem interior. Trata-se menos de uma nova divisão que de uma definição de áreas e modos preferenciais de atuação. Marginalizados, esses escritores optariam por duas formas incompatíveis de reação. De um lado se postaram os que acatavam o seu opróbrio com resignação diante do mal consumado, inexorável, experimentando-o com estoicismo, muito embora inquietando os inimigos pela exibição dura e continuada de sua própria dor. De outro, estavam os inconformados com a nova ordem das coisas e que reagiam pela combatividade permanente, buscando na pregação reformista obstinada um desagravo contra seu abandono. (SEVCENKO, 2003, p. 133).

É nesse segundo grupo que Lima Barreto se inseriu e fez uso de seus textos nos periódicos cariocas, além de seus escritos ficcionais e confessionais, para demonstrar o seu inconformismo. Conhecedor de suas próprias dificuldades em se ver publicado ou mesmo

valorizado literariamente, Lima tinha uma visão profunda da constituição e condições do mercado editorial, sabendo como deveriam ser publicadas e postas em circulação as obras literárias. Na crônica “O Garnier morreu”, afirma no início: “A morte de H.[Hippolyte] Garnier [...] provoca falar na questão da edição de obra entre nós, sem esquecer a do comércio de livros em geral” (LIMA BARRETO, 2004, v. 1, p.102).

Os pontos cruciais para o mercado editorial são, para ele, a edição e o comércio do livro, o que evidencia mais ainda sua visão crítica: “Para quem quer ser autor e quer ter na sua obra a necessária e indispensável independência, esta questão [da edição de obra] está sempre presente e absorvente” (LIMA BARRETO, 2004, v. 1, p. 102). A reclamação também se direciona para a postura da livraria Garnier, sob a direção de Hippolyte Garnier, em aceitar apenas escritores que tivesse “representação oficial”. Invectivando o recém falecido editor de “velho mentecapto” e que não falava português e nem “tinha vivido no nosso meio”, faz uma comparação com o estágio anterior da livraria Garnier, quando era dirigida por Baptiste-Louis Garnier, irmão de Hippolyte:

Foram-se os bons tempos do B. L. Garnier. Este viveu aqui, conhecia-nos, podia

aquilatar o valor, não direi intelectual, mas comercial de um livro; mas, nesses

últimos anos, sem ter ninguém propriamente dito, da casa que julgasse os manuscritos, sucediam-se borracheiras aparecidas chez Garnier. (LIMA BARRETO, 2004, v. 1., p. 102).

A crença no mercado editorial, como no trecho que elogia o antecessor de Hippolyte, Baptiste-Louis Garnier37, é evidente ao afirmar que sabia medir o valor comercial de um livro.

A crítica recai sobre a Garnier de Hippolyte por não ter ninguém que julgasse os manuscritos, publicando-se “borracheiras”, que significa, entre outras coisas, “[2.2.p.ext. ]o que é tolo, extravagante; dislate, asneira, borrachice;3.p.ext.infrm.Coisa de má qualidade, malfeita ou que sai mal; borrachice” (Dicionário Houaiss Eletrônico). A defesa do mercado editorial e o ataque à exploração dos escritores são evidentes na crônica, como no trecho a seguir, ao se referir aos primórdios da velha livraria: “Dizem que ela [livraria Garnier] animou as letras pátrias. Não nego que o fizesse, mas de uns vinte anos para cá [1891-1911] só tem sabido aproveitar pecuniariamente reputação feita alhures” (LIMA BARRETO, 2004, v. 1, p. 102). O elogio, como vemos, é presente quando Lima indica que B.L. Garnier arriscava no mercado com escritores novos; a crítica, quando a livraria deixa de fazê-lo entre 1891 e 1911.

Na sequência das críticas, o autor tece consideração sobre a má vontade de Hippolyte Garnier em manter escritores consagrados na época e fora do catálogo da editora, sendo isso

um desserviço prestado às letras do país. Ataca mais uma vez o livreiro francês: “Velho rico, ignorante das nossas coisas, o seu critério era o dos pistolões e do nome que o autor tinha no mundo” (LIMA BARRETO, 2004, v. 1, p. 103).

Após afirmar não sentir despeito e dizer que nunca tentou editar-se pela Garnier, reclama da necessidade da existência de outras editoras, demonstrando lucidez e pertinência de suas críticas:

É necessário que surjam outras casas editoras; é necessário que os lucros imensos que a Garnier tem tido provoquem o aparecimento de energias e capitais, que nos libertem de abjeta tutela. Não é possível que um país como o nosso só tenha um editor e esse editor seja estrangeiro, e viva fora do país, nada conheça de nossa atividade literária e mental, se deixe guiar por pistolões e recomendações. (LIMA BARRETO, 2004, v. 1, p. 103).

A consciência da necessidade de um mercado editorial competitivo e de que o livro enquanto mercadoria siga regras do mercado ligam-se à esperança de que o desaparecimento de Hippolyte Garnier traga melhoria para o comércio livreiro: “Essa pressão que a velha casa exercia sobre a nossa atividade literária precisava cessar, em bem nosso e das letras em geral; e amor desse octogenário (sic) rico e egoísta talvez determine isso e eu me alegro com ela” (LIMA BARRETO, 2004, v. 1, p. 104).

O escritor ressentia, logicamente, da situação do comércio livreiro no país na época porque nutria o sonho de viver da glória conquistada pela literatura, conforme afirmou na entrevista que deu à revista Época em 20 de fevereiro de 1916, transcrita parte em nota de rodapé no volume XIV da organização feita por Francisco de Assis Barbosa em 1956:

[...] desde o meu Isaías Caminha, que só trato de obedecer ao meu Taine: a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. É esse o meu escopo. Vim para a literatura com todo o desinteresse e com toda a coragem.

O fim da minha vida é as letras. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória. Eu sou afilhado de Nossa Senhora da Glória. Não quero

ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço gloríolas, peço-lhes coisa sólida e duradoura. (XIV: DI, p. 183-184. Grifos meus).

Assim, o desejo que o escritor tinha de poder conseguir com sua obra uma autonomia monetária o suficiente para que se mantivesse apenas de seus escritos foi sempre esbarrado pela configuração do mercado editorial na época. Conforme proposta de Robert John Oakley, no seu fundamental Lima Barreto e o destino da literatura, Lima Barreto denunciou a exploração da retórica oficial como imoral e reacionária (OAKLEY, 2011, p. 41). O pesquisador britânico relaciona a forma dos escritos de Lima Barreto com o ideal de comunicar-se satisfatoriamente pela literatura com um leitor virtual e necessidade de se ter

muita inteligência e a meditação sobre a razão fundamental da arte: a penetração e a articulação do significado da existência, com a meta de criar a solidariedade humana38. Lima

Barreto tinha a convicção do seu projeto de literatura e o usou para denunciar e atacar a literatura como “sorriso da sociedade”, dominante das letras no período chamado de Pré- modernismo nacional. Contudo, houve um Lima Barreto que flertou com o oficialismo, usando alguns mecanismos do mercado editorial, procurando colocar seu nome no panteão das letras nacionais.