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A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 trata-se de um marco histórico para o Direito brasileiro, principalmente no que diz respeito ao Direito de Família, já que houve uma expressiva quebra de paradigmas e grande avanço social.

Embora o caso diga respeito à vida privada dos indivíduos em suas relações intimas e nos relacionamentos afetivos-sexuais, são demandas que se tornaram públicas e de grande debate social.

A Suprema Corte passou a entender que as relações de união homoafetivas devem ser reconhecidas como entidade familiar. Trata-se de reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, para que sejam aplicados os institutos jurídicos aplicáveis a união estável nas relações homoafetivas.

A ADI 4277 foi julgada conjuntamente com outra ação muito semelhante, trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132, que fora apresentada ao Supremo em 25 de Fevereiro de 2008, teve como autor o Governador do Rio de Janeiro da época, Sérgio Cabral. A ADPF indicou, entre outras coisas, os direitos fundamentais violados, sendo esses o direito a igualdade, o direito à liberdade, desdobrado na autonomia da vontade, o princípio da segurança jurídica e também princípio da dignidade da pessoa humana.

Pleiteava-se que fosse aplicado de forma analógica o disposto no artigo 1723 do Código Civil brasileiro às uniões homoafetivas, tendo como base a interpretação conforme a Constituição a fim de invocar os princípios anteriormente mencionados. Tinha como objeto principal o pedido para que o STF interpretasse o Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro conforme a Constituição e declarasse que as decisões judiciais que negavam a equiparação jurídica das uniões homoafetivas às uniões estáveis, estariam afrontando os direitos fundamentais.

Posteriormente à propositura da ADPF 132, a Procuradoria Geral da República em 02 de Julho de 2009 propôs a ADPF 178 que acabou sendo convertida pelo na época Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes na ADI 4277.

3.1.1 Análise da ADI 4277

Trata inicialmente do pedido feito na ADPF 132, o Ministro relator Ayres Britto considerou que a demanda havia perdido o seu objeto, levando em consideração que a legislação do Estado do Rio de Janeiro já reconhecia a relação homossexual à condição de companheiro para os fins pretendidos, conforme dispõe o Relator Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011, p.625):

Devo reconhecer, porém, que a legislação fluminense, desde 2007 (art. 1º da Lei nº 5.034/2007), equipara ―à condição de companheira ou companheiro (...) os parceiros homoafetivos que mantenham relacionamento civil permanente, desde que devidamente comprovado, aplicando-se, para configuração deste, no que couber, os preceitos legais incidentes sobre a união estável de parceiros de sexos diferentes‖. Sendo que tal equiparação fica limitada ao gozo de benefícios previdenciários, conforme se vê do art. 2º da mesma lei, assim redigido: ―aos servidores públicos estaduais, titulares de cargo efetivo, (...) o direito de averbação, junto à autoridade competente, para fins previdenciários, da condição de parceiros homoafetivos‖. O que implica, ainda que somente quanto a direitos previdenciários, a perda de objeto da presente ação. Perda de objeto que de logo assento quanto a esse específico ponto. Isso porque a lei em causa já confere aos companheiros homoafetivos o pretendido reconhecimento jurídico da sua união.

O Min. Ayres Britto ainda acabou por atender ao pedido subsidiário da ADPF 132 e converteu essa em Ação Direta de Inconstitucionalidade, tal como ocorreu com a ADI 4277, quando do seu recebimento pelo Presidente do STF, sobre tal, versa o Relator Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011, p. 626-627):

Seja como for, o fato é que me foi redistribuída a ADI nº 4.277, versando o mesmo tema central da ADPF nº 132. Dando-se, por efeito mesmo dessa distribuição, uma convergência de objetos que me leva a subsumir ao mais amplo regime jurídico da ADI os pedidos insertos na ADPF, até porque nela mesma, ADPF, se contém o pleito subsidiário do seu recebimento como ADI. Por igual, entendo francamente encampados pela ADI nº 4.277 os fundamentos da ADPF em tela (a de nº 132-DF). Fundamentos de que se fez uso tanto para a pretendida ―interpretação conforme‖ dos incisos II e V do art. 19 e do art. 33 do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Rio de Janeiro) quanto para o art. 1.723 do Código Civil brasileiro, assim vernacularmente posto: ―É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família‖. É o que me basta para converter a ADPF em ADI e, nessa condição, recebê-la em par com a ADI nº 4.277, a mim distribuída por prevenção.

Estando resolvidas as questões referentes às duas ações, resta claro que o objeto das duas demandas é a o art. 1.723 do Código Civil brasileiro e a sua interpretação conforme a Constituição.

Nesse sentido assevera o Relator Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011, p.629):

E, desde logo, verbalizo que merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de ambas as ações. Pedido de ―interpretação conforme à Constituição‖ do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não- clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família.

O Relator ainda analisa o artigo 226 da Constituição Federal, onde discorre acerca da família ser a base da sociedade, a qual foi conferida proteção estatal, não sendo necessária para essa proteção o modo pela qual essa foi formada, seja casamento ou união estável, também discorre que não possui relevância se essa é integrada por partes hetero ou homossexuais, afirma que a família vai além da biologia, está ligada ao espirito e a cultura, conforme versa o Relator Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011, p. 644):

A parte mais importante é a própria cabeça do art. 226, alusiva à instituição da família, pois somente ela − insista-se na observação - é que foi contemplada com a referida cláusula da especial proteção estatal. Mas família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico).

O Relator ao longo de seu voto discorre a acerca dos princípios constitucionais, estes que servem como base sustentadora para a decisão. Ao entender que o art. 1.723 do Código Civil brasileiro deve ser interpretado conforme a Constituição, para que seja equiparada a união homoafetiva a união heteroafetiva, o relator observa diversos princípios, entre eles a dignidade da pessoa humana, a liberdade (no presente caso discorrendo acerca do livre exercício da sexualidade), da igualdade, da vedação da discriminação em razão de sexo ou qualquer outra natureza, do pluralismo.

Ainda expressa sua posição contrária ao preconceito e também manifesta que embora situações fáticas não estejam expressas na norma, essas não podem sofrer sonegações, principalmente no que tangem situações onde se trate de direitos validos e expostos no âmbito Constitucional.

O Supremo acabou por reconhecer que o artigo 1.723 do Código Civil deve ser aplicado em observância com o parágrafo 3º do art. 226 da Constituição Federal, para que seja reconhecida a união estável para as relações homoafetivas, estendendo dos a normatividade dos artigos citados para essas relações que até então não estavam previstas em lei.

Além do Relator, os demais ministros que participaram no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, votaram pela procedência das demandas constitucionais. Reconheceram a união entre pessoas do mesmo sexo a como entidade familiar, devendo ser aplicada as mesmas regras do regime de união estável, disposto no artigo 1.723 do Código Civil brasileiro.

Conforme dispõe no Relator Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011, p.615):

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em conhecer da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 como ação direta de inconstitucionalidade, e julgá-la em conjunto com a ADI 4277, por votação unânime. Prejudicado o primeiro pedido originariamente formulado na ADPF, por votação unânime. Rejeitadas todas as preliminares, por votação unânime. Os ministros desta Casa de Justiça, ainda por votação unânime, acordam em julgar procedentes as ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, com as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva, autorizados os Ministros a decidirem monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da publicação do acórdão.

Valendo-se de seus argumentos, cada um com suas peculiaridades, os Ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro de forma unanime julgaram procedentes as ações, conferido as relações homoafetivas a qualidade de entidade familiar e que as essas passam a estar submetidas ao regime da união estável.

3.1.2 A questão do ativismo judicial no presente caso – ADI 4277

O presente caso, por ser de grande repercussão e destaque no cenário jurídico, despertou a discussão a respeito de que as decisões nas ações seriam baseadas no ativismo judicial do STF, sendo assim estaria ocorrendo a usurpação do Poder Legislativo por parte do Judiciário, afrontando a Separação dos Poderes.

Todavia, a respeito da questão ativismo judicial na decisão, versa o Ministro Celso de Mello (BRASIL, 2011, p.867):

Nem se alegue, finalmente, no caso ora em exame, a ocorrência de eventual ativismo judicial exercido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente porque, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada, como na espécie, por pura e simples omissão dos poderes públicos.

Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República.

O Ministro discorre que o STF ao julgar o caso, cumpriu a sua função jurisdicional, pois ao suprir a falta de norma expressa, valendo-se de princípios constitucionais, exerceu sua função de guardião da Constituição.

O ativismo judicial está diretamente ligado com a inércia do Legislativo. O STF ao julgar casos como o da presente demanda utiliza-se da pró-atividade para interpretar a Constituição.

Ao julgar a ADPF 132 e a ADI 4277 a postura ativista se justifica pela inércia legislativa. A lei é omissa quanto as relações de homoafetividade, o que é extremamente prejudicial para a democracia, uma vez que as minorias também fazem parte do Estado e merecem atenção legislativa, é o que entendo o Ministro Celso de Mello (BRASIL, 2011, p.853):

Desse modo, e para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica meramente conceitual ou simplesmente formal, torna-se necessário assegurar, às minorias, notadamente em sede jurisdicional, quando tal se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais que a todos, sem distinção, são assegurados.

Ainda quanto ao Ativismo no julgamento das ações dispõe o Ministro Gilmar Mendes (BRASIL, 2011, p.778):

Não seria extravagante, no âmbito da jurisdição constitucional, diante inclusive das acusações de eventual ativismo judicial, como já explicitado neste voto, de excesso de intervenção judicial, dizer-se que melhor saberia o Congresso encaminhar esse tema, como têm feito muitos parlamentos do mundo todo. Destaquei acima, inclusive, a contribuição do direito comparado neste tema, o que demonstra a complexidade e relevância deste debate. Mas é verdade, ainda, que o quadro que se tem no Brasil, como já foi aqui descrito, é de inércia, de dificuldades e de não decisão por razões políticas várias.

É evidente também que aqui nós não estamos a falar apenas da falta de uma disciplina legislativa que permita o desenvolvimento de uma dada política pública. Nós estamos a falar, realmente, do reconhecimento do direito de minorias, de direitos fundamentais básicos. E, nesse ponto, não se trata de ativismo judicial, mas de cumprimento da própria essência da jurisdição constitucional.

O Ministro em forma de crítica discorre a respeito da inércia do Legislativo, esse que deveria esse apresentar soluções para às lacunas legais, o que evitaria às presentes demandas junto ao Poder Judiciário, todavia entende que o problema vai além da inatividade parlamentar, trata-se do próprio reconhecimento de direitos por parte das minorias, sendo assim o Judiciário é aquele ao qual é recorrido para que sejam assegurados os direitos fundamentais.

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