• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 Análise interpretativa dos pares tensionais

2 Análise do par tensional matemática escolar /matemática de um grupo profissional

2.1 Adjetivações e expressões bipolares

Os principais textos de Knijnik que analisamos são relativos à sua tese de doutorado

Exclusão e Resistência, Educação Matemática e Legitimidade cultural (1996) e O Saber Popular e o Saber Acadêmico na Luta pela Terra (2002b). Os textos relatam os resultados

de sua pesquisa de campo em cursos de formação de professores leigos de uma instituição vinculada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem – Terra (MST) - curso de magistério de férias, realizado na zona rural do município de Braga, RS, nos períodos de férias – janeiro, fevereiro e julho, dos anos de 1991 e 1992 (KNIJNIK, 1996, p. XV). Além desses, são considerados outros textos da autora (2002a, 2004), com temática metodológica da pesquisa em Educação Matemática.

A autora é referência na área de Etnomatemática e suas publicações trazem uma rica discussão para a área de currículo e cultura, na qual transparece sua inspiração na perspectiva teórica desenvolvida por Tomas Tadeu da Silva. Os textos de Knijnik são de cunho predominantemente sociológico e uma das principais referências é Pierre Bourdieu, de quem toma os conceitos de cultura e de habitus, a partir dos quais discute a posição dominante da matemática acadêmica definida pela cultura como o saber legítimo e válido, possibilitado por sua força material. Por conseguinte, Knijnik discute a apropriação e a valorização dos saberes matemáticos acadêmicos e aqueles utilizados no meio rural da região estudada sob a ótica da dominação.

Sobre a forma como a autora lida com a expressão bipolar ‘matemática popular/matemática acadêmica’ por ela empregada, observamos, conforme orientação de nosso roteiro de análise, o seguinte: a autora mostra-se ciente de que as matemáticas em questão são diferentes; por outro lado, ela não considera a distinção, por nós anteriormente trabalhada, entre a matemática escolar e a acadêmica. De fato, ela emprega o termo matemática acadêmica mas refere-se à matemática formal/acadêmica ensinada na escola e também, como ficará claro a seguir, denomina ‘matemática popular’ aquela pesquisada por ela entre seus alunos camponeses. Por essas razões, a análise do texto-documento cuja a

expressão bipolar é ‘matemática popular/ matemática acadêmica’ foi inserida, com algumas acomodações, no par tensional matemática escolar /matemática de um grupo profissional41.

O texto-documento de Ademir Damazio aqui analisado está publicado como volume I da Coleção Introdução à Etnomatemática e denomina-se Especificidades Conceituais de

Matemática da Atividade Extrativa do Carvão (DAMAZIO, 2004).

Conforme o título sugere, o texto-documento tem como tema conceitos matemáticos que compõem o repertório dos trabalhadores da comunidade de Guatá, município de Lauro Muller, SC., que viveram várias décadas sobre uma forte influência política e econômica das empresas (duas que se sucederam) mineradoras de carvão que se instalaram na comunidade. Neste sentido e, observando o texto de Damazio, vemos que ele realiza uma discussão sob a ótica cognitiva e aborda a matemática de um grupo profissional, a dos funcionários da empresa de mineração (os mineiros), relacionando-a com a matemática escolar.

As adjetivações empregadas por Damazio formam expressões bipolares. Damazio toma a expressão bipolar mais ampla diretamente de Vygotsky: conceitos espontâneos e conceitos científicos. Ele delimita estes conceitos para o âmbito da Educação Matemática introduzindo a expressão bipolar “saberes matemáticos do cotidiano e saberes científicos” (DAMAZIO, 2004, p. 8) e “conceito cotidiano geométrico e conceitos geométricos eruditos” (DAMAZIO, 2004, p. 41).

Outro texto-documento que compõe as análises do par tensional matemática escolar /matemática de um grupo profissional é a dissertação de mestrado de Wanderleya N. G. Costa, intitulada “Os Ceramistas do Vale do Jequitinhonha: uma investigação etnomatemática” (COSTA, 1998).

O objetivo do estudo de Costa é compreender e analisar o conhecimento matemático que envolve a produção e a comercialização de peças de cerâmica do Vale do Jequitinhonha. A partir disso, seria possível comparar a escola formal e a escola de cerâmica para poder apontar contribuições para a articulação e integração entre o conhecimento matemático popular e o conhecimento matemático acadêmico:

41 Esclarecemos que entendemos as especificidades do grupo de camponeses trabalhado por Knijnik (1996)

“Este trabalho teve como objetivo desenvolver um estudo crítico, reflexivo e analítico sobre a construção de peças de cerâmica e de outros acontecimentos da vida cotidiana dos ceramistas para, por meio dele, detectar, compreender e analisar o conhecimento matemático que os envolve, bem como a maneira que o transmitem. A partir disto, existia a intenção de se fazer uma análise comparativa entre a “escola de cerâmica” e a escola formal. Esta análise comparativa deveria apontar algumas contribuições para a melhoria da articulação e integração entre o

conhecimento matemático popular e o conhecimento matemático acadêmico” (COSTA, 1998, resumo ou p. 2).

As adjetivações empregadas nessa dissertação formam a seguinte expressão bipolar:

conhecimento matemático popular e o conhecimento matemático acadêmico, sendo que o

conhecimento matemático popular é aquele dos aprendizes e trabalhadores ou artesões da cerâmica, e conhecimento matemático acadêmico refere-se à matemática escolar. Ou seja, há uma identificação entre a matemática escolar e a acadêmica que corresponde ao pólo genérico da expressão bipolar, enquanto que o outro pólo corresponde a uma pesquisa de inspiração etnográfica, geográfica e temporalmente considerada.

Essa forma de abordar a expressão bipolar nos remete a reflexão sobre os valores da modernidade e pós- modernidade, pois é explicitada a contraposição dos valores universais da matemática única versus os particulares (ou singulares) do conhecimento dos ceramistas pesquisados (COSTA, 1998, p. 17, 22, 48). Este tema será retomado adiante.

Foi analisado o texto-documento que é parte da tese de doutorado de Isabel C. R Lucena, publicada com o título “Etnomatemática e práticas profissionais”, na Coleção

Introdução à Etnomatemática, publicada no Congresso Brasileiro de Etnomatemática em

Natal (IICBEm2), RN, p. 51-81, aqui referenciada por (LUCENA, 2004a). Esta publicação é composta de duas partes independentes, sendo a outra parte de autoria de Francisco de Assis Bandeira, que será considerado também nesta análise. Outro texto de Lucena que será citado, e que possui tema semelhante é Novos Portos a Navegar: por uma educação

etnomatemática, aqui referido por (LUCENA, 2004b)

O objetivo dos textos de Lucena é estabelecer um diálogo entre conhecimentos da tradição escolar e conhecimentos da tradição cultural a partir do qual uma proposta de ensino será ‘plantada’:

“Identificar práticas matemáticas nas atividades desenvolvidas pelos mestres artesãos e reconhecê-las como um conhecimento matemático inerente às raízes culturais dessa população poderia possibilitar implicações para a Educação matemática em contexto escolar? Ou ainda:

existem relações significativas entre a construção de barcos e o ensino de matemática?” (LUCENA, 2004a, p. 55).

É neste contexto se que identifica a expressão bipolar “Ciência e Tradição”, sendo que tradição refere-se aos conhecimentos alheios à academia, “saberes gerados a partir de padrões classificados como não científicos, formando sistemas de explicações não necessariamente de caráter pragmático, que são praticados, reconhecidos pela comunidade a que se destinam e repassado de geração a geração (...)” (LUCENA, 2004a, p. 53).

A autora associa a ciência à matemática institucionalizada que, por sua vez, também se associa à matemática escolar, sobre a qual o projeto da autora pretende intervir:

“Ampliar o olhar para além da restrita matemática institucionalizada nos currículos é também contribuir para a compreensão e “resignificação” (resignação) dessa matemática. Os saberes da tradição e os conhecimentos científicos fazem parte de um espectro complexo de conhecimentos construídos e transformados de geração a geração. Não significa dizer que são indistintos, também não são exclusivistas, mas imprescindivelmente complementares. A matemática escolar segue ciclo sincrônico de estruturas, na qual a aprendizagem solidifica-se pela repetição de conceitos e regras” (LUCENA, 2004b, p. 210).

O propósito de Bandeira em seu texto “Etnomatemática dos agricultores de Gramorezinho: o caso do par de cinco” relatar sua pesquisa cujo objetivo foi: “investigar as idéias matemáticas presentes nas atividades de produção e comercialização de hortaliças, e analisá-las à luz da Etnomatemática” (BANDEIRA, 2004, p. 11).

O texto-documento analisado apresenta essencialmente as idéias matemáticas específicas dos agricultores e serão abordadas na seção que trata das diferenças entre as matemáticas mas, vejam, não se vale de expressões polarizadas, pois o autor se apóia em pesquisa etnográfica com o propósito de ‘desvendar práticas matemáticas específicas’ (BANDEIRA, 2004, p. 13)

Da vasta produção de Alexandrina Monteiro, a análise aqui realizada se restringe à sua tese de doutorado intitulada “Etnomatemática: as possibilidades pedagógicas num curso de alfabetização para trabalhadores rurais assentados” referida por (MONTEIRO,1998). O problema levantado na tese em questão é a ausência de significado da matemática

trabalhada no contexto escolar gerada pelo excesso de formalismo, simbolismo e ausência de saberes advindos do contexto social e cultural, o que leva a autora a investigar o que a etnomatemática propõe numa perspectiva pedagógica e as possibilidades de concretização dessa proposta.

A expressão bipolarizada empregada por Monteiro (1998) é ‘matemática no contexto escolar e práticas cotidianas de matemática’, a primeira expressão identificada com a matemática acadêmica e as práticas cotidianas são relativas aos saberes advindos do contexto social e cultural dos trabalhadores rurais assentados. A autora não pretende dicotomizar o saber popular e acadêmico mas “enfatizar que “os homens na sociedade participam de uma maneira ou de outra, do conhecimento por ela produzido” (MONTEIRO, 1998, p. 72). Ela parece concluir, com base na literatura42, que todos produzem algum tipo de conhecimento, ou resignificam os conhecimentos a que têm acesso. Destaca-se o caráter pluralista da ciência, a ênfase e valorização de diversos conhecimentos, mas me parece implícita a possibilidade de fazer convergir esses vários conhecimentos nas atividades pedagógicas desenvolvidas na escola com base na modelagem matemática.

Dois textos de Giongo que tratam do mesmo assunto são referências na análise que se segue: “Etnomatemática e práticas da produção de calçados”, apresentado no IICBEm2, Natal, 2004 e a dissertação de mestrado, na qual o artigo mencionado se baseia, intitulada

Educação e produção de calçados em tempos de globalização: um estudo Etnomatemático,

2001.

O objetivo do estudo apresentado por Giongo é observar como se relacionam os saberes do "mundo da escola" e os saberes do "mundo do trabalho", examinados no contexto fabril calçadista, sob a ótica da Educação Matemática. A análise destas relações evidenciou que "mundo da escola" legitima somente conhecimentos oriundos da Matemática acadêmica, desvalorizando a cultura dos grupos sociais aos quais a escola está vinculada, no caso, as práticas cotidianas que circulam no "mundo do calçado".

As expressões polarizadas do estudo são "mundo do calçado" e "mundo da escola". A matemática acadêmica é valorizada pela escola, mas não identificada com ela. Ambos os

mundos se referem a casos específicos, isto é, o "mundo do calçado" é pesquisado em uma fábrica da região do "Vale do Taquari", RS, e o "mundo da escola" refere-se a estudos de documentos, currículos e entrevistas com professores e alunos na escola que os trabalhadores freqüentam. Algumas generalizações realizadas referem-se preponderantemente ao mundo da escola, já que a questão curricular é tomada como um dos focos, a qual está centrada na orientação nacional para o ensino de matemática no Brasil.