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Capítulo 2 Análise interpretativa dos pares tensionais

2 Análise do par tensional matemática escolar /matemática de um grupo profissional

3.2 Confusões gramaticais

A partir da exposição de algumas noções de Wittgenstein, especificamente da de ‘mal-entendidos gramaticais’, tentaremos observar que os usos mostram diversas matemáticas o que não confirma ou sustenta a imagem de uma matemática única.

Observamos que a compreensão da noção de gramática feita acima é fundamental neste esclarecimento.

Na filosofia de Wittgenstein, as confusões filosóficas são tratadas através da sua expressão lingüística, isto é, através da linguagem; daí a expressão ‘mal-entendidos gramaticais’. Esses mal-entendidos podem ser provocados por certas analogias entre as formas de expressão em diferentes domínios da nossa linguagem e podem ser afastados na medida em que observamos outros usos:

“É como se devêssemos desvendar os fenômenos: nossa investigação, no entanto, dirige-se não aos fenômenos, mas, como poderíamos dizer, às ‘possibilidades’ dos fenômenos. Refletimos sobre o modo das asserções que fazemos sobre fenômenos. (...) Nossa consideração, é, por isso, gramatical. E esta consideração traz luz para o nosso problema, afastando os mal-entendidos que concernem aos usos das palavras; provocados entre outras coisas, por certas analogias entre as formas de expressão em diferentes domínios da nossa linguagem. Muitos deles são afastados ao se substituir uma forma de expressão por outra; isto se pode chamar de “análise” de nossas formas de expressão, pois esse processo assemelha-se muitas vezes a uma decomposição. (WITTGENSTEIN, IF, §90).

Wittgenstein em seguida esclarece, mais uma vez, que esta ‘análise’ não visa encontrar uma essência. Isso porque qualquer tentativa de delimitação de um sentido determinado teria pelo menos uma lacuna, o que comprometeria totalmente a delimitação.

Ele também menciona outros mal-entendidos gramaticais como aqueles indicados no Livro Azul: “nossa tendência para generalizações”, “nossa predisposição para o método da ciência natural”; a ‘dieta unilateral’ e a ‘falta de visão panorâmica da linguagem’ (SPANIOL, 1989, p. 94-105).

Por exemplo, fazemos usos empíricos de proposições gramaticais, como “isto é um caderno” ou “isto é um número”, e apontamos respectivamente para um caderno e para um numeral escrito nele. Poderíamos acreditar, por analogia, que assim como o caderno possui um referente no mundo físico, o número também teria um referente, no mundo físico ou num outro mundo. As funções semelhantes que as palavras ocupam em expressões da linguagem fazem com que elas pareçam ter existências também semelhantes: “são analogias entre expressões que pertencem a domínios diferentes da linguagem”. Desse modo, pelo conceito de gramática, Wittgenstein consegue explicar expressões como ´ter em mente’, ‘idéias’, e outras que se referem a estados mentais. Por exemplo, em expressões como “eu tenho dor” e

“eu tenho dinheiro”, as palavras dor e dinheiro ocupam posição semelhantes na frase, e pelo fato do nome dinheiro possuir uma existência material, por ‘analogia’, podemos acreditar que também a dor possui o mesmo tipo de existência referencial- num estado mental, por exemplo, ou buscamos a referência em comportamentos que acompanham o processo de dor. A objetividade para Wittgenstein, ou seja, a capacidade pública de compreensão e uso de uma palavra tal como a palavra dor, não está fora da linguagem, isto é, num comportamento específico da pessoa que sente dor ou num estado mental que compartilhamos, mas está no fato de ser essa uma palavra da nossa linguagem, isto é, está no fato do termo ter-se estabelecido gramaticalmente. Mais uma vez, não é que o comportamento e as sensações que acompanham a dor não existam, mas a designação ou a referência aos comportamentos podem não estar presentes e, mesmo assim, a palavra funciona, é entendida, pois faz parte da gramática. Assim também ocorre com as cores, por exemplo. Sabemos que algumas tribos não possuem nomes para a cor verde, por exemplo, ou não possuem em sua gramática números muitos grandes como os nossos. Ocorreria, segundo Wittgenstein, que esses termos - a cor verde e o numerais muito grandes - não se estabeleceram gramaticalmente numa tal

forma de vida.

Tanto a analogia como a dieta unilateral são temas importantes relativos aos mal- entendidos gramaticais na filosofia do segundo Wittgenstein, e especificamente na atividade filosófica. Atentos a essas possibilidades de confusão conceitual, podemos percorrer vários temas tais como: a música, a matemática, a lógica, a psicologia. Em todos eles podemos perceber as confusões causadas por analogias nos usos, que nos induz, por exemplo, a buscar referências para assegurar sentidos. As confusões são causadas também por alimentarmos concepções estreitas do significado de palavras nas quais fixamos nossa atenção num significado específico ou alimentamos um tipo específico de funcionamento das palavras, aquele que nos parece mais simples e mais conhecido como ocorre com as idéias: ‘cada palavra possui um significado’; ‘é o objeto que a palavra substitui’. Temos uma idéia de como funciona alguns tipos de palavras como os substantivos, que em muitos casos tem uma referência concreta e por analogia, ou por alimentar essa imagem de funcionamento das palavras tendemos a achar que todas as palavras são assim (cf.IF § 35 e 36).

Moreno (1993, p. 35) faz menção à dieta unilateral ao explicar a necessidade da terapia filosófica para desfazer a força das imagens (Bild) que expressam o caráter constritivo e normativo das imagens produzidas mentalmente a partir das palavras. A linguagem fica constrita porque a força das imagens nos conduz a interpretações (como determinação de sentidos de maneira inequívoca) ou conduz a fazer uma aplicação determinada e, assim, “na força das imagens manifesta-se a necessidade que lhes atribuímos” (idem, p. 35). Parece que não pode ser de outra maneira porque não parece possível imaginar o contrário. Neste âmbito se faz necessária a variação dos exemplos de jogos de linguagem, isto é, a terapia não incide sobre os conceitos, mas sobre as imagens que construímos, explica Moreno. Uma imagem exclusivista, por exemplo, sobre as passagens que as fórmulas algébricas realizam, nos leva a procurar o processo mental bem- determinado ao qual essas passagens corresponderiam (idem, p. 34-35).

A expressão dieta unilateral é usada por Wittgenstein no sentido de alimentação de uma única imagem a respeito de um conceito, como, por exemplo, o conceito de número ou o de Matemática:

“Passamos a ver claramente que a verdade e a necessidade dos enunciados matemáticos não exprimem fatos nem essências matemáticas. Exprimem, pelo contrário, nossa atitude (Einstellung) em face a técnicas de cálculo e ao uso que fazemos dos números. Passamos a ver que a necessidade de “2+2=4” é relativa a um sistema de convenções aceitas consensualmente, e que essas convenções desempenham papéis importantes na nossa vida: elas permitem por exemplo que se espere com certeza a repetição de um mesmo resultado- sem que, para isso, seja preciso postular princípios a priori organizadores da experiência e nem uma crença irracional como fundamento do conhecimento cientifico” (MORENO, 1995, p. 39).

Neste sentido a dieta unilateral nos ajuda a entender a unicidade da matemática, isto é, as razões pelas quais alimentamos uma única imagem de matemática, que se apresenta como exata, precisa, verdadeira e de resultados únicos:

“Uma causa principal das doenças filosóficas –dieta unilateral: alimentamos nosso pensamento apenas de uma espécie de exemplos” (WITTGENSTEIN, IF, §593).

Alimentamos uma imagem de matemática que possui para cada cálculo um único resultado, resultados e processos inequívocos, o caráter necessário das conclusões conduzidas pelos processos dedutivos. Não alimentamos imagens da matemática que calcula por

aproximações, que considera muitas variáveis freqüentemente não envolvidas nos processos de cálculos rigorosos tais como gostos, preferências, (LAVE, 2002), ou sol e vento (COSTA, 1998), etc.), ou o esforço físico (KNIJNIK (1996)), ou ainda, a sazonalidade (MONTEIRO, 1998).

A partir da criação da área da Educação Matemática surgiu a necessidade de alimentar outras imagens de matemática, sobretudo a imagens da matemática escolar, que vai se impondo como uma matemática de necessidades, características e processos próprios. Além disso, outras matemáticas, tais como aquelas próprias de grupos específicos, passam a ser consideradas por educadores com a intenção de integrar os conhecimentos escolares no ambiente do grupo que freqüenta aquela escola. Entendemos as adjetivações como uma manifestação de reconhecimentos de outros jogos de linguagem. Mas ainda poderia ser dito que a imagem de uma matemática única e precisa pode provocar confusões a respeito das outras matemáticas.

Passamos agora a ilustrar algumas confusões promovidas pela dieta unilateral, isto é, pela tendência a manifestar a unicidade da matemática e que pode ser percebida em julgamentos sobre o que é ou não matemática, normalmente realizados tendo como referência a matemática formal, ou outra imagem que alimentamos. Em seguida, nos retemos no exemplo de Bloor que ilustra como, ao fazer leituras históricas, tendemos a associar informações de modo a realimentar a construção de um edifício único chamado ‘matemática’. No capítulo seguinte exploramos, através dos escritos de Restivo (1998), os processos que nos levaram à valorização da matemática científica e alimentação dessa imagem.