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Capítulo 2 Análise interpretativa dos pares tensionais

1.1. As adjetivações e expressões bipolares

Moreira (2004) e Moreira & David (2003) são referências centrais entre as publicações em Educação Matemática que foram tomadas para analisar esse par tensional. Moreira emprega a ‘matemática escolar/matemática científica’, enquanto que aqui a opção foi pela expressão ‘matemática acadêmica’, pelo uso desse termo em outras expressões polarizadas. De qualquer modo, essa escolha não interfere na análise, porque os termos

científico e acadêmico são empregados como sinônimos por Moreira, como vemos na

citação a seguir em que a expressão bipolar é empregada:

“Na seqüência deste trabalho, usaremos as expressões matemática científica e matemática acadêmica como sinônimos que se referem à matemática como

corpo científico de conhecimentos, segundo a produzem e a percebem os matemáticos profissionais. E matemática escolar referir-se-á ao conjunto dos saberes “validados”, associados especificamente ao desenvolvimento do processo de educação escolar básica em matemática. Com essa formulação a matemática escolar inclui tanto os saberes produzidos e mobilizados pelos professores de matemática em sua ação pedagógica como resultados de pesquisas que se referem à aprendizagem e ao ensino escolar de conceitos matemáticos, técnicas, processos etc” (MOREIRA, 2004, p. 18).

A importância deste autor para objetivo específico da análise do par tensional matemática escolar/matemática acadêmica se deve a duas coisas: primeiro, pela procedência da sua expressão bipolar, tomada de importantes autores da Educação Matemática, tais como Chevallard, Chervell, Tardif, dentre outros19, os quais são também referências de outros textos–documentos estudados; segundo, por ele estar ciente da distinção entre matemática escolar e matemática científica. Essa ciência representa um diferencial de sua pesquisa em relação a outros textos analisados, como será esclarecido no final desta seção.

A expressão bipolar empregada por Moreira apresenta uma relação explícita com a expressão bipolar apresentada por Chevallard, a saber: saber ensinado e saber sábio20 e também se inspira em Chervel, que questiona a noção de ‘transposição didática’ proposta por Chevallard, com base na discussão da concepção de conteúdo de ensino que, segundo Chervel, seriam uma criação da própria escola, bem como o papel disciplinador que os mesmos assumem no contexto institucional da escola.

No artigo que analisamos, Moreira & David (2003) discutem as relações entre a matemática escolar e a matemática científica21 por entenderem que a forma de conceber a matemática escolar é essencial nesse processo de formação, referindo-se criticamente a Chevallard que consideraria a matemática escolar como “uma versão didatizada da matemática científica”, isto é, como a matemática científica + pedagogia. Os autores procuram caracterizar a prática do professor de matemática (que envolve conteúdos,

19 De modo geral, o autor usa uma vasta bibliografia em sua tese, mas em relação à expressão bipolar que nos

interessa, os principais autores mencionados são: Chevallard, Chervel, Young, Juliá e Tardif.

20 Ocasionalmente, a expressão saber sábio é traduzida por saber acadêmico. Ver nota dos editores

(CHEVALLARD, 1991, p.11).

21 No artigo de 2003, não consideram uma escola e uma academia determinadas Cf. (MOREIRA &, 2003, p.

60); já no outro artigo e na tese, consideram os dados de pesquisa feita com estudantes do curso diurno de Licenciatura em Matemática da UFMG.

métodos, contextos, valores e outros condicionantes sociais) sem reduzi-la a conteúdos + pedagogia, em que este último ‘ingrediente’ teria a mera função de lubrificante. Segundo os autores, a matemática escolar tampouco seria uma produção autônoma e auto-suficiente em termos da produção dos saberes profissionais, opondo-se, neste aspecto, explicitamente, a Chervel. Para os autores há relações complexas e não dicotômicas entre “os saberes científicos, os saberes escolares e as questões postas pela prática profissional docente na escola” (MOREIRA & DAVID, 2003, p. 64). Os autores (re)criam a expressão bipolar matemática escolar/matemática científica que já foi apresentada por Chevallard do seguinte modo.

No livro A Transposição Didática - do saber sábio ao saber ensinado de Chevallard, a expressão bipolar em questão já aparece no título, e pensamos que sua abordagem é bastante confortável, o que pode ser uma das justificativas para a grande difusão do conceito de transposição didática. Confortável, não só porque explicita as diferenças entre esses saberes, mas também porque reconcilia esses saberes com o argumento relativo à necessidade de se retomar o saber sábio na escola. Esclarecemos brevemente, a seguir, as etapas da Transposição Didática para contextualizar a expressão bipolar matemática escolar/matemática acadêmica no texto de Chevallard.

O tema do livro de Chevallard é a relação entre o saber sábio e o saber ensinado através do conceito de ‘transposição didática’. Partindo do princípio que os conteúdos do ensino são determinados por meio dos programas oficiais e por meio dos manuais (CHEVALLARD, 1991, p.35), o autor mostra como ocorre o fluxo do saber sábio (ou acadêmico) para a escola, que tem como objeto de ensino saberes legitimados pela ciência. Neste processo, ocorreria uma série de ‘transformações adaptativas’ (idem, p. 45), esquecimentos, resignificações e criações de conhecimentos, explicita o autor. Mas estes processos de transformações ficariam ocultos pela ficção de identidade entre o saber sábio e o saber ensinado. O conceito de transposição didática viria, então, denunciar essa ilusão de unidade entre esses saberes (ibidem, p.23 e 17). O autor explica que o saber acadêmico legitima o saber ensinado, mas ele é transformado, nesse processo de didatização do saber. No limite, a escola cria seus próprios conhecimentos, como os diagramas de Venn22, criados para transpor objetos matemáticos da teoria dos conjuntos ao ensino primário

(ibidem, p. 49), ou como as abordagens específicas do seno e do co-seno, dos números complexos como matrizes quadradas de ordem dois, etc (ibidem, p. 47). Neste ponto, em que o saber escolar se distancia muito da sua origem acadêmica, ou, usando os termos da obra, quando há um “desgaste biológico e moral” entre os saberes em questão, um acordo tácito entre o interior e o exterior da escola obriga a escola a reestabelecer a compatibilidade com o saber sábio através de uma corrente proveniente desta fonte.

É nesse contexto que Chevallard emprega a expressão bipolar entre saber sábio, do matemático profissional, que aqui designamos saber acadêmico, e saber ensinado23, que corresponde, em nosso texto, à matemática escolar24:

“Em sentido restrito, a transposição didática designa, pois, a passagem do saber sábio ao saber ensinado” (CHEVALLARD, 1991, p. 22).

“Com muita freqüência, o saber ensinado se encontrou profundamente modificado em poucos anos, e teve que transpor uma imensa quantidade de elementos tomados do saber sábio (da matemática dos matemáticos)” (CHEVALLARD, 1991, p. 23).

A diferença entre a expressão bipolar empregada por Chevallard e a que aparece nos textos de Moreira dizem respeito, sobretudo, ao modo de conceber a matemática escolar:

“É importante ressaltar, entretanto, que a distinção que propomos, não institui uma oposição entre a matemática vista como um objeto de construção científico-acadêmica, e a matemática escolar, entendida esta como um amálgama de conhecimentos associados na educação escolar” (MOREIRA, 2004, p. 37).

A matemática escolar entendida como um amálgama de conhecimentos é desconsiderada por Chevallard que, segundo Moreira, supervaloriza o saber sábio e não leva em conta outros quesitos que compõem a formação do professor, como aqueles que compõem a “lista mínima” elaborada por Shulman e citado por Moreira:

“ - conhecimento do conteúdo;

- conhecimento curricular, envolvendo os programas e materiais curriculares;

22 Diagramas como estes foram usados por L. Eüler (1707-1783) para representação esquemática dos

silogismos (ver MACHADO & CUNHA, 2005, p. 38).

23 “Saberes escolarizáveis e Saberes não escolarizáveis” é outra expressão bipolar empregada pelo autor a

partir de um outro, Verret, mas que se mostra secundária em relação à argumentação central do seu texto.

24 A associação entre a expressão bipolar empregada por Chevallard “saber sábio e saber ensinado” e a

categoria que denominamos “matemática acadêmica e matemática escolar” pode ser problematizada pela discussão entre este autor e Freudenthal. Ver Posfácio da segunda edição (CHEVALLARD, 1991, p. 139).

- conhecimento pedagógico geral, com referência especial aos princípios e estratégias de manejo de classe e de organização, os quais parecem transcender o conhecimento do conteúdo;

- conhecimento pedagógico do conteúdo, aquele amálgama especial entre conteúdo e pedagogia que constitui uma forma de entendimento profissional da disciplina e que é específica dos professores;

- conhecimento das características cognitivas dos alunos;

- conhecimento do contexto educacional, incluindo a composição do grupo de alunos em sala de aula, a comunidade escolar mais ampla, as suas particularidades culturais, etc.;

- conhecimento dos fins educacionais, propósitos e valores, seus fundamentos filosóficos e históricos” (MOREIRA, 2004, p. 39-40 –itálico no original).

Assim, diante desta lista, Moreira critica o peso que Chevallard dá ao item conteúdo em detrimento dos demais. Neste sentido, se fixarmos nossa atenção nesse aspecto do conteúdo, a procedência científica deles não está questionada ou problematizada nem por Moreira nem por Chevallard. Ainda que Moreira destaque a matemática do professor, ambos têm como pressuposto também uma referência científica para esse conteúdo escolar, o que poderia parecer natural; porém, essa suposta naturalidade é posta em causa por alguns pesquisadores em Etnomatemática, por exemplo.

Moreira, não deixa claro uma posição quanto às adjetivações indicarem facetas de uma mesma matemática. Por um lado, ainda que o objeto de pesquisa de Moreira & David esteja centralizado no par tensional matemática escolar/matemática científica, um espectro maior de matemáticas, ou de concepções de matemática, é reconhecido pelos autores25:

“Observamos, para encerrar essa introdução, que, embora se possa pensar na existência de diversas matemáticas escolares e diversas matemáticas científicas, não entraremos nesse terreno. Neste trabalho, o que nos interessa é discutir a relação entre a matemática escolar (considerada num nível de abstração que ignora diferenças entre versões particulares a cada escola) e a matemática científica (outra abstração que desconsidera diferentes concepções dentro da comunidade científica) tendo em vista implicações para o processo de formação inicial do professor de matemática da escola básica” (MOREIRA, & DAVID, 2003, p. 59-60).

Por um lado, o autor é claro quanto à distinção das matemáticas, por outro, coloca a matemática escolar e a científica ‘como duas faces distintas de uma mesma matemática’:

“Nosso referencial constituiu-se a partir da constatação de que a matemática escolar não está contida na matemática acadêmica e que elas possuem, de fato, elementos distintivos marcantes, discutidos no Capítulo I. No entanto, pode-se pensar na questão em termos dos elementos de similaridade ou complementaridade entre essas duas faces do conhecimento matemático e, até mesmo, em termos da possibilidade de adaptação de certos aspectos da prática profissional do matemático ao trabalho do professor de matemática na sala de aula da escola básica” (MOREIRA, 2004, p. 183).

Contudo, o que me pareceu mais fértil, um ‘diferencial’ da pesquisa de Moreira em relação a outros estudos que tratam da formação inicial de professores, foi a criação, como diz ele - do conceito de matemática escolar (MOREIRA, 2004, p. 181). Ou seja, para ver os problemas da formação do professor foi necessário que o autor mudasse de lugar26 –em

relação a matemática acadêmica, ou seja, entrasse em outro jogo de linguagem, o da matemática escolar. Por isso, é possível interpretar o discurso do autor sob a grade analítica de Wittgenstein, ou seja, as matemáticas têm pouco em comum, como destaca o título da seção:

“Matemática escolar e matemática acadêmica: uma palavra em comum e diferenças substantivas” (MOREIRA, 2004, p. 19, grifos como no original).

“Quando, ao contrário, essa distinção entre matemática científica e matemática escolar é explicitamente admitida como fundamento dos estudos sobre a prática profissional, sobre os saberes profissionais e sobre o processo de formação do professor, resulta uma outra percepção da complexidade da matemática escolar. Nesse caso, ela se funda na complexidade da própria prática educativa escolar e não mais nos valores específicos da matemática científica” (MOREIRA, 2004, p. 36).

“Foi para evitar esse tipo de circularidade metodológica e “libertar” a análise dessa espécie de rota pré-determinada, que achamos conveniente trabalhar com o conceito de matemática escolar da forma como apresentamos no Capítulo I e explicitar seus elementos distintivos em relação a matemática acadêmica. Isso responde pelo conceito que tivemos que criar, nos termos de Deleuze” (MOREIRA, 2004, p. 181, aspas e itálico do original).

Moreira assim ampliou concepção de matemática e, com isso, encontrou-se em solo mais fértil para tratar as questões relativas à formação do professor. Assumir as diferenças entre as matemáticas científica e escolar torna complexa a discussão sobre os conteúdos abordados na formação inicial dos professores e possibilita a mudança do ponto de

26 O grifo na expressão mudar de lugar é devido à referência do aforismo de Wittgenstein (Da certeza, 1969,

referência para avaliar as necessidades da formação inicial, sem fazê-lo do lugar da matemática acadêmica.