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Administração democrática: uma principiologia decorrente da

2 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO SÉCULO XXI: GOVERNANÇA E A

4.4 Administração democrática: uma principiologia decorrente da

A aproximação que se está propondo entre direito e administração, pelo reconhecimento da governança como conteúdo possível de um direito fundamental à boa administração implica numa recompreensão da função administrativa – porque é o vetor da dinâmica que se está privilegiando – que sobrevalorize a abertura democrática à deliberação como característica desejável desse mesmo agir. Esse ângulo há de determinar, por sua vez, uma releitura da própria principiologia constitucional já fixada à administração pública, de maneira a pô-la também a serviço dessa administração democrática.

Não se cuida aqui de uma proposta particularmente inovadora. O imperativo de uma releitura da principiologia posta à Administração Pública já se tinha noticiado desde o reconhecimento da subordinação finalística do

Estado àqueles compromissos constitucionais expressos em linhas mais amplas nos arts. 1º e 3º da CF, e detalhados ao longo de todo seu texto. Essa vinculação do Estado aos fundamentos da República propostos na Carta já determinaram a identificação de princípios implícitos oponíveis ao Estado- Administrador (GESTA LEAL, 2006, p. 112)183;

De outro lado, a construção desenvolvida pela doutrina nacional no sentido do reconhecimento do direito fundamental à boa administração como implícito no sistema constitucional (por todos, FREITAS, 2007a) se vale de uma leitura atualizada dos cânones contidos no art. 37, caput CF como fundamento, dentre outros, de sua construção teórica.

No que toca ao princípio da legalidade (na expressa dicção constitucional), cada vez mais reforçada fica a trajetória de sua identificação como juridicidade, emancipando a administração da legalidade estrita, para compreender uma submissão à constituição – síntese das decisões fundacionais de uma sociedade – e ao direito, não mais entendido como jungido ao monopólio da produção estatal revestido de coercitividade, mas dilargado. Em pleno século XXI, na lição de Moreira Neto (2009c), a juridicidade compreenderá uma complexa tessitura que extrapola o monopólio de qualquer expressão de poder politicamente engajado, para compreender também o resultado da colaboração de uma diversidade de atores - da sociedade, do Estado e de ambos.

Essa abertura da legalidade à juridicidade vai determinar igualmente uma ampliação do espectro tradicional de instrumentos normativos, para compreender igualmente às normas-objetivo, e ainda àquelas de softlaw. Essa releitura, em verdade representa tão-somente uma etapa a mais no processo de delegificação, que teve por campo de incidência inicial o desenvolvimento da função regulatória, e que agora expande sua área de atuação para outros setores onde a explicitação dos programas de ação se mostre necessária, ou ainda onde a coercitividade própria do direito clássico não seja desejável.

183 Indica Gesta Leal como princípios implícitos do Estado-Administrador aquele da supremacia

do interesse público em face do interesse privado; o princípio da indisponibilidade do interesse público; o princípio da proporcionalidade e o princípio da finalidade.

Os princípios da impessoalidade e moralidade encontram, em cenário de governança, seu principal garantidor na transparência – sentido atualizado da publicidade, explicitada no art. 37, caput CF.

Publicidade, em tempos de administração democrática, envolve uma visibilidade quanto ao modo e aos motivos determinantes da administração, que se incorpore como atributo permeando todo a agir estatal – e não como um requisito formal que se limite a externalizar (muitas vezes parcialmente) a ação administrativa.

Se de característica associada ao agir está-se falando, natural que o conteúdo que se reconheça à prática transparente guarde igualmente esse traço de dinâmica. A ação transparente da Administração Pública, portanto, traduz-se: 1) na manutenção de um fluxo de informações; 2) pertinentes, confiáveis, inteligíveis e oferecidas no momento oportuno; 3) relacionadas aos vetores diretos e indiretos que influenciam esse mesmo agir administrativo 4) dirigidas ativamente às diversas estruturas de poder e à cidadania;. A contrario sensu, atenta contra a transparência, a ocultação de informações atinentes ao mesmo agir da Administração, seja no seu extremo máximo – de negativa absoluta de qualquer elemento de informação – seja nas dezenas de matizes mais suaves de violação à transparência, que envolvem a oferta de informação insuficiente, ininteligível, extemporânea, ociosa ou irrelevante, e tantas outras deficiências que os desvios de finalidade contingentes podem permitir. (VALLE, 2008b, p. 26)

No campo da eficiência, por diversas vezes já se pôde evidenciar que o princípio é de expandir suas fronteiras para compreender não só uma lógica economicista, que restringe sua avaliação tão-somente aos outputs da função, para compreender igualmente os valores relacionados à interação social que se possa ter promovido por ocasião das escolhas públicas, da implementação das políticas correspondentes, e ainda no momento da avaliação. É essa ampliação mesmo de sentido da idéia de eficiência que tem evidenciado a insuficiência dos mecanismos burocráticos tradicionais de controle para a aferição, dentre outros, de vetores como a qualidade dos serviços, a justiça na

distribuição de benefícios, a distribuição dos custos econômicos, sociais e políticos dos serviços e bens produzidos (CAMPOS, 1990, p. 34).

Ilumina igualmente esse exercício de releitura da principiologia da administração – agora, administração democrática – a contribuição de Canotilho (2006, p. 330-333) 184

, que aponta ainda o princípio da coerência

entre as diferentes políticas e ações que o Estado desenvolva; o princípio da

abertura, que preconiza a busca de soluções múltiplas que possam combinar

institutos tradicionais e novos procedimentos, de modo a atender às várias distintas necessidades do interesse público plural; o princípio da eficácia, que exige a relação de resposta às necessidades sociais com base em objetivos claros e avaliação de seu impacto futuro. Particularmente provocadora é a enunciação de um princípio da justa medida, que preconiza que um Estado com boa governança deve prover uma gestão de seus recursos naturais e financeiros que se revele necessária, adequada, responsável e sustentável.

O principio da proporcionalidade ao qual a jovem literatura brasileira tem dedicado particular atenção deve agora ser articulado com uma outra idéia de justa medida na condução dos assuntos de Estado: a de uma administração e governo que estão vinculados a medidas materiais (princípios) de actuação como sejam o princípio da sustentabilidade, o princípio da racionalização, o princípio da eficiência, o princípio da avaliação. Estes constituirão, a nosso ver, os novos princípios do Estado de Direito democrático.

A idéia de abertura, consagrada no princípio correspondente proposto por Canotilho encontra no pensamento de Rodríguez-Arana (2006, p. 27) uma outra configuração. Assim, o autor espanhol preconiza uma abertura à realidade, que determine aproximação aberta e franca às condições objetivas de cada situação e ainda uma abertura à experiência como componentes

essenciais da postura ética a partir da qual se devem construir as novas

184 Em verdade, o jurista português propõe ainda uma reflexão sobre a necessidade de se

desenvolver uma nova teoria do Estado, que teria em conta qual o desenho que hoje efetivamente se proporia a essa forma de organização do poder político a partir das finalidades e deveres que a ele se reconhece.

políticas públicas. É a abertura à realidade que permitirá, por sua vez, o exercício do pensamento dinâmico e compatível:

se trata de um pensamento que não encaixa nos modelos rígidos e planos, e que tem capacidade, precisamente porque trata de compreender o ser humano em todas suas dimensões – de conciliar o pessoal e o social, o estatal e o civil, a liberdade e o ordenamento, o mercado competitivo e a regulação político-econômica.

Como se vê, essa principiologia – revisitada – da administração pública, culmina por determinar um círculo virtuoso, em favor da governança. Assim, a reconfiguração do espectro de legalidade para compreender uma juridicidade ampliada alberga a normatividade diferenciada, apontada como instrumento da governança no subitem 4.3.3. Transparência, por sua vez, viabiliza uma adesão dos atores possíveis à arena construída para a decisão democrática; e municia ainda àqueles que desejem participar, dos elementos indispensáveis a uma contribuição efetiva.

A eficiência, como princípio posto à administração pública da governança incorpora o incremento da cidadania ativa como valor no processo de decisão – tanto quanto aqueles outros outputs da atuação estatal, quantitativamente aferíveis . Coerência, abertura e justa medida, de outro lado, recuperam a percepção do caráter coletivo, multifacetado da ação estatal – exigindo consistência interna, diálogo e adequação, valores que se vêem tutelados igualmente pela idéia de governança enquanto democratização coordenada do processo de escolha pública. A partir desse quadro principiológico reformatado, têm-se os instrumentos necessários a prevenir que numa futura proposição de reforma administrativa orientada à incorporação da governança, se tenha novamente o direito como cláusula de bloqueio.

Examinada a possibilidade de se promover a conciliação entre administração e direito pelo reconhecimento da governança como parcela do conteúdo (em construção) do direito fundamental à boa administração, cumpre retomar advertência que inaugurou o presente capítulo, a saber, aquela de que se pudesse conferir indevida preferência pela dimensão subjetiva desse

mesmo direito. Identificar mecanismos que possam ser incorporados pela ação estatal, que traduzam no plano objetivo, o cumprimento desse direito fundamental à boa administração é o desafio – e esse é o tema a que se dedica o próximo capítulo.

5 Construindo um modelo de Administração Pública