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5 CONSTRUINDO UM MODELO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

5.2 Localização da intervenção da cidadania ativa

5.2.2 Incorporação dos atores sociais como elemento de uma

O debate acerca da contribuição da governança não pode ser travado a partir de uma suposta incapacidade crônica de um governo sempre sob crítica; aquilo de que se cogita é da inaptidão de um modelo original, que pode encontrar na sociedade, destinatária final do agir administrativo, um importante parceiro na construção das soluções possíveis. Isso exigirá uma administração pública que reconheça seus limites e que assuma um papel proativo na construção do processo de decisão188, destinado à superação das dificuldades originárias do tema ou da complexidade das relações envolvidas.

A abertura preconizada pela governança parece ainda compatível com o destaque à imaginação como atributo da administração da pós-modernidade, apontado por Farmer (1995). Significa introduzir no desenvolvimento da

188 O papel proativo do governo deve ser estendido para (i) construir capacidade para

antecipar, experimentar e intervir antecipadamente; (ii) reduzir impasses, desviar riscos, prevenir falhas e desenvolver ações preventivas; (iii) promover uma distribuição equitativa de benefícios decorrentes de grandes inovações e rompimentos de barreiras; e (iv) assegurar uma repartição equitativa dos riscos de forma que os cidadãos não se vejam forçados a suportar uma parcela desproporcional das conseqüências das crises e falhas. (BOURGON, 2009b).

administração pública, a par de um referencial de racionalidade – verdadeiro cânon do modelo weberiano –, também uma “imagem em espelho” desse mesmo paradigma, que pode ter a si reservado importante papel não só no campo da descoberta das alternativas de enfrentamento dos problemas, mas também no campo da justificação das soluções189.

Se a configuração da ação administrativa pode envolver – como já demonstrado no subitem 5.2.1 – escolhas alocativas que expressam o próprio caráter da sociedade, é o exercício da governança que pode permitir vir à tona fundamentos para as decisões públicas que não se apresentem de início como auto-evidentes, mas que decorram da compreensão ampliada da sociedade em relação a um mesmo problema.

Dessa diagnose, o que se pode extrair é que, embora haja atividades típicas em relação às quais seja possível conceber que a administração possa delas se encarregar sozinha, com razoável compreensão das conseqüências de sua atuação e sustentável confiança em seu potencial para alcançar os resultados públicos desejados; não é menos verdade que se pode identificar vasta área em relação a qual a maior garantia do desenvolvimento de ação pública adequada e eficiente, seja a captação da inteligência coletiva da sociedade.

Uma vez mais, é de se ter em conta que a opção por um modelo de administração estatocêntrico, mas que não desconsidera os imperativos de democratização de suas decisões permitirá ainda neutralizar os riscos de um desbalanceamento entre os atores sociais que se apresentem. Isso porque, a par dos desníveis possíveis entre os vários segmentos presentes na sociedade (notadamente no que toca aos agentes econômicos), têm-se já hoje por claro que as redes de interesses articuladas no grupo social se orientam à defesa – como a expressão o diz – de um conjunto de prioridades, que nem sempre se identificam com o interesse público (KJÆR, 2008, p. 55).

Naturalmente, quando se cogita dos benefícios da governança no campo da potencialidade do agir estatal, volta à consideração o argumento já

189 A cogitação de Farmer (1995) é mais ampla, e tem em conta uma nova linguagem que

haveria de ser desenvolvida no âmbito da ciência da administração, como mecanismo de atualização das assunções, intuições, idéias, aproximações, medos e desejos que formatam o entendimento nessa área de conhecimento, e que guiam em verdade, os esforços de concretização no âmbito da administração pública.

desenvolvido no Capítulo 2, subitem 2.4.2, de que a cidadania possa não se revelar interessada em concorrer com a sua inteligência para a solução dos problemas públicos. No que toca a essa objeção, todavia, é esclarecedor o olhar proposto por Carracedo (2005, p. 16), segundo o qual a deterioração atribuída hoje à democracia pode ser creditada a uma confusão entre a política crua e a política democrática.

O jogo ordinário da política crua, que vê o poder como dominação, a ele buscando numa espécie de naturalismo político; essa é a seara mais visível da política – embora não seja a política compatível com a teoria do estado democrático de direito, que lida com a idéia do poder consensuado, legitimado pelas práticas previstas no próprio contrato, hoje, contrato constitucional. A franca expansão de movimentos sociais, que se estabelecem na exterioridade do círculo formal de poder se apresenta como evidência mais clara de que o desinteresse da cidadania não repousa nos temas públicos em si, mas nos meandros pelos quais hoje se desenvolve a política.

O que a cidadania parece rejeitar são as tradicionais relações de colaboração com o poder político, em que sua atuação é reduzidíssima – no mais das vezes, mera oitiva em audiências ou mecanismos que tais –; que não se reflete nas decisões do poder efetivamente havidas, que não incorpora suas considerações.

Em síntese, o que parece desinteressar á cidadania não é o envolvimento nos termas de grande alcance, mas a participação acanhada, que represente muito mais um elemento de legitimação das decisões do que efetiva contribuição à sua construção. Influir verdadeiramente no processo decisório, de forma controlável – esse se apresenta como um passo importante no sentido de reconquistar a cidadania à participação. Têm-se aqui, portanto, mais um ponto de agenda para da construção da governança: a explicitação dos termos em que possa se dar a intervenção dos novos atores, e dos deveres da administração no que toca ao feed back a essas mesmas contribuições.

Integrar à cidadania ativa no processo de formulação das escolhas, já se disse, constitui o desfio da gestão no século XXI, que deve alcançar resultados no campo das políticas públicas bem como no desenvolvimento da cidadania ativa (BOURGON, 2009b), assegurando a um só tempo credibilidade e

legitimidade, promovendo o incremento da confiança no governo. Eficiência passa a envolver não só a dimensão objetiva de resultado – mas também aquela que reabriga à ética pela necessária incorporação da visão da sociedade civil organizada em relação às escolhas em construção190.

Existe, todavia, outro aspecto que não se pode deixar de considerar – os potenciais ganhos decorrentes de uma abertura à governança, no que toca ao fortalecimento da adaptabilidade da administração pública enquanto sistema, atributo que parece indispensável em tempos em que a imprevisibilidade, a descontinuidade e os riscos imprevisíveis se apresentam como elementos marcantes do cenário de gestão da coisa pública.

Convertem-se já em clássicos os trabalhos de Beck (1992) no campo da chamada sociedade de risco, ao denunciar que o lado imprevisível e os efeitos secundários das pretensões de controlabilidade da vida por uma racionalidade instrumental têm-nos conduzido ao reino da incerteza, da ambivalência e da alienação (GIDDENS, BECK e LASH, 1997, p. 21).

Ainda que se possa divergir da pretensão de construção de uma nova teoria sociológica expressa pelo autor, a imprevisibilidade dos efeitos do agir humano hoje é dado incontestável, relacionado não só à quebra das fronteiras espaço-tempo, mas também ao aumento da sua potencialidade de intervenção em processos naturais. A progressiva habilidade humana de intervir no meio em que vive não se fez acompanhar por idêntica aptidão a projetar os efeitos de tal ação para as gerações futuras, disso decorrendo de um lado, a dimensão de risco e os conflitos de responsabilidade distributiva; e de outro lado, a cogitação acerca de um novo princípio ético191 que certamente há de envolver

esse agir expandido.

Acresce a esse quadro de complexidades, a circunstância de que, diante dos riscos de cada dia, pessoas, grupos e organizações concretizam importantes decisões em diversos lugares do mundo – do que resulta a

190 Vale consignar que na análise de MOREIRA NETO (1989, p. 20), o Estado contemporâneo,

invadindo espaços antes reservados à sociedade, adotou uma postura segunda a qual o conceito de eficiência passara a primar sobre a ética. O pêndulo da história se movimenta, o Estado se vê vinculado aos compromissos valorativos do texto constitucional, e numa visão mais madura de democracia, recupera a ética não através de uma visão de autoridade, mas pelo concurso da cidadania.

191 O tema dos imperativos de desenvolvimento de uma nova ética para a civilização

tecnológica, que tenha em conta o princípio da responsabilidade de uma geração para com aquelas que se apresentem no futuro é desenvolvido pioneiramente por Jonas (2006).

fragmentação no tratamento de temas que, muitas vezes, a rigor, se revelam interdependentes. Nesse processo, intensifica-se a imprevisibilidade, que passa a figurar, por sua vez, como desafio adicional ao exercício da função administrativa.

Reflexo desse mesmo debate no campo da função administrativa se tem por traduzido no texto de Lewis (2006) que, aludindo ao conceito de interesse público, destaca a necessidade de, a par da dimensão corrente mais tradicional – que cuida das vertentes democrática e da mutualidade no agir estatal – ter-se em conta ainda à dimensão do futuro, cujas preocupações dizem respeito aos vetores do legado e da sustentabilidade. Assim, o interesse público não pode mais ser compreendido numa visão perspectiva, pois precisa incorporar avaliação dos potenciais reflexos no plano do futuro, considerando o legado que se está a deixar às futuras gerações e ainda a viabilidade de mantença da iniciativa de que se cogite.

Observe-se que da intersecção entre essas duas reflexões – que a sociedade é de risco e que o interesse público não mais se pode estabelecer sem ter apresente a dimensão do futuro – resulta a idéia de que a função administrativa há de estar voltada também a uma prospectiva que possa se revelar, na medida do possível, preventiva em relação àqueles riscos que se apresentem no âmbito de sua área de intervenção.

Ganha espaço, então, no campo da prática da administração pública, a importância de uma administração resiliente e adaptativa, que permita servir além do previsível (BOURGON, 2009, p. 10) a partir do aprendizado recíproco entre Estado e sociedade.

O cenário de imprevisibilidade conflita com a aproximação convencional ao governo e à administração, que se construiu a partir da lógica de maior estabilidade, e portanto, de maior rigidez na tomada de decisões. Mais ainda, a aproximação convencional – construída inclusive pela disciplina autônoma da Administração Pública – pretende superar os problemas pelo cumprimento de tarefas que podem ser conjugadas em programas e políticas específicos. Essa ótica, todavia, assume a concepção de função administrativa no mais das vezes reativa – enquanto a contingência e a incerteza exigem uma postura

identificar os padrões emergentes num cenário de permanente mudança – e portanto, inapto a intervir antecipadamente (BOUGON, 2009, p. 13).

A abertura à governança – e portanto à contribuição que o conhecimento societal possa trazer ao processo de tomada de decisão – favorece a

capacidade de antecipação de problemas e a formação de estratégia de

decisão mais rica. Ainda que disso não resulte necessariamente a escolha ótima, não resta dúvida de que, se a incerteza amplia o leque de efeitos possíveis da conduta estatal, a solução há de envolver uma prática que igualmente amplie os atores orientadores da decisão, enriquecendo o processo decisório.

Não se pode deixar de ter em conta que o reconhecimento da governança como a face objetiva do direito fundamental à boa administração, numa concepção que já se afirmou estatocêntrica, envolve reconhecer a esse mesmo Estado, deveres no sentido da consolidação de uma cultura cívica que importe em estimular a participação desejada.

Essa atuação estatal indutora da cidadania ativa há de ter por ponto de partida, a principiologia traçada no Capítulo 4 – particularmente a transparência, que determinará uma maior exposição à comunicação política, o que prepara o indivíduo para a participação, e cria um ambiente político que facilita o envolvimento desejado.

A conjugação entre princípio democrático e a evidência do imprevisível como variável no desenvolvimento da função administrativa culminam por determinar uma compreensão de que eficiência seja característica que não se pode reconhecer sem a governança. O resultado economicamente sustentável – mas obtido a partir de caminhos que abdicam da cidadania ativa – jamais se poderá reconhecer como integralmente legítimo num Estado que se denomina democrático de direito.