• Nenhum resultado encontrado

Administração e Fazenda Real: reformulações

No documento D. Afonso de Noronha, Vice-Rei da Índia (páginas 116-121)

OUTRAS PERSPECTIVAS

IV.2. Administração e Fazenda Real: reformulações

Em 1545, quando D. João de Castro zarpou de Lisboa levava no seu regimento ordens para reformular a Vedoria da Fazenda. Esta passou a dispor de três vedores: um para a Casa dos Contos, outro encarregue de tratar da carga das naus de Cochim e de acompanhar em permanência o governador e, por fim, um terceiro, mandatado para a visita às fortalezas685.

Tal justificava-se no âmbito do alargamento das áreas de intervenção política

681 O que estava em causa era o reconhecimento do não exclusivo jesuíta na região, o que

demonstra como D. Afonso nem sempre favoreceu a Companhia. A divisão foi depois confir- mada pelo vice-rei D. Pedro Mascarenhas. Cf. XAVIER, Ângela Barreto, op. cit., pp. 226-227.

682 Cf. TRINDADE, Frei Paulo da, Conquista Espiritual do Oriente, vol. I, Lisboa, Centro de

Estudos Históricos Ultramarinos, 1962, cap. 71. Este cronista refere ainda, segundo Ângela Barreto Xavier, os “extremos de devoção pelos nossos frades” (cf. XAVIER, Ângela Barreto, op. cit., p. 227).

683 Em 1554, D. João III fundava, em Lisboa, a Inquisição para o Estado da Índia. A sua

instauração formal, devido a complicações, só viria ser a decorrer mais tarde, mas o facto de já então o monarca ter manifestado desejo de instaurar a Inquisição no Oriente é bem elucidativo de como a viragem contra-reformista começava também a atingir o Império.

684 Cf. Carta do Padre Jaime de Polanco a Jaime de Mirón, provincial lusitano, Roma,

26.VII.1554 – PUB. DI, vol. III, doc. 25, p. 97.

685 Cf. MIRANDA, Susana Munch, “A administração da fazenda” no Estado da Índia (1545-

-1560): vedores da fazenda e Casa dos Contos” in D. João III e o Império, edição de Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos, p. 325.

e comercial dos Portugueses no Índico desde que, em 1517, tinha sido criada a Vedoria da Fazenda da Índia686. Quando D. Afonso de Noronha partiu,

em 1550, D. João III deu também ordens para uma nova reorganização da Vedoria da Fazenda687. O vedor da carga de Cochim passava a ser inde-

pendente do vedor que acompanhava o vice-rei em permanência. Ao vedor de Cochim, era pedido que, uma vez terminado o seu trabalho na cidade, visitasse as fortalezas malabares de Chale, Crangranor, Cananor e Coulão, ficando a visita das restantes praças a cargo do vedor que seguia o vice-rei, podendo ainda este nomear vedores temporários de visita às fortalezas. O Piedoso concedeu ainda poderes ao Noronha para despachar com apenas um dos vedores, o dos Contos, o de Cochim ou, o da sua companhia, ou em caso de não dispôr de nenhum, de apenas o fazer com o seu secretário pessoal. Para vedor da carga das naus de Cochim foi nomeado João da Fon- seca688, também capitão da fortaleza local. A auxiliar Fonseca encontrou-se

ainda Sebastião Ferreira689. Jerónimo Rodrigues foi nomeado por D. Afonso

como vedor temporário de Ormuz690. Simão Botelho foi o vedor da com-

panhia do vice-rei, tendo D. Afonso insistido em o manter mesmo quando este quis regressar para o Reino, em Janeiro de 1552691. A esta reformula-

ção, que se pretendia complementar à de 1545, seguiram-se as nomeações do licenciado Francisco Álvares para o cargo de ouvidor geral do crime692 e,

mais tarde, de Gaspar Jorge para aquele mesmo cargo e ainda a do Dr. Pero Soares para o lugar de procurador dos feitos do rei693, do licenciado Augusto

Fernandes Travaços para usar do cargo de promotor694 e a provisão para que

Gonçalo Lourenço de Carvalho pudesse usufruir dos mesmos poderes que o licenciado Cristóvão Fernandes detivera no cargo de chanceler da Índia695.

Por sua vez, são conhecidos uma série de diplomas que atestam cres- centemente o poder do vice-rei em matérias de justiça e de provimentos. Apesar de apenas a partir de D. Pedro Mascarenhas o vice-rei ou governador ter podido passar a nomear capitães na vagante dos providos para as forta- lezas696, constatou-se já como D. Afonso pudera usufruir dessa mesma mercê

686 Cf. ibidem.

687 Cf. Crónica, Parte IV, cap. LXX.

688 Cf. Nomeado por três anos com ordenado de 400 mil reais em Lisboa a 2.III.1550 –

PUB. RCI, vol. I, p. 101.

689 Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim, 16.I.1551 – ANTT, CC

II-242-44, fl. 12.

690 Cf. Ásia, VI, ix, 4.

691 Cf. Carta de Simão Botelho a D. João III, Cochim, 30.II.1552 – PUB. Textos do Estado…,

p. 61.

692 Cf. Lisboa, 3.IV.1550 – PUB. APO, fascículo 2, doc. 114. 693 Cf. Goa, 25.IX.1553 – PUB. Ibidem, doc. 140.

694 Cf. Goa, 9.IX.1551 – PUB. PEREIRA, Carlos Renato Pereira, op. cit., vol. I, pp. 190-193. 695 Cf. Goa, 6.XI.1553 – PUB. Ibidem, pp. 201-202.

para a capitania-mor do Golfo Pérsico, no âmbito das ordens que trouxera consigo do Reino. Desde os tempos de Garcia de Sá que os casos na Relação de Goa, criada em 1544, se acumulavam, razão pela qual Sá, e depois Jorge Cabral, se empenharam na resolução de muitos deles. Todavia, ao elevar a Relação ao estatuto de Corte, em Outubro de 1550697, Cabral reconhecia a sua

incapacidade momentânea para acudir a todos os casos. Assim, os diplomas afonsinos destinaram-se, por um lado, a facilitar o julgamento dos diversos casos e, por outro, a centralizar ao máximo todos os julgamentos em Goa. Paradigmáticos do primeiro caso são o alvará em que D. Afonso concede poderes a Cristóvão Fernandes, chanceler da Índia, para poder atribuir juízes às partes que assim o requeriam698; o alvará vice-real pelo qual os

ofícios dos juízes das cidades da Índia passaram a ser providos em vida e não de três em três anos699; o mandato do Noronha para que os desembarga-

dores da Relação assinassem sempre os autos, mesmo que em desacordo entre si700; e por fim, o alvará que permitia o julgamento dos casos de pena

de morte por três desembargadores em vez dos cinco anteriores701. Sinto-

mático das dificuldades sentidas na Relação de Goa, este último alvará não impediu um outro centralista, pelo qual o vice-rei reservava para a Relação o julgamento de todos os casos que envolvessem penas de morte, sangue ou talhamento de membros, retirando-os das jurisdições locais702. Estas dificul-

dades foram ainda agravadas, no ínício da década de 1560, pela morte do vedor dos Contos, Manuel Mergulhão703, o qual não teve sucessão imediata,

motivando o falhanço total das reformas empreendidas em 1545 e 1550, quando apenas existiam um vedor em Goa e outro em Cochim704.

Uma outra problemática paralela a todas estas, e referenciada bastas vezes prende-se com as dificuldades financeiras com que D. Afonso de Noro- nha se debateu durante todo o seu vice-reinado. Estas não eram, como se mencionou, exclusivo da Ásia Portuguesa, uma vez que também no Reino os tempos eram de contenção, facto este que não se alterou até ao final do governo de D. Afonso, disso atestando a armada da Índia de 1553, a mais pequena armada de sempre desde 1497705. Por outro lado, apontaram-se

já as ordens de contenção de despesas que o vice-rei levou consigo, ordens essas que foram agravadas pela situação que D. Afonso encontrou no Índico. A questão financeira foi para o Noronha uma preocupação constante e

697 Cf. Goa, 10.X.1550 – PUB. APO, fascículo 2, doc. 117. 698 Cf. Goa, 11.IV.1551 – PUB. Ibidem, doc. 118.

699 Cf. Goa, 23.X.1553 – PUB. PEREIRA, Carlos Renato, op. cit., vol. I, pp. 200-201. 700 Cf. S.l., s.d. – PUB. APO, fascículo 2, doc. 139.

701 Cf. Goa, 30.III.1554 – PUB. Ibidem, doc. 147. 702 Cf. Goa, 9.V.1551 – PUB. Ibidem, doc. 120.

703 Cf. MIRANDA, Susana Munch, “A administração…”, p. 333. 704 Cf. ibidem, p. 334.

705 Cf. ALMEIDA, Justino Mendes, “A armada de 1553” in V Simpósio de História Marítima.

poder-se-á mesmo afirmar que, em 1550 e 1551, assumiu um papel predomi- nante na explicação das atitudes do vice-rei no Ceilão e na África Oriental. Ao chegar a Cochim, em finais de 1550, D. Afonso para além de encontrar as receitas da Índia todas empenhadas, tinha “detrimynado o empenhar me a mjm mesmo”, caso fosse necessário706. Estas dificuldades eram conhecidas

do monarca e da rainha707, a quem, apesar de tudo, D. Afonso se empenhou

em enviar jóias e pedras da ilha da canela708.

A má situação na Fazenda Real manteve-se até à chegada do vice-rei D. Pedro Mascarenhas, o qual encontrou os cofres de Goa vazios709. Para

o ano de 1552, os apertos parecem ter-se agravado e nem o que se trouxera de Ceilão, em 1551, bastava para as despesas correntes710. Apesar de não

dispormos de informações para os anos de 1553 e 1554, é possível crer que as receitas tenham aumentado ligeiramente, pois sabe-se que nos anos ante- riores, D. Afonso não pudera contar com as receitas da rendosa alfândega de Ormuz. Tal facto ficara a dever-se ao capitão D. Álvaro de Noronha que, a pretexto da ameaça turca, aproveitava para afastar um bom quinhão para si, baseando-se no exemplo de D. Manuel de Lima711. Também as receitas

da alfândega de Malaca nos anos de 1551 a 1554 caíram712, em função

do cerco e dos conflitos ocorridos na cidade. De Diu, Baçaim e Chaul, em 1552, também não vinha qualquer dinheiro para os cofres de Goa, devido às ameaças de guerra e aos poderes concedidos a Francisco Barreto para os dois primeiros casos713.

706 Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim, 16.I.1551 – ANTT, CC

II-242-44, fl. 12.

707 O rei estava informado graças a Diogo Botelho Pereira, regressado ao Reino em

1551 (cf. Carta de Diogo Botelho Pereira ao barão do Alvito, Ilha Terceira, 16.VII.1551 – PUB. DPMAC, vol. III, doc. 5) e ainda pelo resumo das rendas e despesas da Índia que D. Afonso nesse ano enviara ao rei (cf. Carta de Simão Botelho a D. João III, Cochim, 30.I.1552 – PUB. Textos do Estado…, p. 74).

708 Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. Catarina, Cochim, 27.I.1552–PUB. DPMAC,

vol. III, doc. 20, pp. 258-260.

709 Cf. Carta de D. Jorge de Meneses, “O Baroche” a D. João III, Goa, 15.XII.1554 – ANTT,

CC I-94-54.

710 O inventário feito por Botelho, em 1552, encontra-se publicado (cf. SOUSA, Viterbo,

“O Thesouro do Rei de Ceylão” in Memória apresentada à Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa, Tipografia da Academia, 1904, pp. 1-67). Botelho refere na sua carta que se tinham anga- riado 90 mil pardaus em Ceilão (cf. Carta de Simão Botelho a D. João III, Cochim, 30.I.1552 – PUB. Textos do Estado…,p. 74).

711 Botelho afirma que D. Álvaro considerava que tinha direito a sair da capitania de

Ormuz com mais do que D. Manuel de Lima por ser um Noronha (cf. Carta de Simão Botelho a D. João III, Cochim, 30.I.1552 – PUB. Textos do Estado…, p. 67). Relembre-se que D. Álvaro de Noronha era filho do vice-rei D. Garcia de Noronha, o qual aceitara o vice-reinado em 1538, entre outros motivos, devido a carências financeiras familiares.

712 Cf. GODINHO, Vitorino Magalhães, Les Finances de l’État Portugais des Indes Orientales

(1517-1635) – Matériaux pour une étude structurale et conjonturelle, Paris, FCG (Centro Cultural Português), 1982, p. 115.

713 Cf. Carta de Simão Botelho a D. João III, Cochim, 30.I.1552 – PUB. Textos do Estado…,

As dificuldades financeiras, além de impedirem o vice-rei de concretizar todos os seus objectivos, causaram-lhe não raras vezes a oposição de reli- giosos, como já foi descrito, mas também dos soldados que se recusavam a servir a Coroa sem terem o seu soldo pago. Dos excessivos gastos dos reli- giosos, queixaram-se Simão Botelho714 e outros oficiais715, tendo D. Afonso

anotado as dificuldades em arregimentar homens para a guerra contra os Turcos716. Por estes motivos, o Noronha sugeria, em 1552, a paz com os

Turcos, embora pedisse sucessivamente empréstimos aos mercadores de Cochim e, por fim, à Câmara de Goa, não obtendo grande sucesso nesta matéria. Entretanto, mostrara-se favorável à política de arrendamentos das alfândegas717. Devido às recusas dos mercadores D. Afonso apoiou-se nos

empréstimos de Diogo Soares, capitão de Salsete e Bardêz, e emitiu patacões de prata. Outra chave para a resolução dos problemas financeiros da Fazenda pode ter residido nos casados, cujo apoio ao governador Francisco Barreto permitiu no final do seu mandato, em 1558, a total recuperação financeira da Índia, visível na armada então construída com destino ao Achém718.

Um outro instrumento ao serviço do vice-rei que poderá ter sido deci- sivo na tentativa de contenção das despesas foi a realização do Tombo de Simão Botelho. Ao realizar o extenso inventário das receitas e despesas de cada fortaleza, Botelho terá, de certo, comunicado ao vice-rei as áreas em que seria possível efectuar poupanças. Este trabalho deverá mesmo ter sido realizado pois a insistência de D. Afonso em que Botelho não partisse para o Reino durante o seu vice-reinado para isso aponta. Por outro lado, o facto de Botelho já ter o Tombo pronto desde 1552719 sugere que o vice-rei poderá

ter interferido na fase final da sua elaboração. Porém, estas interferências vice-reais não são conhecidas através da documentação consultada, o que, apesar de tudo, não invalida a importância deste Tombo para a História

714 Cf. ibidem.

715 As queixas dos oficiais sobre os religiosos serão analisadas no ponto III.5.

716 Para a armada de D. Antão em 1551 (cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III,

Cochim, 27.I.1552 – ANTT, CC I-87-73, fl. 2), e para o socorro a Ormuz em 1552 em que o vice- -rei afirmou que teve de se apressar “que me começava a fugir gente e marinheyros” (cf. Carta de D. Afonso de Noronha ao Padre Gaspar Barzeus, Diu, 16.XI.1552 – PUB. DI, vol. II, doc. 96, p. 403). Isto apesar de Couto referir que em 1551, a Índia estava cheia de homens para recrutar (cf. Ásia; VI, ix, 4). A situação militar do Estado da Índia pode ser avaliada em 1553 através da Certidão de toda a artilharia da Índia desse mesmo ano, na qual se conclui que, desde 1525 o aumento da artilharia ao dispôr dos Portugueses era insuficiente (cf. RODRIGUES, Vítor, A Evolu- ção da Arte da Guerra dos Portugueses no Oriente (1498-1622), trabalho apresentado para efeitos de prestação das provas de acesso à categoria de Investigador Auxiliar, vol. I, Lisboa, IICT, 1998, pp. 265-266).

717 Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim, 16.I.1551 – ANTT, CC

II-242-44, fl. 13.

718 Cf. RODRIGUES, Vítor, op. cit., p. 271.

719 Botelho afirma-o na sua carta ao rei. Cf. Carta de Simão Botelho a D. João III, Cochim,

do Estado da Índia enquanto marco estruturante de uma séria tentativa de contenção de despesas. Esta política esboçada na década de 1550 conheceu um sucedâneo na década de 1560 durante o vice-reinado do sobrinho de D. Afonso, D. Antão de Noronha, com a reforma dos regimentos das forta- lezas decorrida entre 1564 e 1568.

No documento D. Afonso de Noronha, Vice-Rei da Índia (páginas 116-121)