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Ceilão: do acidente à fortaleza

No documento D. Afonso de Noronha, Vice-Rei da Índia (páginas 93-98)

DO VICE-REINADO DA ÍNDIA (1550-1554)

III.3. Ceilão: do acidente à fortaleza

A primeira imagem que D. Afonso teve do Oriente foi a do Ceilão quando, a 17 de Outubro de 1550, parte da sua armada amanheceu em Ceilão sem saber onde se encontrava526. Uma sensação de alívio para todos

os que se encontravam doentes inundou a tripulação mas, para o Noronha, a primeira aportagem ao Ceilão, além de acidental, foi inoportuna. De facto, a situação na ilha tinha vindo a agravar-se desde 1547, quando D. João de Castro, impossibilitado de concretizar a jornada à ilha da canela, ali enviou António Moniz Barreto527. Este, em missão inconclusiva, procurou estabe-

lecer uma aliança no terreno com um dos quatros reinos cingaleses, mas acabou por ver gorado o seu intento, acabando vítima das ambições políticas antagónicas daqueles reis. Após a estadia de Barreto na ilha, as tradicionais tensões entre o reino de Kotte e o reino de Sitawaka agravaram-se e, com elas, os pedidos de auxílio de Bhuvaneka Bahu ao Estado da Índia528. À pres-

523 João de Lisboa também referia que os Rumes eram mal vistos na corte guzerate,

embora se encontrassem em ascensão política. Em 1554, tudo aponta para que tenha sido este grupo a liderar a assumpção da realeza pelo sultão Ahmad Shah (1554-1561), menor de idade, liderada por uma regência. Cf. SUBRAHMANYAM, Sanjay, “The Trading…”, p. 216.

524 Em ambos os cercos de Diu, as tensões entre Rumes e Guzerates haviam sido favo-

ráveis aos Portugueses. No primeiro cerco, os Rumes abandonaram-no devido às informações postas a circular pelos Guzerates e no segundo as tensões entre Coge Çofar e os elementos guzerates são bem conhecidas.

525 Cf. The Travels., p. 27.

526 Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim, 16.I.1551 – PUB. Ceylon,

doc. 121, p. 548.

527 Ver mapa 4.

são do rei de Kotte juntava-se a do bispo de Goa, o qual já em 1547, se decla- rara disposto a encabeçar uma expedição à ilha529, bem como a do próprio

Padre Francisco Xavier que, em missivas a D. João III, alertava para a neces- sidade de fazer cumprir a prometida conversão do rei de Kotte530.

A promessa que Bhuvaneka Bahu fizera quando pedira o juramento do sobrinho Dharmapala como seu herdeiro, em 1543531, foi afastada pelo

próprio nas cartas que redigiu, em Dezembro de 1549, apontando fortes queixas dos abusos dos Portugueses532. A polémica em torno da expedição

de D. Jorge de Castro, em 1549, e em especial, sobre a sua derrota ter sido motivada ou não pela intervenção do rei de Kotte instalou-se533 e, assim que

D. Afonso chegou à ilha, as embaixadas de Bhuvaneka Bahu e Mayadunne, rei de Sitawaka, não tardaram em procurar o seu apoio534.

Preocupado com a Índia, o vice-rei adiou a resolução da questão para Cochim, embora, a pedido de D. João III, tenha feito uma relação da ilha, na qual apontava as suas riquezas, a facilidade das conversões e encorajava o monarca a construir uma fortaleza cuja decisão final para ele remetia535.

Sensível aos pedidos dos religiosos, D. Afonso deixara-se impressionar pela destruição de uma Igreja em domínios do rei de Kotte e pelos rumores do seu envolvimento na derrota de D. Jorge, tendo por isso formado uma opinião negativa daquele soberano536. Disso mesmo se queixou o embaixador

de Bhuvaneka Bahu, em Cochim, a D. João III, embora ainda esperasse uma mudança de atitude por parte de D. Afonso537. O vice-rei, ainda em 1550,

deixara ordens para que, em caso de morte de Bhuvaneka Bahu, o feitor de Ceilão, Gaspar de Azevedo, não entronizasse Dharmapala sem disso o avisar e sem que este, antes, adoptasse oficialmente a fé cristã, seguindo aliás o regi- mento de Jorge Cabral538. Quando estalou a guerra entre Kotte e Sitawaka

529 Cf. BIEDERMANN, Zóltan, op. cit., p. 274.

530 Cf. Carta de Francisco Xavier a D. João III, Cochim, 20.I.1548 – PUB. Ceylon, doc. 10,

p. 506; Carta de Francisco Xavier a D. João III, Cochim, 26.I.1548 – PUB. Ceylon, doc. 115, p. 532.

531 Sobre a questão veja-se: FLORES, Jorge, op. cit., pp. 187-189.

532 Cf. Cartas de Bhuvaneka Bahu a D. Catarina, ao infante D. Luís e a D. António de

Ataíde, Kotte 11.XII.1549 – PUB. Ceylon, docs. 117, 118 e 119.

533 O tema será polémico para D. Afonso, mas a cronística insistirá sempre na inocência

de Bhuvaneka Bahu. D. Jorge tinha sido atacado quando retirava para Kotte pelas forças de Mayadunne, perdendo ainda alguns homens. No entanto, no seu tempo, muitos consideraram que por detrás do ataque estariam ordens secretas do rei de Kotte a Mayadunne.

534 Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim 16.I.1551 – PUB. Ceylon,

doc. 121, pp. 551-552.

535 Cf. ibidem.

536 Tal facto depreende-se da carta de D. Afonso respeitante a Ceilão em 1552 e é afir-

mado na carta do embaixador de Kotte. Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim, 27.I.1552 – PUB. Ceylon, doc. 127; cf. Carta de Radaraksa Pandita a D. Catarina, Cochim, 28.I.1551 – PUB. Ceylon, doc. 123, pp. 565-566.

537 Cf. ibidem, p. 567.

538 Cf. Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim, 27.I.1552 – PUB. Ceylon,

no Inverno de 1551, D. Afonso encontrava-se ocupado com as questões malabar e turca, acabando os acontecimentos por se precipitarem. A morte acidental de Bhuvaneka Bahu e a entronização de Dharmapala, operada por Gaspar de Azevedo, contra as ordens do vice-rei, no contexto das tentativas de Mayadunne se afirmar como soberano de Kotte junto da nobreza daquele reino, foram conhecidas em Goa, em Agosto de 1551.

Reunido o conselho de capitães, este impôs a D. Afonso a jornada à ilha. O espírito da expedição, à qual D. Afonso tentou opôr-se, escudando-se na ordem régia de não sair da Índia e tentando ali enviar o filho, apesar do voto contrário do conselho, depois desempatado pelos pareceres de Vasco da Cunha e Francisco Barreto, deveria ser o de entrar na ilha “amostrando que hia fazer justiça da morte del-Rey e pera rrestituir a fama aos Portuguezes, que naquillo perderão, e assesegar a tera. E com isso trabalhase, por aver o tesouro ou a parte, que dele podese ver, pera socoro das gramdes necesy- dades da Imdia, que por serem tantas e tais, parecia isto vindo de Deus”539.

À pressão dos capitães juntaram-se a do bispo D. Juan de Albuquerque, dos Franciscanos e dos próprios Jesuítas. Em suma, antes de partir para Ceilão, D. Afonso tinha já boa parte da sua actuação condicionada e imposta pelos interesses divergentes e ambivalentes destes grupos, uns apostados nas riquezas, outras nas possibilidades de evangelização.

O vice-rei partiu com a estratégia que ele próprio enunciou e, ciente de que o desenlace poderia ser polémico, optou por fazer tudo em conselho. Talvez também por isso, encontremos na expedição não só quase toda a fidal- guia mais importante da Índia de então, como também o vigário-geral dos Dominicanos, um representante dos Franciscanos e outro dos Jesuítas. Uma vez ancorado em Ceilão, em Outubro de 1551, não tardou a que a polémica se instalasse, sobretudo em torno dos empréstimos. Já em 1550, quando aportara à ilha acidentalmente, assim que fora informado das dificuldades do tesouro oriental, D. Afonso tentara tirar partido das disputas entre Kotte e Sitawaka, para exigir de Bhuvaneka Bahu um empréstimo. O soberano de Kotte negara o empréstimo, embora se tivesse empenhado em enviar diversos presentes ao vice-rei.

Aquando do regresso à ilha da canela em 1551, Noronha de imediato entrou em negociações com os ministros de Dharmapala. Acordaram então que o reino de Kotte pagaria 200 mil pardaus ao Estado da Índia, na con- dição de 100 mil serem avançados antes da jornada a realizar contra Maya- dunne. Os restantes 100 mil seriam pagos depois, ficando ainda acordada a divisão do saque a realizar. Aproveitando, as dificuldades de Kotte em pagar os 100 mil pardaus iniciais uma vez que Dharmapala só entregara 80 mil pardaus, e em consonância com as pressões de muitos soldados e fidalgos, D. Afonso de Noronha ordenou de imediato a busca do tesouro de Kotte na

falta dos 20 mil pardaus restantes. As torturas e perseguições iniciaram-se ainda antes da jornada a Sitawaka, e depois de entrada a cidade, o vice-rei não só não autorizou a partilha equitativa do saque, como estava previsto, como continuou as perseguições aos membros do aparelho administativo e nobreza de Kotte. Alegando ainda o incumprimento do acordo por falta de pagamento dos restantes 20 mil pardaus, o vice-rei decidiu não partir em perseguição de Mayadunne como também ficara previsto. Por seu lado, a nobreza de Kotte argumentava que a prioridade era capturar o soberano de Sitawaka e depois se trataria dos pagamentos, mas ao que tudo aponta D. Afonso não cedeu. Mayadunne pôde assim escapar, apesar de Sitawaka ter sido incendiada e severamente pilhada. Além das promessas não cum- pridas de pagamento, o Noronha alegou ainda a questão da conversão de Dharmapala, que considerava ter sido prometida por Bhuvaneka Bahu ante- riomente, para justificar ao rei os motivos das perseguições que ordenou em busca do tesouro e porque não concretizou a captura de Mayadunne. Em todo o processo descrito540 não é possível abstrair as diferentes pressões que

o vice-rei recebeu por parte de fidalgos, soldados, religiosos, além de even- tuais interesses pessoais que o próprio tivesse que não quedam claros. Espar- tilhado entre os apetites da fidalguia e a vontade de quase conversão forçada de Dharmapala, D. Afonso de Noronha viu os acontecimentos escaparem ao seu controlo. Parece-nos assim que a ambiguidade de interesses presentes na expedição dificilmente poderia coadunar-se com uma acção unívoca no terreno, razão pela qual os eventos escaparam ao controlo do vice-rei que insistiu em manter as perseguições e torturas até abandonar a ilha.

Mais do que condenar ou defender as atitudes do vice-rei na expedição de 1551, função da qual o historiador deve abster-se, cabe compreendê-la e enquadrá-la no seu tempo. Se por um lado, a expedição foi motivo de oposi- ção a D. Afonso, deverá salientar-se, por outro lado, o facto de dela ter saído a decisão de se reconstruir uma fortaleza na ilha541 e de com ela se ter iniciado

uma nova fase da história da presença lusa na ilha, marcada, não por uma territorialização que só o período filipino traria, mas por um crescendo de maior intervenção portuguesa na política interna do já então débil reino de Kotte542. Acresce que ao enunciado, em nosso entender, a expedição demons-

trou à saciedade a dimensão do crescimento do poder dos religiosos, a ponto de poder mesmo rivalizar com o do próprio vice-rei. Deste facto o próprio

540 A versão aqui apresentada procurou ser um resumo sucinto do que D. Afonso escreveu

ao rei em sua defesa (cf. nota seguinte) e daquilo que é relatado por Diogo do Couto.

541 Como se constata da leitura da Carta de D. Afonso de Noronha a D. João III, Cochim,

27.I.1552 – PUB. Ceylon, doc. 127. Apesar da polémica da expedição, já em 1920 (PIERIS, P. E., Ceylon and the Portuguese 1505-1658, Londres, Luzac & Co., 1920, p. 71) e 1936 (BOURDON, Léon, Lés Débuts de l’ Evangélisation de Ceylan vers le milieu du XVIe siècle d’aprés des documents récemment publiés, Lisboa, Instituto Francês, 1936, pp. 85-86) este facto foi reconhecido pela comunidade historiográfica.

Noronha se lamentou. Assim, em 1551, os acontecimentos cingaleses reflecti- ram uma vincada afirmação do espírito da Contra-Reforma, a qual atingiria, um dos seus momentos de maior exaltação com o caso do dente de Buda, já em tempos do vice-rei D. Constantino de Bragança543.

Ao deixar a ilha, para acudir aos problemas de abastecimentos das naus da pimenta e não para fugir à pressão de Kotte, D. Afonso não a deixou estabilizada e perdeu, é certo, uma excelente oportunidade de se assenho- rear da totalidade da mesma544, não fosse aquela expedição a maior que os

Portugueses até então tinham ali organizado545. Malogradamente, não só

as prioridades do momento eram outras (Turcos) como ainda, como já foi demonstrado por Zoltán Biedermann, aos Portugueses escapava a compreen- são do tecido social ceilonense, sem o qual uma territorialização seria difícil de concretizar546. Ao deixar D. João Henriques, um seu servidor, à frente

dos destinos do frágil reino de Kotte, o Noronha pretendia pacificar aquele reino apesar de ordenar a captura de Vidiye Bandara, pai de Dharmapala, que deveria ser enviado para Goa. Mas a precoce morte de D. João e a sua sucessão por Diogo de Melo Coutinho, em Abril de 1552, que retomou a polí- tica de conversão forçada de Dharmapala e de Vidiye Bandara, levaram à precipitação dos acontecimentos políticos. Empenhado, então, no combate aos Turcos, o vice-rei nomeou, em Outubro de 1552, D. Duarte de Eça para Ceilão, esperando que este acalmasse a situação. Porém, Eça apenas agravou a prisão decretada por Coutinho a Vidiye Bandara. Com ele seguiu, a mando de D. Afonso547, o Padre Emanuel de Morais empenhado na conversão de

Dharmapala, o que viria a acontecer em 1557, após a morte do seu pai. Para os anos de 1553 e 1554, uma vez mais as fontes escasseiam, em especial após a deposição de D. Duarte de Eça, em Dezembro de 1552, e a sua sucessão por Fernão de Carvalho, a quem D. Afonso havia encarregue a edificação da nova fortaleza em Colombo após uma provável resposta régia favorável a tal. A guerra entre Kotte e Sitawaka foi retomada548 e nem a

ameaça da armada de um corsário turco ao serviço do Samorim, a operar na Costa da Pescaria e no Coromandel549, foi suficiente para captar de novo

a atenção do vice-rei para a ilha da canela. Não obstante, em Novembro de 1553, no seguimento da reprimenda de D. João III pela sua atitude no Ceilão550, D. Afonso nomeou Afonso Pereira de Lacerda para entregar parte

543 Cf. VILA-SANTA, Nuno, “D. Constantino de Bragança” in Enciclopédia Virtual da Expan-

são Portuguesa – http://www.cham.fcsh.unl.pt/eve.

544 Cf. PIERIS, P. E., op. cit., pp. 70-71. 545 Cf. BIEDERMANN, Zóltan, op. cit., p. 297. 546 Ibidem, p. 326-327.

547 Cf. BOURDON, Léon, op. cit., p. 80.

548 Cf. Carta de Frei António Dias a Gaspar Barzeus e aos irmãos de Goa e Coimbra,

Colombo, 15.XII.1552 – PUB. DI, vol. II, doc. 108, p. 533.

549 Cf. Ásia, VI, x, 9.

550 O original da carta é transcrito pelo cronista seiscentista Padre Fernão de Queyroz,

das jóias apreendidas na expedição e entrar na capitania. Após este facto, nada mais se conhece dos acontecimentos ceilonenses até à chegada do vice- -rei D. Pedro Mascarenhas.

Contudo, importa desde já ressaltar que a reprimenda não fora motivo de abalo na confiança por parte do rei e muito menos, como adiante expli- citaremos, razão de ser da nomeação de D. Pedro Mascarenhas. O Noronha esteve consciente, desde o primeiro momento, que a polémica do Ceilão podia denegrir a sua imagem junto do monarca e terminar em algo seme- lhante ao que sucedera com Nuno da Cunha no seu regresso da Índia551. Por

isso mesmo, tratara tudo em conselho e escrevera ao monarca, em 1552, que “Certefiquo a Vosalteza que este negocio de Ceyllão me tem embaraçado de maneyra, que ho nam emtemdo”552, motivo pelo qual lhe remetia, um rela-

tório circunstanciado sobre tudo o que lá se passara, mas que é desconhe- cido. Porém, nada do afirmado implica que o Ceilão não detivesse um lugar importante na política afonsina, nem que fosse enquanto bastião de retirada do Estado da Índia face a uma possível investida turca, como já noutras ocasiões sucedera553.

No documento D. Afonso de Noronha, Vice-Rei da Índia (páginas 93-98)