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CAPÍTULO 2: CONVENÇÃO PROCESSUAL E CONVENÇÃO PROBATÓRIA

2.5 Negócios processuais no âmbito probatório

2.5.2 Admissibilidade dos pactos sobre prova

Inicialmente, sobre a possibilidade desse tipo de negociação, há quem pugne pela sua inviabilidade, porque qualquer derrogação ou limitação quanto à apuração da verdade geraria, de forma mais intensa ou mais reduzida, déficit na descoberta da verdade, o qual corresponderia a uma deficiência na legalidade e justiça da decisão433. Tal assunção vem de uma concepção de verdade em sentido demonstrativo, a qual remonta à ideia de que seria possível uma reconstrução dos fatos ocorridos dentro do processo, de forma a se atingir a verdade. Tal ponto de vista foi refutado, preferindo-se adotar a prova em sentido persuasivo, em que a decisão judicial tem como base uma verdade factível, que pode ser alcançada analisadas as alegações de fatos pelas partes à luz do contraditório.

Com efeito, Beclaute Silva refuta tal opinião, indicando que esse tipo de negócio processual não se presta a fixar a verdade, mas sim estabelecer como determinada alegação de

426 Cf. CABRAL, Antonio do Passo. Pré-eficácia das normas e aplicação do Código de Processo Civil de 2015 ainda no período de Vacatio Legis. Revista de Processo, São Paulo, v. 246, p. 335-345, ago. 2015, p. 339-340. 427 Tratando especificamente dos negócios sobre ônus da prova, Robson Godinho sinaliza que a natureza processual das normas sobre prova é o único entendimento coerente para defender sua tese, apesar do autor ressalvar as nuances que podem advir do caso concreto. GODINHO, Robson Renault. Negócios processuais sobre o ônus da prova no novo código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 184.

428 “Come è noto, mentre la legge sostanziale attribuisce fondamentale importanza al sistema posto a tutela della regolare formazione e manifestazione della volontà, dalla queale derivano diverse conseguenze in materia di validità ed efficacia degli atti, la legge processuale non si ocupa né della formazione né della manifesazione della volontà.” PEZZANI, Titina Maria. Il regime convenzionale delle prove. Milano: Giuffrè, 2009, p. 63.

429 PEZZANI, Titina Maria. Il regime convenzionale delle prove. Milano: Giuffrè, 2009, p. 76.

433 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução: Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 148-149.

fato será provada. Veicularia, por conseguinte, uma norma de estrutura, visto que estabelece como outras normas serão criadas, modificadas ou extintas434.

Há, porém, aqueles que admitem pactos probatórios, porém sinalizam que estes não podem afetar os poderes do juiz, especialmente aqueles destinados à verificação da veracidade das alegações de fato, pois, se estes poderes fossem apequenados, não seria possível chegar a uma decisão justa435. A afirmação é paradoxal. Como conceber qualquer alteração no procedimento ou situações jurídicas processuais sem que sejam afetados poderes do magistrado?

Todo tipo de negócio processual possui, de alguma forma, influência na atuação do juiz. Da cláusula de eleição de foro, que modifica a competência relativa, ao pacto de instância única, o qual encerra a atividade judicial à primeira instância, todos eles possuem a característica de alterar a atividade judicial no curso do processo. Assim também é o negócio de limitação a meios de prova específicos, o qual veda a utilização dos poderes instrutórios de modo a determinar a produção de prova por meio diverso dos pactuados.

A atividade probatória sempre sofrerá limitações436, seja por questões legais – como a vedação de meios de prova considerados ilícitos –, seja por impossibilidades de cunho material (por exemplo, queimaram-se todos os documentos existentes acerca de determinado negócio jurídico), seja em razão de manifestação de vontade, como quando o juiz dispensa a produção

434 SILVA, Beclaute Oliveira. Verdade como objeto do negócio jurídico processual. In: CABRAL, Antonio do Passo. NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios Processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 1, p. 402- 403.

435 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Mitidiero. Novo Código de Processo Civil Comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 309. MOREIRA, Victória Hoffman. PEIXOTO, Juliene de Souza. Negócios jurídicos processuais e os poderes instrutórios do juiz. In: MARCATO, Ana et al (coord). Negócios Processuais (Coletânea Mulheres no Processo Civil Brasileiro). Salvador: Juspodivm, 2017, v. 1, p. 620. Leonardo Greco também é partidário dessa opinião, indicando que ‘'convenções probatórias também são admitidas, desde que disponível o direito material que por elas possa ser atingido e que não seja tolhido o livre convencimento do juiz, nem limitado o seu poder de determinar de ofício a produção das provas que julgar necessárias à decida e veraz elucidação dos fatos. GRECO, Leonardo. Atos de disposição processual – primeiras reflexões. In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (org.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais: estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 301.

436 “Limitações probatórias são todas as proibições impostas pelo ordenamento jurídico à proposição ou produção das provas consideradas necessárias ou úteis para investigar a verdade dos fatos que interessam à causa. Essas limitações são de diversas naturezas. Algumas resultam da imposição de prazos e de preclusões pelas normas que regem os diversos procedimentos e a prática dos atos processuais neles inseridos. Outras decorrem da necessidade de assegurar ao processo celeridade e rápida solução, impedindo a produção de provas consideradas inúteis ou procrastinatórias. Outras visam a dar segurança a certas relações jurídicas, mediante a admissibilidade da prova de certos fatos somente por meio de fontes de excepcional qualidade formal, como o registro público, repudiando as demais. Outras, ainda, pretendem impedir que a investigação dos fatos pelo juiz viole preciosos direitos fundamentais da pessoa humana, como a intimidade, a integridade física e a honra, ou preservar o interesse público ao sigilo, o que leva à proibição de provas consideradas ilícitas. E, também em vários casos, a lei ou os costumes impõem limitações à admissibilidade de certas provas que consideram inidôneas, disciplinando a investigação da verdade pelo juiz para que ele não se deixe influenciar por fontes ou por métodos considerados pouco confiáveis ou suspeitos.” GRECO, Leonardo. Limitações probatórias no processo civil. Revista Eletrônica de Direito Processual - REDP, Rio de Janeiro, ano 3, v. IV, p. 4-28, jul./dez. 2009, p. 7.

de provas, por se declarar “satisfeito” com o que já foi coletado, ato de cunho autoritário e desacertado437, por limitar o direito de defesa das partes. Porque, então, vedar que a vontade livre das partes constitua também elemento limitador da atividade probatória? Tratar-se-ia, meramente, de obstruir a concretização de um processo efetivamente cooperativo.

Mais uma vez incide a ideia prova em sentido demonstrativo, com a concepção de que a justiça da decisão está diretamente relacionada com a descoberta da verdade no processo. Discorda-se, porque o que promove justiça no âmbito de um processo é a efetivação do devido processo legal, que ocorre quando as partes podem levar à juízo suas alegações e têm a possibilidade de exercer o contraditório e defesa com relação aos argumentos trazidos pela parte contrária. O devido processo legal também pressupõe a possibilidade de autorregramento formal, respeitados os limites impostos pelo ordenamento.

Além disso, os poderes instrutórios do juiz possuem natureza subsidiária438, não devendo o magistrado se substituir às partes na atividade probatória. Sua atuação deve se dar em casos de tentativa probatória frustrada ou demonstração de impossibilidade técnica de se alcançar a prova pretendida439 e, ainda, quando o resultado da atividade probatória não for suficiente para subsidiar a decisão judicial (argumenta-se que, nesses casos, deveriam ser aplicadas de pronto as regras relativas ao ônus da prova440). Nesse contexto, o juiz poderá fazer uso dos poderes instrutórios que lhes foram concedidos por lei.

A discricionariedade, desse modo, não pode ser tida como característica dos poderes instrutórios do juiz. Sua utilização, sob pena de ser considerada arbitrária, deverá ser precedida de fundamentação, baseada nas situações acima elencadas, para que as partes possam exercitar o contraditório acerca dessa decisão.

437 GODINHO, Robson Renault. A possibilidade de negócios jurídicos processuais atípicos em matéria probatória. In: CABRAL, Antonio do Passo. NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Negócios Processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 1, p. 413-414. Para mais em limitações probatórias, cf. FERREIRA, Clarissa Diniz Guedes. Persuassão racional e limitações probatórias: enfoque comparativo entre os processos civil e penal. 2013. Tese (Doutorado em Direito Processual) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 438 “É que não só a indicação das fontes de prova como também os requerimentos da produção dos meios de prova adequados são tarefas que cabem principalmente às partes e apenas subsidiariamente ao juiz, porque são os litigantes que têm as melhores condições de fazê-lo. Por outro lado, embora seja solucionado por um procedimento dominado pelo direito público e pelo interesse estatal em bem prestar a jurisdição, não podemos esquecer que, no Processo Civil, o litígio, de regra, versa sobre direitos disponíveis, devendo prevalecer a autonomia das partes, sua iniciativa e suas faculdades. Não se pode interpretar qualquer ato omissivo das partes como uma negligência, nem as partes devem sempre contar com uma ‘bengala’ da atuação judicial, numa demonstração de um paternalismo injustificável na maioria dos casos. Os atos das partes devem ser interpretados, em princípio, como expressão da liberdade decorrente de sua posição como sujeito da demanda, demonstração da autonomia que seus poderes processuais lhe confere, não podendo o juiz atuar em substituição às partes nessa seara”. CABRAL, Antonio do Passo. Imparcialidade e impartialidade. Por uma teoria sobre repartição e incompatibilidade de funções nos processos civil e penal. Revista de Processo, São Paulo, v. 32, n. 149, p. 339-364 , jul. 2007, p. 357-358.

439 CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Poderes Instrutórios do Juiz no Processo de Conhecimento. Brasília: Gazeta Jurídica, 2012, p. 71.

440 COSTA, Eduardo José da Fonseca. Algumas considerações sobre as iniciativas judiciais probatórias. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 90, p. 153-173, abr./jun. 2015, p. 165.

Portanto, vê-se que os argumentos utilizados para patrocinar uma vedação aos negócios probatórios não se sustentam, por consistirem, verdadeiramente, em vestígios de um modelo eminentemente publicista de processo, que promove a mácula da autonomia privada em âmbito processual441. O protagonismo judicial em detrimento das partes, característica imanente ao publicismo, não coaduna com a vertente cooperativa hoje vigente.

Os negócios processuais de cunho probatório, assim, são admissíveis no ordenamento processual brasileiro442, em razão da cláusula geral de convencionalidade e também por se mostrarem, desde que respeitados os limites anteriormente fixados nesse trabalho, meio idôneo de externalização da autonomia privada processual443.