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3 CONSENSUALIDADE, INTERESSE PÚBLICO E LEGALIDADE: CONVERGÊNCIA EM PROL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL

3.2 A ADOÇÃO DE MECANISMOS CONSENSUAIS E SUA VINCULAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio da legalidade encontra-se constitucionalizado no caput do art. 37 da Constituição da República de 1988, funcionando como mandamento norteador de toda a Administração Pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes estatais. Assim como os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, a legalidade é fruto direto da superação do absolutismo monárquico pelo Estado de Direito, período no qual se inaugurou a era da Administração burocrática, dada a necessidade premente de conter o

excesso de poder dos monarcas e mantendo íntima relação com o princípio da separação de poderes.

Guiada por este anseio de construir um Estado administrador subordinado aos mandamentos legais e não mais as vontades pessoais de um governante, a doutrina clássica sintetiza o princípio da legalidade sob dois víeis: um primeiro, de natureza negativa e voltada aos cidadãos, para quem é permitido atuar sempre que não haja lei proibindo determinada conduta; o segundo, direcionado ao Poder Público e de natureza positiva, delimitando o âmbito de atuação apenas ao que a lei expressamente estabelecer.

Nesta propositura, Celso Antônio Bandeira de Melo (2009, p. 105) afirma que o princípio da legalidade implica na completa submissão da Administração Pública à lei. Para o renomado doutrinador, em sua função administrativa, o Estado só pode realizar aquilo que a lei antecipadamente preveja. Por conseguinte, segundo essa visão, administrar nada mais é do que concretizar os interesses públicos legalmente instituídos e seguindo os meios e as formas estabelecidos ou particularizados na lei. Na mesma linha de raciocínio, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 65) considera que “na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei”.

Questiona-se, nesse ínterim, até que ponto a Administração pode preferir soluções concertadas em detrimento da aplicação do ato administrativo tradicional (nesse caso, a sanção, ato unilateral e imperativo, com expressa previsão legal) sem confrontar o princípio da legalidade erigido pela própria Constituição como um dos pilares do direito administrativo. É peremptório, então, revisitar a interpretação conferida ao princípio em pauta, o que não pode ser feito sem levar em consideração as mudanças sofridas pelo Estado e pela sociedade nas últimas décadas, conciliando-as com as necessidades atuais dessa comunidade globalizada e com as diretrizes instauradas pela Administração Pública gerencial.

A partir da segunda metade do século XX, marcadamente após o fim da Segunda Guerra Mundial, a complexidade das novas demandas sociais faz com que, paulatinamente, o Parlamento diminua seu prestígio, favorecendo o surgimento de teorias que deram uma roupagem vanguardista ao princípio da legalidade administrativa. Como consequência, a lei aos poucos vai perdendo o caráter sagrado que detinha quando o Legislativo era tido como o máximo expoente da vontade do povo.

De acordo com Rosa Maria de Campos Aranovich (2008, p. 38), um dos desdobramentos do processo democrático pelo qual passou as nações ocidentais nesse período foi que o Parlamento abandonou esse aspecto de lugar onde se desenvolve certa identidade ideológica para ser o espaço onde os partidos políticos organizados e suas diversas

concepções a respeito do papel do Direito e do Estado se enfrentam, sobrepondo-se estes aos antigos blocos parlamentares. Logo, a lei deixa de ser vista como a mais perfeita tradução da vontade geral do povo e passa a encarnar uma manifestação da vontade política das bancadas com maior número de representantes no Parlamento.

De outra monta, ainda segundo as ilações de Rosa Maria de Campos Aranovich (2008, p. 39), como advento do Estado Social, o Estado Administrador é responsável pela maior parcela das novas atribuições das quais se incumbe o ente estatal, adquirindo maior força política e jurídica em comparação com os outros Poderes. Nesse contexto, para exercer sua função de dirigir e conformar a sociedade, comandar a direção da economia e implantar políticas públicas, o Estado Executor necessita de algo além das leis gerais, abstratas e permanentes.

Visando atender as reinvindicações de uma sociedade acentuadamente técnica, o Legislativo precisa de um preparo tático do qual não dispõe e dificilmente disporá, tendo em conta a diversidade dos âmbitos sociais que requerem conhecimentos técnicos específicos. Nesse panaroma, é primordial dotar as normas de características conjunturais e mutáveis, aptas a acompanhar a evolução da sociedade, evitando que elas fiquem estanques no tempo e tornem-se defasadas. Demais disso, diante de todas essas circunstâncias, o processo legislativo tende a tornar-se moroso e, não raramente, quando a norma por fim adquire vigência alguns de seus comandos já não se coadunam com as exigências que motivaram a sua criação.

Acontece que a Administração Pública não se restringe a mera atividade executiva. Com efeito, ao Estado Administrador também cabem funções planificadoras, normativas, de gestão financeira, de produção de bens e serviços e de regulação de serviços públicos prestados pela iniciativa privada, de modo que ele está obrigado a apresentar resultados satisfatórios para a coletividade (ARANOVICH, 2008, p. 40).

No exercício das tarefas listadas, espera-se que o ente estatal cumpra o requisito de eficiência minimamente exigido na busca pelo fornecimento de uma boa administração aos cidadãos-usuários. Aí, de novo, o princípio da eficiência aparece como vetor da atividade administrativa, pelo que é imprescindível considerar as necessidades substantivas do mesmo, as quais nem sempre são abastecidas a partir do simples atendimento formal à lei.

Por possuir o mesmo grau hierárquico assegurado ao princípio da legalidade, a eficiência administrativa não pode ceder sempre por supostamente violar o primeiro postulado, sem que sejam ponderadas as circunstâncias do caso concreto (isto se considerarmos a legalidade como a estrita vinculação da Administração Pública à lei stricto

sensu). Em virtude disso, Aranovich (2008, p. 40) ressalta que “o Direito frente à lei e a função administrativa frente ao princípio da legalidade são equações que sempre apresentam resto em favor dos primeiros: o Direito e a função administrativa”.

Não se concebe, portanto, que na ordem constitucional vigente, a lei – frise-se, em sentido estrito – sirva de empecilho para impedir o Poder Público de concretizar outras normas constitucionais. É por isso que a simples ausência de uma determinação expressa em texto legal não justifica o rechaço imediato aos instrumentos consensuais sem uma análise prévia da situação fática posta16.

Obviamente, não se pretende negar a importância da lei e do princípio da legalidade como vetor de extrema importância para inibir o abuso de poder no âmbito administrativo, tampouco se tem a intenção de afastar a obediência da Administração ao instituto em comento. O ponto central desse debate consiste em que a possibilidade de se adotar medidas concertadas com o ente regulado não deve ser afastada de plano, com fundamento em que tal prática viola o princípio da legalidade, sob a alegação de que seria necessária uma lei formal e escrita prevendo todos os casos em que o gestor pode preferir a consensualidade.

Apesar de já haver previsões legais para o uso dos mecanismos consensuais em alguns casos17, em muitos outros essa determinação escrita ainda não chegou. Ainda assim, é possível que a aplicação de medidas concertadas mostre-se mais eficiente do que a imposição das tradicionais sanções administrativas.

Neste limiar, a distinção feita por Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2003, p. 147) acerca da intensidade da atuação consensual se postula como um sóbrio critério para delimitar até que ponto a Administração Pública pode transacionar sem chocar-se com o princípio da legalidade. Em sua análise, o jurista identifica dois papéis possíveis de assunção pela consensualidade administrativa: de um lado, como coadjuvante, em plano secundário; de outro, como vetor determinante do agir administrativo.

Dessa forma, em se tratando da atuação coadjuvante, a Administração ouve o ator privado e com ele estabelece as soluções que melhor se apresentarem para sanar o conflito.

16 Na brilhante síntese de Rosa Maria de Campos Aranovich (2008, p. 40), a atual existência de uma ordem jurídica justa sobrepõe-se em relevância ao princípio da legalidade, no sentido de que essa ordem encontra-se amparada por valores e princípios que lhes dão consistência, coerência e coloração. Diante dessa nova realidade, a autora conclui que a solução para as questões do Executivo não mais são encontradas somente na lei, mas também, e, sobretudo, na Constituição e nos princípios por ela acolhidos, seja expressa ou implicitamente. Logo, é no constitucionalismo que se ampara hodiernamente a melhor definição para o princípio da legalidade e não mais na lei stricto sensu.

17 Cite-se como exemplo o Termo de Ajustamento de Conduta previsto na Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985); o Termo de Compromisso de Cessação da Lei da Concorrência (Lei nº 8.884/1994); o Termo de Compromisso da Lei de Valores Mobiliários (Lei nº 6.385/1976) e o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta do setor de saúde suplementar (Leis nº 9.656/1998 e 9.961/2000).

No entanto, a plenitude da decisão ainda recai exclusivamente sobre o ente público. Aqui, a negociação funciona como um complemento, capaz de orientar a decisão administrativa, mas sem estabelecer uma atuação vinculada para o Poder Público (isto sim, caso não cumpra a solução negociada, o ente deve motivar a sua recusa). Não se faz necessário, assim, expressa previsão legal permitindo a adoção dessa modalidade, já que não houve sequer alteração na competência do órgão decisório18.

Por outra via, nas hipóteses em que a implantação de medidas consensuais seja determinante para a atuação administrativa, Moreira Neto defende ser imperioso a existência de lei prevendo que a decisão administrativa poderá ser produzida pelo consenso, porque se cria para a Administração a obrigação de cumprir a decisão elaborada em parceria com o particular. Mexe-se, destarte, na competência do ente administrativo, o que só pode ser feito pelo legislador.

Por fim, em se tratando de uma previsão legalmente estabelecida, faz-se pertinente questionar se, nessas hipóteses, a utilização de meios consensuais pelo Poder Público configura um agir vinculado para o gestor ou se enquadra na esfera da discricionariedade administrativa.

Como a intenção defendida desde o capítulo anterior é que seja aplicado o instrumento mais eficiente para coibir a conduta ilegal e reparar – à medida do possível – suas consequências, não é propício que a consensualidade seja imposta como um ato vinculado à Administração, pois que, diante das características específicas de cada caso, nada impede que a sanção mostre-se mais eficaz para alcançar esses objetivos.

Por isso, a princípio, ainda que disposta expressamente em lei, a utilização dos mecanismos concertados não se incluem na clássica definição de ato vinculado, consistindo em uma faculdade que o legislador concede ao administrador para celebrar ou não o ato

18 Nesse sentido, inclusive, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 253.885-0, de Minas Gerais, relatado pela Ministra Ellen Gracie. Nesse caso, o Município de Santa Rita do Sapucaí (MG) interpôs recurso contra o acórdão do Tribunal de Justiça estadual, peticionando a revisão da sentença homologatória de transação celebrada entre o referido ente e as servidoras públicas municipais (recorridas no processo em pauta). O principal argumento da recorrente consistia na ofensa ao art. 37, da Constituição da República de 1988, alegando que o acordo realizado pela gestão anterior e as servidoras violaria o princípio da legalidade, já que não havia nenhuma lei autorizando a transação, o que inviabilizaria sua celebração, porquanto o Poder Público, na qualidade de mero executor do interesse público, fixado em lei, não pode dele dispor. Em síntese, a Primeira Turma da Corte Constitucional entendeu pela manutenção da sentença, considerando que em determinadas situações o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado em favor das soluções que melhor atendam a ultimação deste interesse; no caso, o acordo se prestou a consecução do interesse público de forma mais rápida e efetiva. Em referência ao princípio da legalidade, a Corte aduz que o acordo celebrado não é oneroso e não gera nenhum gravame patrimonial ao Município, pelo que não é necessária nenhuma lei autorizando a sua realização (tendo em vista que se tratava de uma negociação para pagamento dos salários atrasados, matéria fática indubitável. A municipalidade de qualquer forma teria que pagar essa dívida, pelo que não configurava a criação de nenhuma nova obrigação. Pelo contrário, a negociação extrajudicial traria benefícios econômicos, como a dispensa do pagamento dos honorários sucumbenciais).

bilateral19, pelo que cabe ao gestor escolher, entre os instrumentos postos ao seu arbítrio, qual possui maior aptidão para alcançar a finalidade pública pretendida em cada caso.

19 Sobre o entendimento acerca da discricionariedade administrativa, Gustavo Binenbojm (2006, p. 39) revisa o conceito clássico de Hely Lopes Meirelles para caracterizá-la como um espaço carecedor de legitimação, isto é, “um campo não de escolhas puramente subjetivas, mas de fundamentação dos atos e políticas públicas adotados, dentro dos parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição e pela lei”. Assim, não se sustenta a conservadora dicotomia traçada entre atos vinculados e atos discricionários, posto que atualmente a vinculação da Administração se dê diretamente com a Constituição, emergindo a noção do que Binenbojm denomina de juridicidade administrativa. O que existe, portanto, são diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. Esclarece o professor que a discricionariedade não mais pode ser encarada como uma liberdade decisória externa ao direito, tampouco um campo livre do controle jurisdicional. Destarte, o que se verifica é o maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade, que será proporcional ao nível de controle judicial dos seus atos.

4 DO REGIME JURÍDICO PERTINENTE AOS ACORDOS ADMINISTRATIVOS