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5. ADOLESCÊNCIAS POSSÍVEIS E INTERNAÇÃO

5.1 ADOLESCÊNCIA: UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL

Nem todas as crianças, contudo, podem viver no país da Infância. Existem aquelas que, nascidas e criadas nos cinturões de miséria que hoje rodeiam as grandes cidades, descobrem muito cedo que seu chão é o asfalto hostil, onde são caçadas pelos automóveis e onde se iniciam na rotina da criminalidade. Para estas crianças, a Infância é um lugar mítico, que podem apenas imaginar quando olham as vitrinas nas lojas de brinquedos, quando vêem TV ou quando olham passar, nos carros dos pais, garotos de classe média. Quando pedem, num tom súplice – tem um trocadinho aí, tio? - não é só dinheiro que querem; é uma oportunidade para visitar, por momentos que seja, o país com que sonham.

Moacyr Scliar87

O contexto histórico, social e cultural, em que se insere o/a adolescente, são imprescindíveis para conhecer e compreender os sentimentos e comportamentos associados à categoria social “meninas internas”, pois são estruturantes também os sentimentos e atitudes de adolescentes reais, levando-as a internalizar a responsabilização por atos rotulados como infracionais num processo de criminalização de condutas que marca a trajetória destas meninas e consequentemente o lugar ocupado na estrutura e imaginário social.

A infância e a adolescência comportam diferentes significados sociais, sendo marcados por características singulares a depender do período socio-histórico do qual façam parte. Deste modo apresentou distintas configurações ao longo da história. Conforme Ariés (2015), até o final do século XVIII, infância e adolescência eram confundidos, ainda não eram vistas

compreendidas como fases distintas, predominando certa confusão entre elas. Essa diferenciação foi realizada no decorrer da história a partir da lógica disciplinar escolar a partir do século XIX, progressiva correspondência entre idade e classe, com base nas necessidades de uma nova pedagogia começam a traçar distinções mais marcantes entre infância e adolescência. A sociedade moderna impõe a inserção dos adolescentes em instituições para além da família. Neste contexto ganha centralidade a escola no processo de formação desse público a partir de uma perspectiva disciplinar.

Priore (2000) narra a história da criança brasileira, seja quando se discutem condições de vida das crianças européias trazidas para cá no século XVI (RAMOS, 2000), seja quando aborda o cotidiano das crianças livres ou escravas no Brasil Colônia e Império (PRIORE, 2000). A entrada na Modernidade não trouxe muita diferença para todos os pequenos brasileiros. O sonho de infância feliz não parece ter sido vivido pelas crianças operárias da cidade de São Paulo recém-industrializada (MOURA, 2000) ou das crianças trabalhadoras do nosso país (RIZZINI, 2000; ABREU, 2000). A forma como se constroem estas narrativas acerca da infância no país afasta a supremacia de características naturais para se compreender o processo de construção das diversas fases da vida a partir de uma perspectiva socio- histórica.

Ozella (2002) situa que há certa naturalização de uma concepção universalista de adolescente numa perspectiva psicologizante. A Psicologia tradicional negligencia a inserção histórica dos jovens. Adolescentes pertencentes a classes e grupos culturais distintos são analisados a partir de uma ótica universalizante. Ele destaca que “os estudos sobre adolescência são fundamentados em um único tipo de jovem, isto é: homem-branco-burguês-ocidental-racional” (OZELLA, 2002, p.19).

A adolescência deve ser compreendida como uma construção social com repercussões na subjetividade e no desenvolvimento dos indivíduos e não como um período natural do desenvolvimento. É um momento significado, interpretado e construído pelos sujeitos. O fato de existirem marcas no corpo que expressam essa fase da vida não pode ser utilizado como premissa e fortalecimento da perspectiva naturalizante.

Para a compreensão da adolescência numa perspectiva sócio-histórica Aguiar, Bock; Ozella (2003), destacam que é necessário não perder de vista o vínculo entre a desenvolvimento do homem e a sociedade. Além disso, existe uma emergência de se

“despatologizar” a noção do desenvolvimento humano, em especial a adolescência, re-construindo a compreensão desta e sua expressão social.

Uma breve incursão sobre a história da infância e adolescência permite identificar que a imagem do “menor”, termo designado a parcela empobrecida do país, foi sendo construída a partir de marcas sociais caracterizadas pelo estigma da exclusão. No período colonial e durante o Império eram utilizados os termos “expostos” e “enjeitados” para se referir à criança abandonada. Nesta época a institucionalização desta parcela da população ocorria na “Roda” e “Casa dos Expostos”, modelo de assistência com base na caridade religiosa. O mesmo tinha por objetivo regular/controlar os desvios de origem familiar.

Calil (2003), situa que a transição do trabalho escravo para o assalariado e o início do processo de industrialização acirraram e evidenciaram a desigualdade social brasileira. Estes acontecimentos trouxeram à tona problemas sociais de diversas ordens colocando-se em evidência, o que contribuiu para que a questão social se tornasse preocupação central na agenda pública brasileira, a exemplo da situação de abandono e miséria vivenciado por crianças e adolescentes do país. Conforme elucida Calil (2003, p. 140)

Uma das faces desta “questão social” era a situação de abandono, miséria e exclusão social de crianças e adolescentes, agravada pela promulgação da Lei do Ventre Livre e pela abolição da escravidão. Livres, mas sem direitos, os ex-escravos e seus descendentes formaram a primeira grande massa de brasileiros excluídos.

Neste contexto a Casa dos expostos passa a ser identificada como ineficaz como meio de institucionalização da infância empobrecida do país, levando juristas a cobrar do Estado ações mais eficazes para atender as crianças e adolescentes abandonados. Sob o discurso de garantia moral e material, a real intenção era o controle da criminalidade infantil e juvenil a fim de restaurar a ordem e paz social. A necessidade de instituições disciplinadoras, restauradoras da moral e bom costume, são pensadas, defendidas e construídas com o objetivo de reintegrar crianças e adolescentes ao convívio social. Sob a tônica da RPM, a normatização do atendimento à infância abandonada, por meio de instituições mantidas pelo Estado será central nos debates em torno da delinquência juvenil, o que envolverá saberes médicos, pedagógicos e morais. Serão construídos a partir deste momento discursos

de bases científicas e racionais na defesa da institucionalização total de adolescentes rotulados como desviantes.

Conforme situa Martha Abreu, padrões de honestidade e moralidade foram sendo formados no final do século XIX, expressos numa política jurídica difundida por médicos e educadores como uma “saudável vida familiar” (ABREU, 2015, p. 291). Neste contexto, à mulher é reservado o espaço privado, sendo responsável pelas atividades domésticas e pela educação dos filhos e filhas, era a base moral dessa família nuclear, formato reconhecido e legitimado pelo Estado. Havia a preocupação em incultir nos setores populares o modo de vida da classe média com seus valores e costumes na busca de sua moralização. As meninas que não atendessem a um padrão de normalidade expresso através das normas, costumes e moralidade, estavam perdidas, jogadas a própria sorte.

Os saberes constituintes do aparato normativo voltado, em especial, para a adolescência desde o final do século XIX e início do século XX, advém da Escola Positiva de Direito Penal, especialmente a medicina legal e higi ênica, a psiquiatria e a psicologia. Esta marca acompanhará o conjunto de perspectivas que justificam a ação do Estado sobre os/as adolescentes mais vulneráveis no Brasil.

5.2 O POSITIVISMO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS NO BRASIL: AS