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3.1. Desincorporação do poder e revolução democrática

Uma das maneiras de compreender a concepção democrática madura de Lefort é acompanhar seu trabalho de interpretação de alguns grandes filósofos do pensamento político moderno. Como se observa ao longo desta tesa, Lefort tem um modo de proceder bastante singular: seu pensamento se constrói numa densa rede de diálogos (ora explícitos, ora implícitos,), suas concepções se elaboram no interior da experiência de leitura que dedica a outros filósofos, de quem tira aprendizados ou toma distâncias. Nos capítulos precedentes, vimos como esse diálogo se estabeleceu com Marx e alguns autores da tradição marxistas e com Maquiavel. A intepretação que Lefort consagra a Maquiavel não se reduz a um trabalho de exegese, mas é elaborada em vista das questões do tempo presente que o confrontam. E, nesse sentido, Lefort encontra no pensador florentino um acesso à lógica de funcionamento da sociedade histórica, com base numa nova compreensão tanto da divisão social e do poder quanto do vínculo entre povo e liberdade. Por mais que os conceitos de divisão e poder, em chave maquiaveliana, formem a espinha dorsal da concepção madura de Lefort sobre a democracia, eles não são suficientes para caracterizar a singularidade da democracia enquanto formação social instituída num tempo preciso, que chamamos modernidade.

Entre o fim da década de 1970 e o início da de 80, Lefort começa a se interessar pelos autores clássicos do liberalismo político francês, como Guizot, Chateaubriand, Tocqueville e Constant, a quem passa a dedicar seminários e publicações importantes. Esses autores foram uma porta de entrada ao estudo do processo revolucionário que marcou a França no fim do século XVIII. Á época, os temas que interessaram a Lefort foram: a transição entre as formas de sociedade (aristocrática e democrática), os diferentes modos de sociabilidade nelas vigentes, o modo de funcionamento do poder em cada uma, a natureza da liberdade moderna, a natureza e os riscos da democracia e da soberania popular, a emergência do terror, dentre outros. Nessa nova frente de leitura a que se consagra, é nítido que a atenção de Lefort se volta de maneira mais especial à obra de

Alexis de Tocqueville. O diálogo que ele travou com o autor Da democracia na América se mostra fundamental para compreendermos o sentido que ele confere à dois conceitos centrais de seu pensamento de maturidade: a desincorporação do poder e a revolução

democrática.

A essa altura de sua trajetória, ou seja, nos anos 1980, Lefort já havia estabelecido o entendimento sobre o modo de funcionamento do poder totalitário, mas lhe faltava a outra baliza a partir da qual construir sua concepção democrática segundo a perspectiva do político. Essa baliza era, precisamente, a compreensão do modo de funcionamento do poder no Antigo Regime. Para compreender a originalidade da democracia, era preciso investigar e refletir sobre a instituição monárquica e, de modo mais amplo, sobre a oposição entre democracia e aristocracia enquanto formas de sociedade radicalmente distintas, sem perder de vista as ambiguidades e as ameaças que pesam sobre a democracia moderna, sobretudo, as novas formas de servidão que acompanham as novas formas de liberdade. Ninguém melhor do que Tocqueville para auxiliar nessa empreitada. Filósofo cuja vida e obra se situam na transição entre dois mundos – o Antigo Regime e o mundo pós Revolução Francesa –, Tocqueville se constituiu num marco importante para o pensamento lefortiano, tal como o próprio autor reconhece. No ensaio “A questão da democracia” (1983), lemos:

Tocqueville nos auxilia a decifrar a aventura da democracia moderna, incitando-nos a volver à sua fonte (...). Sua investigação nos é importante sob vários aspectos. Ele tem em mente a ideia de uma grande mutação histórica, ainda que as premissas dessa mutação tenham sido estabelecidas há muito tempo; tem em mente a ideia de uma dinâmica irreversível. Embora procure o princípio gerador da democracia no estado social – a igualdade de condições –, Tocqueville explora a mudança em todas as direções, interessa-se pelos liames sociais e pelas instituições políticas, pelo indivíduo, pelos mecanismos da opinião, pelas formas da sensibilidade e pelas formas de conhecimento, pela religião, direito, linguagem, literatura, história, etc. Essa exploração o induz a detectar as ambiguidades da revolução democrática em todos os domínios, a praticar uma espécie de escavação na carne do social. A cada momento de sua análise, é levado a desdobrar sua observação, a passar do anverso ao reverso do fenômeno, a desvelar a contrapartida do positivo – o que é sinal novo de liberdade – ou [a contrapartida] do negativo – o que é sinal novo de servidão258.

Partindo dessa apreciação geral, buscaremos indicar algumas contribuições que a experiência de leitura da obra de Tocqueville forneceu a Lefort. O primeiro ponto que retém a atenção do nosso autor é a maneira pela qual Tocqueville compreende os traços da democracia no interior de um quadro mais amplo sobre a gênese da modernidade, apreendida no movimento desencadeado pela revolução democrática. Extraindo da argumentação tocquevilliana a ideia de revolução democrática, importa a Lefort ressaltar a primazia do processo contra a definição estática de uma forma social; um processo que, caracterizado pelo excesso face ao instituído, chega a escapar à plena transparência e ao pleno controle dos agentes sociais259. A ideia de revolução democrática busca sinalizar o

movimento irresistível e irreversível que separa o antigo e o novo, revelando não apenas uma descontinuidade entre dois modos de temporalidade, mas uma descontinuidade entre duas humanidades opostas, que se iluminam mutuamente pelo contraste que advém da comparação entre a sociedade aristocrática e a sociedade democrática.

A fim de compreender o sentido dessa comparação, Lefort retraça os passos de Tocqueville em seu livro A democracia na América. Neste, lembra o pensador contemporâneo, a sociedade aristocrática é definida pelo princípio da permanência: “a ação dos homens, suas instituições e suas crenças se imprimem no elemento da imortalidade”260; por sua vez, o tempo é lento e faz com que as distâncias geracionais

sejam curtas. O modo de ser social é definido pelo princípio da associação: as relações sociais são modeladas localmente em comunidades particulares (no interior do feudo, da comuna, da corporação); são relações de natureza orgânica nas quais o aspecto social e o

259 Extraída deste quadro inicial de interpretação, a expressão “revolução democrática” apresenta um

sentido ainda mais preciso quando Lefort a emprega no interior de sua própria reflexão sobre a democracia moderna. Por um lado, é com seu auxílio que Lefort aprofunda a crítica a Marx, pois, a seu ver, o pensador alemão, dando excessiva prevalência à crítica social, teria ignorado os sentidos da revolução democrática. Uma revolução que se deixa apreender, por exemplo, na desintrincação das esferas do Poder, da Lei e do Saber, na legitimidade dos diferentes modos de existência, na distinção entre o público e o privado e na afirmação do indivíduo perante o foco da autoridade e dos depositários do poder. Por outro lado, Lefort é contundente em afirmar a insuficiência de “fazer da revolução democrática a obra de classes sociais”, não porque ela seja um processo objetivo alheio à ação humana, mas porque, a princípio, ela não pode ser (o que não significa que, de fato, ela não seja) inteiramente capturada ou domesticada por uma classe ou outra. O que Lefort busca realçar é o caráter processual da democracia para mostrar que ela excede os atores sociais, na medida em que ela inaugura uma nova experiência do mundo que comanda a própria dinâmica dos antagonismos de classe e sua luta por emancipação. Para Lefort, a lógica da expansão democrática não se apreende no nível empírico, mas apenas se desvela “no registro do simbólico”. Sustenta o filósofo: “eu me convenci que era insuficiente fazer da revolução democrática a obra de classes sociais, inaugurada pela burguesia, propagada pelo proletariado. Deve-se reconhecer que essa revolução lhes forneceu, igualmente, a condição de possibilidade de sua emancipação respectiva e comandou a dinâmica de seu antagonismo”. LEFORT, C. “Préface” (1979). In ECB, pp. 11-12.

aspecto político não se separam. Os laços sociais são firmes e bem urdidos, enquanto as posições sociais são rigorosamente hierarquizadas. Tudo isso gera no homem do mundo antigo uma disposição contra o ensimesmamento, ou seja, uma disposição a perceber o outro como aquele que está ligado a ele e, ao mesmo tempo, fora dele: o outro é imediatamente apreendido como aquele que está acima ou abaixo de si. A melhor imagem da sociedade aristocrática nos é dada pelo próprio Tocqueville, cujos termos Lefort reproduz literalmente: “a aristocracia fizera com todos os cidadãos uma longa cadeia que remontava do camponês ao rei; a democracia quebra a cadeia e põe de lado cada elo”261.

Por outro lado, o mundo moderno, no qual a sociedade democrática se afirma é este mundo que está “fadado à mudança; vive, sabe que vive e quer constantemente viver subvertendo tudo o que está dado”262, nota Lefort. Neste mundo, a percepção temporal se

modifica, o tempo acelera e se diferencia. Isso faz com que as gerações se distanciem e que uma mobilidade inédita se imprima nas relações sociais. Dentre tais mudanças, a mais importante é que a nova sociedade deixa de se organizar sob a imagem orgânica do corpo, de integrar imediatamente os homens em comunidades particulares, de inseri-los naturalmente em redes de dependência. Por conseguinte, uma vez que a sociedade deixa de fornecer aos homens as balizas simbólicas da diferenciação social, um lugar fixo na hierarquia e uma definição prévia de sua identidade, ou seja, uma vez que a sociedade passa a se definir pela igualdade de condições, libera-se, no entender de Lefort, “o espetáculo da dispersão dos indivíduos, outrora membros de um corpo (ou de múltiplos corpos), indivíduos iguais, como unidades independentes, pelo fato de nenhum deles ser, por princípio, superior ou inferior”263. Com essa mudança, a democracia faz aparecer a imagem da humanidade e permite que esses novos indivíduos, embora dispersos, se percebam como semelhantes, algo impossível numa sociedade em que a apreensão do outro é imediata e naturalmente dada pela métrica do alto ou do baixo, do superior ou do inferior.

Desse processo de desincorporação da sociedade e dos homens, surgem, portanto, os indivíduos dos tempos democráticos, dotados de um gosto natural pela independência, que se define, segundo as palavras de Tocqueville, como uma disposição “de seguir em

261 LEFORT, C. “Tocqueville: democracia e arte da escrita” (1992). In DEP, p. 60. 262 Ibid., Id., p. 58.

cada ação particular apenas sua vontade”. Tocqueville reconhece na afirmação dessa independência o núcleo da noção moderna e justa de liberdade, algo que, por um lado, se mostra conforme ao espírito das Luzes. Comentando a posição tocquevilliana, Lefort observa que essa independência “dá sinais de uma afirmação de si, [de uma] vontade de ajuizar e agir, emancipando-se de toda autoridade que pretenda se subtrair ao livre exame”264. Mas, por outro lado, é impossível esquecer que essa mesma independência

está umbilicalmente ligada à dispersão e ao isolamento: a democracia, no dizer de Tocqueville, “quebra a cadeia e põe de lado cada elo”. Por isso, quando o gosto pela independência proporciona ao indivíduo a ilusão de bastar a si mesmo, de depender apenas de si mesmo, o sujeito é precipitado, “à sua revelia, na dependência de uma potência impessoal, a massa, a opinião. Por isso, a liberdade converte-se em servidão”265

– escreve Lefort, refazendo a conclusão tocquevilliana.

A esta altura de sua interpretação, Lefort aponta a preocupação central de Tocqueville, a saber, a problemática do surgimento de uma nova forma de poder ligada à democracia: o poder social. Para se constituir, esse poder depende de uma relação inversamente proporcional: num polo, o isolamento e o rebaixamento da potência dos indivíduos, e, noutro, a formação de um ente abstrato e superior denominado Sociedade. Observa o pensador contemporâneo:

quando as condições se igualam, quando os homens se reconhecem como semelhantes, a sociedade desenha-se plenamente e ganha uma espécie de realidade sui generis (...); a sociedade eleva-se acima dos homens, ao passo que os laços pessoais que eles mantinham se desfazem; veem-se todos serem subordinados a esse “ser imenso” 266.

O poder social se afirma, portanto, nesse quiasma entre um processo ascendente – a sociedade emergindo do isolamento e da impotência individuais – e um processo descendente – o poder impondo-se como representante (e também produtor) da sociedade. Ora, enfatiza Lefort, a preocupação de Tocqueville é justamente com a ameaça contida na “representação de um direito absoluto da sociedade”267, é com o “ofuscamento dos

264 LEFORT, C. “Tocqueville: democracia e arte da escrita” (1992). In DEP, p.65. 265 Ibid., Id., p. 66.

266 Ibid., Id., p. 61.

homens face à imagem da sociedade confundida com o poder”268. De acordo com essa perspectiva, torna-se mais claro por que Tocqueville confere ao processo do individualismo tamanha importância em sua análise, retendo-o, com todas as suas ambiguidades, como o traço principal da transição entre o mundo antigo ao moderno: uma vez que o polo positivo do surgimento do indivíduo é inseparável do seu polo negativo, a possibilidade permanece sempre aberta – observa Lefort – de que o poder social se precipite sobre esse “vazio escavado pelo retraimento de cada um para a sua própria esfera”269.

Note-se bem: o movimento que começou opondo sociedade aristocrática à sociedade democrática para ressaltar as ambiguidades da igualdade de condições e, em particular, a combinação entre independência e isolamento individuais, trouxe à luz o outro lado da moeda, ou seja, o processo concomitante de formação da Sociedade, enquanto grande indivíduo detentor de uma potência e de uma autoridade superiores. Entretanto, o mais importante nesse movimento da análise vem a seguir, quando Tocqueville avança a compreensão do poder social, não se satisfazendo em compreendê- lo apenas em relação ao surgimento do indivíduo e da sociedade, mas o demarcando também em oposição ao poder monárquico. É isto que a interpretação lefortiana põe em relevo ao salientar que, diferentemente do poder monárquico, o poder social para Tocqueville mostra-se

separado da pessoa do príncipe, emancipado da instância transcendente que fazia deste último o fiador da ordem e da permanência do corpo político, extraído da duração nutriente que o tornava quase natural, (...) aparece como sendo o poder que a sociedade exerce sobre si mesma. (...). Produto da sociedade, [o poder social] tem simultaneamente a vocação de produzi-la; as fronteiras das experiências pessoais lhe são desconhecidas, pois apresenta-se como o agente de todos270.

Para Lefort, interessa reter que, à diferença de um poder visível e localizável na figura do monarca, Tocqueville caracteriza o poder social que se forma com a democracia como “difuso, invisível, igualmente interior e exterior aos indivíduos, igualmente gerado e experimentado por eles, igualmente imaginário e real”271. “Poder social” é o nome dado 268 LEFORT, C. “Reversibilidade: liberdade política e liberdade do indivíduo” (1982). In PP, p. 207. 269 Ibid., Id., pp. 204-205.

270 Ibid., Id., p. 199. 271 Ibid., Id., p. 206.

ao processo pelo qual a sociedade se investe de uma autoridade superior, vindo se atualizar, a um só tempo, na opinião, na lei e no poder de Estado: na opinião, o poder social se afirma enquanto unanimidade; na lei, enquanto uniformidade; no poder de Estado enquanto regulamentação de todas as dimensões e necessidades da vida dos indivíduos272.

Recordemos os exemplos mais conhecidos. No caso da opinião, importa notar que, não havendo mais dependência de um indivíduo a outro e tendo sido recusadas as figuras clássicas da autoridade (responsáveis pela enunciação dos saberes e normas), a sociedade democrática se vê na dependência de um outro tipo de autoridade, capaz de se colocar acima dos indivíduos e, ao mesmo tempo, de reuni-los em torno de algumas ideias e valores comuns. Na medida em que os indivíduos democráticos se representam como iguais e semelhantes, a autoridade da opinião tenderá a se deslocar de um indivíduo, de um grupo, de uma classe, em suma, de uma figura identificável, para se depositar na massa, na opinião, no julgamento público, cuja autoridade é tanto mais ampla e aceita quanto mais invisível permanece. O lema da Aufklärung sofreria, portanto, uma reviravolta: depois de reivindicar o livre uso do entendimento, o indivíduo moderno tornar-se-ia ainda menor e mais submisso frente a um poder anônimo e impessoal impresso no registro da opinião pública273.

Mas, sem dúvida, o que mais continua a impressionar os leitores de Tocqueville é o seu famoso quadro da atuação do poder social no seio de um possível Estado tutelar, construído sobre um amplo processo de centralização administrativa: nesse contexto, o poder que o Estado exerce, partindo do alto, mostra-se de acordo com o movimento que vem de baixo, pois, como diz Tocqueville, “os povos democráticos odeiam com frequência os depositários do poder central, mas amam esse mesmo poder”. Isto ocorre na medida em que o poder central vem socorrê-los de seu isolamento, de sua impotência e de sua pequenez, instaurando uma submissão que prescinde da figura de um senhor, para se exercer tão somente em nome do povo. Ainda aqui, observa Lefort, o ponto de partida de Tocqueville continua o mesmo: é do fenômeno do isolamento dos indivíduos que se eleva acima deles “um poder imenso e tutelar”, um “poder absoluto, meticuloso, 272 Cf. LEFORT, C. “Os direitos do homem e o Estado-Providência” (1984). In PP, pp. 43-44.

273 Sobre as tensões e contradições que, na modernidade, permeiam as relações entre liberdade de

pensamento, submissão à opinião e imbecilidade da razão humana, cf. LEFORT, C. “La menace qui pèse sur la pensée” (1997). In LTP, pp. 907-913.

regular, previdente e manso”274, cobrindo toda a superfície social com uma “rede de

regras complicadas, minuciosas e uniformes”275, ao mesmo tempo em que se encarrega de cuidar da vida dos homens, sob todos os seus aspectos, a ponto de “destituir pouco a pouco cada cidadão até mesmo do uso de si”. Essa representação de um poder social “único, simples, providencial, criador”, atuante no âmbito do Estado, habita, ao mesmo tempo, a imaginação daqueles que exercem o poder e a imaginação daqueles que lhe estão submetidos. Segundo Tocqueville, é a partir dessa similitude entre governantes e governados que os povos democráticos

imaginam um poder único, tutelar, todo-poderoso, mas eleito pelos cidadãos, [e] combinam a centralização e a soberania do povo (...). Cada indivíduo padece quando é posto sob grilhões porque vê que não é um homem, nem uma classe, mas o próprio povo quem segura a ponta do grilhão. Nesse sistema, os cidadãos saem por um momento da dependência para indicar seu senhor, e retornam a ela276.

Poderíamos aqui destacar vários pontos da análise de Tocqueville que, de modo incontestável, instruíram e foram incorporados à concepção lefortiana da democracia, por exemplo: a ideia de revolução democrática, a abordagem da democracia enquanto forma de sociedade, o senso das ambiguidades e dos riscos inerentes à democracia, a reversibilidade entre liberdade política e liberdade individual, etc. Mas o caminho que buscamos construir visa preparar a cena de um desacordo entre esses pensadores, de modo a iluminar, por contraste, suas visões sobre a democracia. Aquilo que certa vez Lefort dissera sobre Marx (a saber: sua obra é o “lugar de uma interrogação que vai muito além das conclusões às quais ela parece chegar”) vale igualmente para Tocqueville. As contribuições desse pensador para a reflexão lefortiana podem ser apreendidas para além do acordo ou da convergência de suas visões, mas também de um modo peculiar, por meio do desacordo. Em outras palavras, o contato com as análises de Tocqueville gerou em Lefort uma interrogação própria acerca da democracia moderna, cujo desdobramento o levou a tomar distância do quadro de reflexão tocquevilliano, a identificar os seus limites, em suma, a modificar os seus princípios e conclusões.

274 TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. Apud. LEFORT, C. “A questão da democracia” (1983).

In PP, 1991, p. 42.

275 Ibid., Id., p. 42.

276 TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. Apud. LEFORT, C. “Da igualdade à liberdade” (1982).

O ponto central da discordância – e cuja repercussão será decisiva para a concepção democrática lefortiana – está na maneira como Lefort e Tocqueville leem o

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