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4.1. A ambígua relação entre democracia e liberalismo

A reflexão lefortiana sobre a democracia responde a uma exigência posta pela história: “perante a experiência do totalitarismo, repensar a natureza da democracia. Não reabilitar a democracia burguesa, mas reabrir a questão da democracia, pois ela não foi resolvida pela crítica marxista das liberdades formais”356. Estas palavras exprimem de maneira lapidar o projeto filosófico ao qual Lefort se consagra a partir do final dos anos 1970. A retomada da “questão da democracia” é um desdobramento da crítica que o pensador elaborou sobre o totalitarismo ao longo das décadas anteriores e cuja radicalização não resultou apenas no abandono de “antigas esperanças” fundadas na referência ao pensamento de Marx, mas ensejou a abertura de um novo campo de reflexão capaz de ressignificar o entendimento da democracia moderna.

Tendo em vista o estado do campo intelectual da época, a postura intelectual de Lefort se mostra bastante singular: o filósofo tira da crítica do totalitarismo uma consequência mais radical e profícua em comparação ao que fizeram os seus contemporâneos que, de um modo ou de outro, também se lançaram a tal tarefa357. Para Lefort, ainda que o totalitarismo seja a experiência limite do nosso tempo, não se deve concluir disso o esgotamento de todas as categorias do pensamento político ocidental ou a aceitação da realidade política em seu status quo358. Tomando outra direção, a reflexão lefortiana reconhece na experiência do totalitarismo um imperativo maior, a saber, a necessidade de investigar a gênese da sociedade política moderna, pois apenas um tal

356 LEFORT, C. “Repenser le politique” (1978). In LTP, p. 366.

357 Em várias ocasiões, Lefort critica os seus contemporâneos que, assim como ele, fizeram a crítica do

totalitarismo, mas não deram o passo em direção ao reexame da democracia moderna. Com esse comentário ele visa certamente pensadores como Raymond Aron e Hannah Arendt, mas também outros nomes menos talentosos de sua época, por exemplo, os autotintulados nouveaux philosophes [André Glucksmann, Bernard Henri-Lévy Christian Jambet, Guy Lardreau, etc.] que extraíram da crítica do totalitarismo nada mais do que um “antimarxismo” ferrenho, traduzido ora numa apologia do neoliberalismo ora num retorno a discussões religiosas.

358 “A partir de 1958, data de minha ruptura com Socialisme ou Barbarie, abandonei definitivamente as

ilusões do militantismo e coloquei em questão a ideia mesma de revolução. Eis o que não implica nenhuma aceitação da ordem estabelecida”. LEFORT, C. “Repenser la démocratie” (1978). In LTP, p. 345.

reexame permite lidar com o enigma da instituição da sociedade democrática, na qual coabitam novas possibilidades de liberdade e novos riscos de servidão. Tal reexame é um procedimento necessário para romper, ao mesmo tempo, com o idealismo democrático (a representação da democracia como o bom regime) e com a representação forjada pelas classes dominantes. Portanto, além de um “deciframento”, essa atitude significa uma

disputa pelo sentido da democracia moderna.

O totalitarismo é o fenômeno mais importante do nosso tempo. Ele nos põe em condições de repensar o político, em ruptura com a problemática marxista especialmente. [...] Seria preciso, sobretudo, se debruçar sobre a história da democracia, decifrar seu sentido para além das instituições burguesas nas quais ela se define, em suma, arrancá-la da representação que a classe dominante forja a seu respeito359.

Movido por tal urgência, o pensador sabe, entretanto, que o lugar para o exercício dessa reflexão não está dado no campo intelectual de sua época. Por isso, reabrir a questão da democracia é uma decisão filosófica que vai de par com a criação de uma nova perspectiva de reflexão, cujo desafio consiste em ultrapassar a visão marxista sem, no entanto, reabilitar a “democracia burguesa”. Expresso nesses termos, o projeto filosófico lefortiano se esforça para abrir uma perspectiva de reflexão sobre a democracia que se quer à distância dos quadros de referência tradicionalmente oferecidos pelo marxismo e pelo liberalismo360.

Os sinais da crítica lefortiana a essas duas perspectivas teóricas despontam em seu Prefácio de 1979 aos Éléments d’une critique de la bureaucratie. Na visão de Lefort, os autores liberais tendem a reduzir a democracia a um conjunto de instituições historicamente determinadas, a uma definição estrita do Estado de direito ou a um conjunto de procedimentos regulares361; e, sobretudo, eles tendem a “mascarar a relação

359 LEFORT, C. “Repenser la démocratie” (1978). In LTP, p. 346.

360 Evidentemente, o quadro que Lefort esboça faz parte de uma estratégia argumentativa e serve para situar

sua própria reflexão. É nítida sua insuficiência para dar conta das nuances e complexidades envolvendo as relações entre Marx, o marxismo e a democracia. De nossa parte, não entraremos nessa intrincada discussão, pois nosso objetivo é avaliar a maneira como Lefort define o seu próprio projeto filosófico; de nossa parte, buscaremos ponderar se esse projeto resiste (e como resiste) aos desafios postos à nossa experiência histórica contemporânea marcada pelo fato do neoliberalismo. Indicando apenas uma porta de entrada para essa discussão, remetemos o leitor ao ensaio de Marilena Chaui, “Marx e a democracia”. In FIGUEIREDO, E.; CERQUEIRA FILHO, G; KONDER, L (orgs.). Por que Marx?. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, pp. 257-292.

361 Embora Lefort não aponte nenhum autor em particular que corresponda a essa vertente, poderíamos

que a democracia mantém com a divisão social, ao passo que convém colocá-la no centro da reflexão política”362. Quanto à versão marxista (ou àquilo que seria sua vulgata),

também é preciso afastá-la, na medida em que ela “reduz a democracia a um sistema forjado para manter, legitimar (e mascarar) relações sociais que se enraízam no modo de produção – este requerendo que a força de trabalho seja separada da propriedade dos meios de produção e que se apresente livremente no mercado”363.

O tom assertivo presente na autodefinição desse projeto filosófico contrasta, no entanto, com o caráter genérico de algumas afirmações avançadas pelo nosso autor. No que se refere às relações de Lefort com o marxismo, cuja crítica já tivemos oportunidade de explicitar nesta tese, os motivos que levam ao seu abandono são mais facilmente compreensíveis, na medida em que o filósofo faz deles matéria explícita de suas reelaborações teóricas. Em compensação, a visão de Lefort sobre o liberalismo é bastante ambígua: de um lado, ao se referir ao liberalismo, sobretudo em sua forma adjetivada (por exemplo, uma visão liberal, o pensamento liberal), Lefort muitas vezes raciocina no registro da generalidade, sem apontar autores ou tradições de maneira explícita e sem precisar o sentido do termo liberal (político, econômico, cultural, etc.) com o qual trabalha; por outro lado, ainda que busque se afastar de uma “visão liberal” da democracia, sabe-se que Lefort passa a cultivar um vivo interesse pelas grandes figuras do liberalismo francês, a quem dedica estudos e ensaios cada vez mais recorrentes a partir dos anos 1980. Esse misto de crítica e interesse marca o vínculo de Lefort com o liberalismo e embaralha a compreensão a seu respeito, exigindo do intérprete a tarefa de organizar o quadro dessa relação para, gradativamente, iluminar suas nuances e significados.

Comecemos, portanto, circunscrevendo os momentos em que o liberalismo é alvo da crítica inequívoca do filósofo. Numa entrevista concedida em 1988, Lefort opera uma distinção entre o que seria um pensamento democrático (em favor do qual ele próprio se coloca) e um pensamento liberal. Em suas palavras:

[...] o pensamento liberal é sempre tentado a circunscrever no interior da sociedade real a “verdadeira sociedade” (...), [uma] sociedade

contra a qual o pensador francês busca se demarcar. Cf. BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa

das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

362 LEFORT, C. “Préface” (1979). In ECB, p. 11.

composta por homens que, exclusivamente, “têm direito à...” (ou seja, a ser sujeitos sociais); [o pensamento liberal] lança para fora aqueles que outrora eram chamados bárbaros, homens pobres, incultos, aqueles que não estão em condições e que por isso mesmo não estão no direito de participar dos debates públicos, de cobiçar as honras públicas364.

Diante do exposto, fica claro que a diferenciação entre essas duas maneiras de pensar a política (em particular a democracia) é posta em cena para mostrar uma incompatibilidade de princípios. Pensamento do limite prévio, do status naturalizado, do direito adquirido, o pensamento liberal se distingue do pensamento democrático na medida em que este “não pode colocar tais freios à mudança: ele é necessariamente feito para acolher novos direitos, novas reivindicações; não pode manter uma oposição de princípio entre ‘os que têm direito’ e os outros”365. Nesse sentido, o pensamento liberal

corresponde ao que entendemos mais comumente como discurso conservador ou como

ideologia da competência, cuja finalidade é pôr obstáculos à extensão da cidadania e do

acesso aos direitos nas democracias de massa366. Tendo em vista esse quadro, é possível

sustentar que a visão lefortiana da democracia se constrói indubitavelmente contra o pensamento liberal, na medida em que Lefort privilegia a ação imprevisível e criativa dos grupos sociais, constituídos, no mais das vezes, pelos excluídos, pelas minorias ou minorizados. Para o filósofo, a democracia é sobretudo obra dos “sem parte” – para falar nos termos de Rancière –, daqueles que se mostram capazes de forçar sua entrada na cena política, disputar a legitimidade de uma questão e fazer reconhecer um direito e/ou um modo de vida367.

364 LEFORT, C. “La pensée du politique” (1988). In LTP, p. 606 365 Ibid., Id., p. 606.

366 Tendo em vista o debate teórico da época, é muito provável que Lefort tenha por alvo todas as variáveis

de uma concepção elitista da democracia, que encontrou em Schumpeter um dos seus mais notáveis fundadores (vide Capitalism, Socialism and Democracy de 1942). Esta situação intelectual é muito bem descrita por Moses Finley em seu livro A invenção da política, obra que se coloca claramente contra esse tipo de interpretação amplamente difundida à época e que manifesta certa afinidade com algumas noções lefortianas, dentre elas, a de “invenção”.

367 Numa entrevista de 1978, ao caracterizar a democracia como um movimento de transformação do

instituído, Lefort usa como contraexemplo a postura de Tocqueville, lembrando “seu bloqueio frente à Revolução de 1848 e, de modo geral, seu bloqueio frente ao socialismo e a toda reivindicação que nasce da classe operária, como se pudéssemos de alguma forma circunscrever a democracia à ‘boa sociedade’, construindo um dique contra as forças antissociais. O representante do antissocial, para Tocqueville, é o proletário. (...) Ora, o problema é que não há navalha [cran d’arrêt] para a democracia, pois, em último caso, não há desigualdade instituída, materializada, que seja legitimável. A partir desse momento, a democracia é constantemente trabalhada por um movimento que mobiliza, contra as desigualdades, camadas sociais oprimidas”. LEFORT, C. “Aperçu d’un itinéraire: entretien avec Pierre Rosanvallon et

A distância que Lefort toma em relação ao liberalismo também se apreende em mais três aspectos fundamentais, que dizem respeito ao lugar do indivíduo, da divisão

social e do Estado em sua reflexão política.

Como vimos no capítulo precedente, Lefort é um crítico da representação liberal que reduz os direitos do homem ao estatuto de direitos do indivíduo. Vale frisar que esse posicionamento é indicativo de como o filósofo concebe as relações entre indivíduo e sociedade. Tanto em sua reflexão mais propriamente política quanto em seu comentário à antropologia cultural (por exemplo, sua análise da obra de Kardiner368), encontramos muitos argumentos contra a posição teórica que toma o indivíduo como o elemento primeiro e fundador da ordem social. No âmbito da reflexão sobre a democracia, é nítido o esforço de Lefort para pensar os direitos e as liberdades não como pertencentes ao indivíduo mas como próprios do espaço democrático, espaço constituído por relações sociais das quais os indivíduos são ao mesmo tempo os instigadores e o resultado. Trata- se, sobretudo, de um espaço cujo alargamento é impossível deter uma vez contestados os princípios naturais de classificação entre os homens. É diante desse processo que se mostra a resistência do pensamento liberal, em sua tentativa de circunscrever a “boa sociedade” no interior da sociedade e preservar direitos a uma categoria exclusiva de homens que se distinguem por “honras, riquezas e luzes”. Ora, diferentemente das sociedades de distinções sociais petrificadas, na democracia moderna

são plenamente reconhecidas a mobilidade das condições, a circulação das pessoas, dos bens, das opiniões; é estabelecida uma comunicação de princípio de todos com todos. Nesse novo espaço, as relações não se constroem somente a partir dos indivíduos: os indivíduos – suas necessidades, seus gostos, suas crenças, suas representações de si mesmos – se transformam na rede de relações que os liga, eles se definem em consequência de sua participação num mundo comum. Mais: eles são incitados a se situar nele, a traçar seu lugar num espaço cuja ordem não é mais pré-estabelecida369.

Para além do lugar do indivíduo, Lefort se opõe ao pensamento liberal sob outro aspecto: a seu ver, os pensadores liberais não colocam no centro da reflexão sobre a

Patrick Viveret” (1978). In LTP, p. 353. Sobre a postura política de Tocqueville frente aos acontecimentos de 1848, vale consultar os seus Souvenirs, assim como o Prefácio que Lefort dedicou a esse livro.

368 Cf. os artigos que Lefort lhe dedicou: “A ideia de ‘personalidade de base’ (1951). In FH, pp 79-89. E

“Ambiguidades da antropologia cultural: introdução à obra de Abram Kardiner” (1969). In FH, pp. 91-123.

democracia a divisão social – o que é muito diferente da simples aceitação do conflito370. Em que consiste a diferença? Assumir a divisão social enquanto originária é assumir que a sociedade é constituída por uma fratura para a qual não há conserto Isto porque, como vimos em sua interpretação de Maquiavel, Lefort concebe essa fratura como uma clivagem no interior do desejo, clivagem que se manifesta na contradição entre o desejo de comandar e oprimir e o desejo de não ser comandado nem oprimido. Tomando apoio em Maquiavel, a radicalidade da reflexão lefortiana consiste em fazer dessa cisão a fonte de onde é possível jorrar o desejo popular de liberdade e a sua aspiração à efetivação de universais concretos (leis e direitos). Assumir o caráter originário da divisão é, portanto, uma postura teórica radicalmente diferente daquela que se limita a aceitar o conflito enquanto simples expressão das diferenças.

Quanto ao Estado, Lefort identifica na maneira liberal de pensar essa instituição um pressuposto comum ao ponto de vista marxista: ambos concedem a esse órgão uma posição de transcendência em relação à sociedade. Entre os liberais, a transcendência se observa na representação do Estado como um árbitro acima dos conflitos; entre os marxistas, ela é apreendida na compreensão do Estado como instância da ilusão política, como instrumento de dominação política da classe burguesa.

Embora Lefort não tenha feito do Estado um objeto privilegiado de sua reflexão política, é possível situar sua visão como equidistante de ambas representações. Para Lefort, a instituição estatal é uma estrutura burocrática de administração, que mantém com a sociedade uma relação de mútua determinação: “a um só tempo, o Estado é distinto da sociedade civil, é moldado por ela, e molda-a”371. Além de recusar o ponto de vista da transcendência, Lefort enfatiza que o Estado, sendo uma instituição moderna, é perpassado por duas lógicas diferentes: a lógica burocrática e a lógica do poder democrático – portanto, ele é necessariamente atingido pela operação de negatividade372. Isso significa dizer que, enquanto instância burocrática, a tendência do Estado é compartimentar, centralizar, gerenciar cada vez mais o detalhe da vida social. Desse ângulo, poderíamos dizer que Lefort acolhe em certa medida o argumento de Tocqueville,

370 “Minha preferência é pelo termo divisão, mais do que pelo [termo] conflito, mesmo que a divisão sempre

seja fonte de conflitos”. LEFORT, C. “La dissolution de repères et l’enjeu démocratique” (1986). In LTP, p. 562.

371 LEFORT, C. “Os direitos do homem e o Estado-Providência” (1984). In PP, p. 40.

que vislumbra no advento da democracia moderna a forte tendência de formação de um Estado de natureza tutelar. Além disso, numa referência implícita a Clastres, Lefort chega a afirmar que, devido aos imperativos de organização e do encargo dos assuntos públicos, a democracia é uma sociedade para o Estado, voltada cada vez mais para o Estado – e isto de maneira irreversível.

No entanto, a presença incontornável do Estado na democracia moderna não faz dele uma instância fora do controle e da possibilidade de transformação. Justamente por ser permeado pela operação de negatividade, o Estado não pode se reduzir às figuras de seus mandatários ou de seus burocratas, mas se mostra exposto ao movimento que emerge da sociedade, o que contraria sua pretensão de agir como ator exclusivo na cena política. Por mais que detenha o monopólio legítimo da força, o Estado não detém o princípio de sua própria legitimidade, e, nesse sentido, ele se encontra submetido à sanção pública, obrigado a compor com as reivindicações sociais e a agir em conformidade ao Direito; do contrário, o sentido da obrigação social é posto em causa, abrindo caminho para a sua ruptura. Em suma, na democracia é preciso tomar o Estado como uma instituição enraizada na divisão social, uma instituição em disputa, sem perder de vista o ensinamento maquiaveliano, válido também para a compreensão do Estado, a saber: todo poder é e sempre será à demi mauvais.

Se aceitarmos o esquema proposto, não é difícil distinguir o pensamento democrático lefortiano de um “pensamento liberal padrão”, caracterizado grosso modo pelo lugar conferido ao indivíduo, à divisão social e ao Estado. No entanto, podemos nos contentar com esse esquema e nos limitar a confrontar o pensamento lefortiano com os princípios básicos de uma visão liberal sobre a política? Ainda que instrutiva, tal abordagem não nos parece suficiente. Para fazer jus à complexidade da questão que nos ocupa, é preciso apreender as relações de Lefort com o liberalismo sob outro ângulo. Da crítica à visão liberal sobre a democracia, tomada em sua generalidade, é necessário passar às relações entre democracia e liberalismo numa perspectiva mais específica, para que se iluminem os pontos de afinidade e de choque entre o liberalismo enquanto movimento intelectual e a democracia moderna enquanto movimento histórico.

Essa problemática é especialmente tratada em ensaios mais tardios, publicados nos anos 1990, dentre eles “Liberalismo e democracia” (1994). Atentar à sua inscrição histórica é fundamental para a compreensão do tipo de análise e ajuizamento que Lefort

elabora nesse escrito. Assim como em outro ensaio publicado no mesmo ano, “Pós- comunismo e liberalismo”, a reflexão sobre esse tema está inserida numa conjuntura histórica marcada por fenômenos como a crise das democracias populares do Leste Europeu e a queda do Muro de Berlim, ou seja, pelo recente colapso da URSS. Por mais que as experiências dos governos de Thatcher e Reagan já tenham suscitado fortes críticas a seu respeito, o liberalismo é uma concepção política e econômica que volta a desfrutar de prestígio, sobretudo após a derrocada do comunismo.

Recobrindo tradicionalmente uma multiplicidade de sentidos, o termo liberalismo se encontra enredado numa trama de acepções ainda mais intricada no começo dos anos 1990 em razão da efervescência do momento histórico. Ainda que a revalorização do liberalismo na França tenha se manifestado desde a década de 1970, é sob o impacto do desmoronamento do bloco soviético que Lefort entra nesse campo de discussão, buscando organizar suas linhas interpretativas e demarcar sua própria posição. Assim, além de lembrar as múltiplas acepções que o termo recobre (no campo filosófico, econômico, político, cultural, etc.) e indicar as principais inflexões que a tradição liberal sofreu ao longo do tempo, Lefort se dá por tarefa principal compreender de que maneira os princípios do liberalismo e da democracia, ainda que diferentes e muitas vezes opostos, puderam se vincular, conferindo tamanha força e evidência à expressão democracia

liberal.

Para construir esse entendimento, Lefort começa desdobrando a interrogação lançada no início do ensaio: “a que nos referimos quando dizemos que o desmoronamento do comunismo marcou a vitória do liberalismo? Trata-se de afirmar a vitória do modelo da economia de mercado ou de um tipo de sociedade em que se reconhecem e asseguram

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