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CAPÍTULO 4 MANUAL DE ANÁLISE LÉXICA E SINTÁTICA

4.1 Advertência

No Manual de Análise Léxica e Sintática, tanto na primeira edição quanto na quinta (1919 e 1940, respectivamente), o autor faz uma Advertência ao leitor, antes de expor os assuntos. Nelas, há uma série de pistas que nos permitem deduzir as decisões sobre qual teoria adotar ou qual maneira de ensinar a língua portuguesa.

50 Entre mais de trinta obras publicadas no período de 1891 a 1942, Carlos Góes produziu: Método de Análise (Léxica e Lógica), em 1912; Gramática Expositiva Primária, em 1919; Dicionário de Afixos, em 1913;

Figura 9. Advertência da 1ª edição (1919)

Fonte: Oiticica (1919:5)

Figura 10. Advertência da 5ª edição (1940)

Fonte: Oiticica (1940:7-8)

Na primeira edição, a advertência refere-se não só à posição gramatical assumida pelo autor – sistematizar os fatos da língua, introduzindo inovações de ordem classificatória e terminológica, situando-se no plano sincrônico (uma vez que descreve fenômenos da língua) e diacrônico (adotando o método histórico-comparativo) – como também aponta para os modelos utilizados em sua construção. São a praticidade e a utilidade os aspectos mais importantes a serem considerados. Quando o autor afirma que “os exercícios de análise portuguesa têm-se limitado à análise taxeonômica e sintática, eriçando-se esta de futilidades” (OITICICA, 1919:5), já expõe a sua intenção: construir um manual prático, sem “futilidades”. Essa praticidade, entretanto, não é uma escolha de um gênio, mas a de um intelectual que

pretende mudar as práticas recorrentes, primeiro pelo livro ser escrito para crianças deveria ser de fácil aprendizagem, segundo, talvez, porque fosse uma das formas de colocar em pauta as ideias propostas pelos pedagogos considerados anarquistas, como veremos mais adiante.

Outra crítica feita pelo autor ao ensino da sintaxe nas escolas diz respeito aos “absurdos” por causa dos “desprezos de particularidades essenciais, mormente das construções irregulares, ou melhor, ilógicas”51. (OITICICA, 1919:5). Ao longo de sua exposição, o autor chamará a atenção do público-leitor para esses absurdos e para possíveis soluções.

Na advertência da primeira versão Oiticica declara que a solução está em ensinar a fonologia e a morfologia52 (a sintaxe só será apontada na advertência da quinta edição), o que não significa que o autor não a aborde na primeira edição. Admite que sem a fonologia e sem a morfologia não há como se ter gramática, pois acredita que são por meio desses aspectos, que a língua se apresenta viva, apresentando seus processos e tendências. Mas, qual a concepção de língua que o autor defendia? Não há, explicitamente, uma definição. Ao usar o termo “viva” em “...donde ressai viva a língua em seus processos...” (OITICICA, 1919:5), porém, e considerando o momento histórico no qual está inserida a obra, é possível acreditar que ele era um adepto das ideias naturalistas, de que a língua era um organismo vivo que nascia, se desenvolvia e morria.

O autor acreditava que ainda não se tinha feito nada, até aquele momento, para despertar o “gosto da morfologia nas escolas”. O Manual, então, teria a incumbência de não só alargar “os estudos descurados, completando a taxionomia, simplificando a nomenclatura da análise sintática, desenvolvendo (...) tudo quanto logicamente se deve desenvolver”, como também explicar “as construções irregulares tão comuns e tão embaraçantes”. (OITICICA, 1919:5). Esse era, portanto, o objetivo a que se propunha o autor na consecução de sua obra.

Apesar de reconhecer alguns aspectos ilógicos nas explicações dos fatos gramaticais, Oiticica (OITICICA, 1919:5;) pondera: “Mantemos (...) na própria taxionomia, a mesma classificação velhíssima das partes do discurso, quadro insuficiente para a caracterização das palavras”. Essa ponderação está relacionada, talvez, ao fato de ainda existirem discussões entre gramáticos e filólogos acerca das diversas classificações da palavra. A fixação da nomenclatura só ocorreria 40 anos depois, com a instauração da comissão para a elaboração

51 Ver capítulo quatro.

52 A sintaxe não aparece na advertência da primeira edição, mas é abordada na obra da mesma forma que é

da Nomenclatura Gramatical Brasileira, a NGB53. Oiticica, portanto, fazia parte do grupo que discutia qual a melhor maneira de classificar ou tipificar as palavras que constituam o léxico brasileiro. Apesar de reconhecer a “insuficiência” dos quadros para caracterizar as palavras, ele preferiu manter as mesmas designações usadas desde a gramática grega – que as realiza por meio da teoria das partes do discurso, em oito classes ou categorias54: substantivo, adjetivo, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição, herança da gramática grega e latina:

As oito classes remontam a Dionísio e Apolônio Díscolo (...), chegam a Prisciano que exclui o artigo, já que o latim não possuía e inclui a interjeição. (FÁVERO, 1996:173)

Esses conceitos foram também observados em Darmesteter (1930):

La théoria des parties du discours nous vient des grammairiens du XVI et du XVII siècles, qui em reçurent les príncipes des grammairiens du moyen âge, héritiers des Latins lesquels s’étaient eux-mêmes inspires des Grecs. (DARMESTETER, 1930:1 – Dexième Partie)55

Essa divisão era comum entre a maioria dos gramáticos brasileiros, até a sua adoção e fixação pela NGB em dez categorias gramaticais, proposta similar apresentada por Zambaldi (1905) na Itália:

La parole come parti del discurso si distinguono nelle classi seguenti: articolo, nomi substantivi, nomi aggettivi, numerali,pronome, verbi, avverbi, preposizioni, congiunzioni, interiezioni (...)56 (ZAMBALDI, 1905:9)

Na sequência, Oiticica mostra-se humilde ao pedir aos professores o “favor de me assinalarem erros, opôrem francamente suas objeções, levantarem dúvidas, fornecerem quaisquér trechos complicados ou frases indeslindáveis” (OITICICA, 1919:5). Isso era muito

53 Para a elaboração da NGB, as normas de trabalho prescritas foram: I- as deliberações serão tomadas pelo voto

da maioria; II- a escolha de cada um dos nomes se fará depois de realizado o levantamento das várias designações correntes nas obras de autores nacionais consagrados; III- tal seleção atenderá a tríplice aspecto: a) a exatidão científica dos termos; b) a sua vulgarização internacional; c) a sua tradição na vida escolar brasileira. IV- eliminar-se-ão as denominações múltiplas, optando-se por aquela que, além de mais simples, for de uso mais geral. (CHEDIAK, 1960:11).

54 Na quinta edição, acrescenta ao quadro da taxionomia as palavras sintéticas e intensivas.

55 A teoria das partes do discurso nos vem dos gramáticos dos séculos XVI e XII, que recorrem aos princípios

dos gramáticos da Idade Média, herdeiros dos Latinos, os quais eram eles mesmos inspirados nos gregos. (Tradução nossa)

56 A palavra como parte do discurso se distingue nas classes seguintes: artigo, nome substantivo, nome adjetivo,

comum nas obras desse período, como podemos observar no prefácio da 2ª edição de Lições

de Português (1923), de Sousa da Silveira:

À crítica bem intencionada e competente peço que me aponte as falhas desta obra, ajudando-me a melhorá-la em nova oportunidade. Conservo os prefácios anteriores para que acompanhe ao livro a sua história. (SILVEIRA, 1923:11)

Vislumbramos explanação similar em Eduardo Carlos Pereira (1907):

(...) Lacunas, erros e senões deve havel-os com certeza, e grato ficaremos á critica sensata que os aponta. (PEREIRA, 1907:III)

Geralmente, convocavam-se os professores, considerados usuários em potencial de suas obras, para apontarem defeitos, proporem melhorias etc. Oiticica, além de contar com a cumplicidade parcial do professor, também contava com a moderação de qualquer crítica, uma vez que já assumia, previamente, que a obra poderia conter erros tipográficos - “Sei que este livrinho é falho em muitos passos”. Toda e qualquer contribuição, portanto, era bem- vinda, afinal tudo iria concorrer “para o aperfeiçoamento deste livro”. (OITICICA, 1919:5)

O autor também avisa ao leitor que, em seu Manual, agitam-se ideias e delatam-se vícios, “certo de que o melhor livro é o que mais provoca a exame e discussão”. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se mostra humilde, também explicita suas atitudes com relação a alguns aspectos gramaticais. Para isso, ele convoca os ensinamentos de Maximino Maciel57 (1914), de cuja obra foram retirados os quadros sinópticos para, posteriormente, desenvolvê-los. “Mesmo onde mais me afasto do eminente professor pode o leitor notar de quanto me vali, aproveitando-lhe os quadros sinópticos e desenvolvendo-os”. (OITICICA, 1919:5).

57 A obra de Maximino Maciel é, “de acordo com a proposta de Nascentes (1939), pertencente ao período gramatical dos estudos gramaticais brasileiros e, segundo Elia (1975), pertencente ao período científico, pois foi mais uma editada posteriormente ao programa traçado por Fausto Barreto e baseada, como próprio nome alude, nas doutrinas modernas, referindo-se à corrente naturalista e à comparativa.” (Cf. Fávero & Molina, 2006).

Figura 11. Quadro synoptico de Maximino Maciel

Fonte: Maciel (1914:112)

De qualquer maneira, sabemos que uma das fontes utilizadas pelo autor para a construção do Manual (1940) foi a Grammatica descritiva, de Maximino Maciel. A partir desse ponto, então, podemos inferir que há, no Manual, ideias linguísticas relativas ao comparativismo, método utilizado por Maciel.

Passaram-se vinte e um anos “da impressão estereotipada58, e por isso irrefundível, deste Manual.” Assim, admite, nesta quinta edição (1940), que, desde a primeira (1919), os erros foram numerosos, as opiniões e as novas doutrinas “ou não se corrigiram, ou não vieram figurando nessas duas décadas”. Por isso, era já tempo de “quebrar as pedras e refazer o livro”, afinal já não mais condizia, “em grande parte, com o ensino e métodos do autor”. (OITICICA, 1940:7).

A todo o momento, vê-se a preocupação com o “novo”, com a “renovação”. Mas, caberia ao professor que o honraria com a leitura ou com a preferência, “o cotejo das edições e o assinalado das mudanças”. (OITICICA, 1940:7). Em outras palavras, a posição assumida pelo autor era a de que alterações foram feitas em prol da renovação de teorias relacionadas aos conceitos, definições e classificações da gramática da língua portuguesa.

Depois de agradecer aos professores pelos apontamentos feitos, pelas discordâncias e objeções, há de se considerar que Oiticica declara sua intenção de “elucidar nossa riquíssima sintaxe, acender lâmpadas nesse tesouro, a fim de os ostentar aos cegos, no improbo labor de ressalvá-lo do desbarato contemporâneo, calculadamente promovido por francelhos confessos

58 Impressão estereotipada - é o mesmo que impressão invariável, fixa ou sem alteração. A impressão por

estereotipia era um processo que duplicava uma composição, transformando-a em forma compacta, pela moldagem de uma matriz. O equipamento utilizado para realizar tal procedimento era o linotipo, que foi inventado por Ottmar Mergenthaler, em 1886, na Alemanha e tem por função fundir em bloco cada linha de caracteres tipográficos. É composto de um teclado, como o da máquina de escrever; as matrizes que formam a linha-bloco descem do magazine onde ficam armazenadas e, por ação do distribuidor, a ele voltam, depois de usadas, para aguardar nova utilização. As três partes distintas — composição, fundição e teclado — ficam unidas em uma mesma máquina. A capacidade de produção é de seis mil a oito mil toques por hora. Suas chapas (superfícies impressoras) são em baixo relevo, justapostas em um utensílio no qual o tipógrafo vai juntando a mão, um a um, os caracteres que irão formar as linhas de composição. O próprio operador despacha para a fundição a 270 graus Celsius. Mesmo com a quase extinção da técnica, em decorrência da chegada da imprensa offset, alguns lugares ainda trabalham com o maquinário de linotipos.

e escritores bota-abaixo”. (OITICICA, 1940:7-8). No trabalho de Silvio Elia (1963), encontramos o ponto de vista assumido por Oiticica em relação a esses escritores:

“ - Pobres diabos! Não são nem poetas, nem modernistas, nem futuristas59!

Escondem, detrás destas máscaras literárias, a sua frustração, a sua ignorância dos cânones artísticos, a sua ausência de inspiração e a sua carência de cultura e de sentido estético!” (OITICICA [s/d] apud ELIA, 1963:198)

Será que o autor, ao longo dos anos, percebeu que essas mudanças não eram tão fáceis de serem propostas e realizadas? Embora fosse um “revolucionário”, seu aparente conservadorismo o impedia de compactuar com os que chamou de “escritores bota-abaixo”, os poetas representantes e adeptos do modernismo, como por exemplo Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, Raul Bopp e Ronald de Carvalho. Percebemos, ainda, que o autor possa ter feito uma crítica, mesmo que velada, aos francelhos confessos – ou seja, àqueles que admitiam os francesismos, principalmente, na construção sintática a fim de tornar a língua mais requintada.

Outro ponto que vai diferenciar a quinta edição é que o antigo modelo adotado – o de Maximino Maciel – não foi mais usado. Agora ele agradece aos jovens professores Almir Câmara de Matos Peixoto, Antônio Houaiss, Sílvio Elia e Rocha Lima pela contribuição dada, pelas sugestões preciosas que o levaram a fazer emendas sérias, “modificações de quadros e acuramento na disposição geral”. Mas, não somente esses foram os nomes citados nesta Advertência. Para Oiticica (OITICICA, 1940:7-8), o Dicionário etimológico “do meu eminente amigo e colega, professor Antenor Nascentes”, foi-lhe um útil instrumento de trabalho quando tratou do “refazimento da morfologia”, no tocante aos prefixos e sufixos.

É provável que as mudanças efetuadas nos modelos adotados estejam relacionadas ao contato com as novas teorias linguísticas recorrentes nas primeiras décadas do século XX. Se ele escreveu esta advertência em 1939, possivelmente, já conhecia as gramáticas que se ajustavam aos requisitos básicos impostos pelos novos estudos estruturalistas, por exemplo. O certo é que, apesar disso, ainda lutava por uma língua livre de francesismos e de modismos próprios dos escritores “bota-abaixo”.

59 Ressalte-se que, no início do movimento modernista, os “novos” de São Paulo não se preocupavam muito com

diferençar-se dos futuristas. Para eles “futurista” significava simplesmente “renovador”. A palavra passou, então, a ser usada apenas pelos adversários, com objetivo ridicularizante, de insulto a qualquer adversário ou de implantar fina ironia polêmica.