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Educação anarquista: o caminho da libertação na primeira República

CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃO

2.7 Educação anarquista: o caminho da libertação na primeira República

Antes de discutirmos a educação ácrata, é fundamental fazer uma breve exposição da educação na Primeira República. Num primeiro momento, foram poucas as mudanças entre o período imperial e o republicano. A escola ainda era um privilégio para poucos, geralmente quem frequentava os bancos escolares eram os filhos dos fazendeiros ou de funcionários de altos cargos públicos.

O modelo educacional seguia os moldes europeus. Escolas públicas, particulares e religiosas foram construídas nesse período. Ocorreram sucessivas reformas educacionais que variavam entre a influência humanística clássica e a cientificista. Ao mesmo tempo, afloravam os ideais da Escola Nova em oposição à escola tradicional, livresca e intelectualista. Dessa forma, o foco central dessa Pedagogia Nova seria o aluno: (...) “da ação do professor, passou-se a pensar na ação do aluno, no como poderia chegar à aprendizagem”. (FERREIRA, 2001:95)

Com propostas semelhantes aos escolanovistas, surge no cenário nacional o movimento anarquista, trazendo contribuições inestimáveis para a reflexão acerca da

educação brasileira no primeiro quartel republicano. Eles acreditavam que por meio do ensino derrubariam os valores da burguesia e implantariam a solidariedade humana.

O movimento chegou ao Brasil trazido pelos imigrantes espanhóis e italianos que, organizados em sindicatos e federações, lançavam suas ideias junto à classe dos trabalhadores urbanos. No entanto, era difícil a divulgação através de boletins e jornais, que precisavam ser lidos em voz alta, uma vez que o país era composto por uma população com 85% de analfabetos. Dessa forma, tornava-se necessário criar espaços educativos próprios, onde os operários e seus filhos pudessem ter acesso a um conhecimento formal, temperado pelo ideal ácrata. Assim, entre 1885 e 1925, foram criadas, com o apoio financeiro dos sindicatos, instituições escolares anarquistas.

A primeira delas foi a Escola União Operária, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em 1906, surgia, em Fortaleza, no Ceará, a Escola Germinal; em 1908, na cidade de Campinas, Estado de São Paulo, a Escola Livre. Posteriormente, em 1912, a Escola Operária 1º de Maio e as Escolas Modernas nº1 e nº2, em São Paulo. Houve uma tentativa de ensino superior com criação da Universidade Popular de Ensino (Livre), em 1904, no Rio de Janeiro, mas foi fechada em poucos meses.

Os temas referentes à educação e à cultura eram muito valorizados e considerados pelos militantes instrumentos fundamentais que levariam o indivíduo ao comando de sua própria vida. A luta por uma educação libertadora, de qualidade a todos os cidadãos e não somente a uma minoria burguesa, vem de longa data, inicialmente com as indicações metodológicas do francês Charles Fourier (1772-1837)17, passando por Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865)18, Mikhail Bakunin (1814-1876)19, Leon Tolstoi20 (1828-1910), Paul Robin (1837-1912)21, Sebastian Faure (1858-1942)22, Francisco Ferrer (1859-1909)23, estudioso que inspirou Oiticica como educador.

17 Filósofo, economista e político francês, Fourier foi um dos mais radicais representantes do socialismo utópico

da França. Defendia a existência de uma ordem social natural, paralela à ordem física do universo. Para ele, a distribuição dos bens seria de acordo com a necessidade, e a educação deveria se adaptar às tendências naturais de cada criança.

18 Proudhon, filósofo econômico-político, membro do Parlamento Francês e um dos maiores teóricos do

anarquismo, defendia que o trabalho assalariado capitalista era uma posição voluntária de subordinação e exploração, uma condição permanente de obediência.

19 Teórico político russo, Bakunin foi um dos mais importantes nomes do anarquismo em meados do século XIX. 20Além de sua fama como escritor, Tolstoi foi um dos grandes mestres da literatura russa do século XIX. Suas

obras mais famosas são Guerra e Paz (1865-1869) e Anna Karenina (1875-1877). Na velhice, tornou-se um pacifista, pregando uma vida simples e em proximidade à natureza.

21 Robin, pertencente à corrente libertária da pedagogia que preconiza a Educação como transformadora social,

foi o idealizador do projeto pedagógico conhecido por ensino integrado.

22 Ativista libertário e anticlericalista francês; fundou a escola A Colmeia, cuja pedagogia era por ele considerada

indutiva e estimuladora do autodidatismo.

As propostas pedagógicas desses intelectuais surgiram devido ao nascimento do capitalismo e à expansão industrial, a fim de despertar reflexões sobre as péssimas condições de trabalho a que era submetida a população pobre, com o propósito de formar pessoas livres e igualitárias, buscando acabar com a dominação e a exploração que sofriam.

O mesmo ocorreu no Brasil no início do século XX, com a criação das escolas racionalistas, dos centros de cultura e de estudos sociais, e das bibliotecas populares. O ensino anarquista deveria ter como alicerce a contestação do capitalismo e o fortalecimento político do proletariado, princípios que não existiam na educação formal.

Os revolucionários acusavam a elite e a Igreja de monopolizar o poder, utilizando a instrução conservadora de suas escolas como instrumento para manter a população na mais absoluta ignorância. Pensavam que era preciso realizar transformações profundas que só viriam através de um ensino científico, capaz de despertar nas pessoas o senso de racionalidade para se tornarem seres pensantes e não indivíduos manipulados pelo poder. Dessa forma, deveriam ser excluídas das escolas as atividades de memorização, os concursos, os exames, os prêmios e os castigos em virtude da implantação de uma proposta educacional libertária.

Essas ideias tinham origem no método racionalista do espanhol Francisco Ferrer y Guardia, idealizador da Escola Moderna de Barcelona. Segundo o estudioso, a criança deveria ser o centro do processo educacional e o professor um mediador responsável por problematizar a realidade, unindo a teoria e a prática. Não seria apropriado haver distinção social ou de gênero: meninos e meninas, pobres e ricos ocupariam o mesmo espaço na sala de aula. Acreditava que, por meio da ciência, o indivíduo pudesse ser capaz de se libertar da dominação imposta pelo Governo e pela Igreja. A educação teria, ainda, a prioridade de conscientizar os alunos sobre as questões políticas, humanitárias e antiestatais pregadas pelos anarquistas, um processo inovador que buscava a valorização do indivíduo e o seu desenvolvimento humano e intelectual. A nova escola proposta pelo educador seria um instrumento de combate, de enfrentamento, de ação revolucionária que acabaria com o agente responsável pelos males sociais: a ignorância.

A teoria do espanhol despertou a fúria dos governantes de seu país, pois não tinha o objetivo de apenas criticar a pedagogia tradicional, mas de afrontar o poder constituído. Nesse contexto, Ferrer foi preso e muitos foram os protestos pela sua libertação, mas de nada adiantaram: em 1909 acabou sendo fuzilado.

No Brasil, as escolas ácratas seguiam o mesmo modelo das escolas libertárias existentes na Europa. Apresentavam em seus currículos as disciplinas: gramática, leitura,

caligrafia, aritmética, geometria, história, geografia, botânica, geologia, mineralogia, física, química e desenho, além de sessões artísticas e conferências científicas. A proposta educacional estava em sintonia com o método racionalista do espanhol. Em datas especiais para o movimento, os alunos participavam de eventos operários como os que aconteciam no dia 18 de março, em comemoração à Comuna de Paris24, 1º de maio, em homenagem aos mártires da execução de Chicago25 e 13 de outubro, data da morte de Francisco Ferrer.

Com as greves gerais ocorridas em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1917 e 1919, os revolucionários passaram a ser alvo da repressão do Governo e da Igreja Católica. Muitos militantes estrangeiros foram expulsos do país, tiveram suas escolas fechadas e seus professores acusados de incentivarem a revolução social.

Os governantes diziam que o anarquismo era uma planta exótica, vinda da Europa, que não teria clima favorável para se desenvolver no Brasil. No entanto, os manifestantes não deixaram de lutar pelo fortalecimento das relações de amor e de solidariedade, pela distribuição do desenvolvimento material, moral e intelectual e pelo bem estar de todos os cidadãos.

É nesse universo que José Oiticica buscava elementos para pregar seus ideais políticos e educacionais, como elucidados no próximo capítulo.

24 A Comuna de Paris, em 18 de março de 1871, foi uma insurreição popular que gerou o primeiro governo

operário da história.

25 Os Mártires de Chicago foram operários executados no dia 1º de maio de 1886 por lutarem pela redução da

CAPÍTULO 3

JOSÉ OITICICA: JORNALISTA, MESTRE