• Nenhum resultado encontrado

Afetividade e ativação da memória

2 Entre tematização, figuratividade e narratividade: o traço das relações que

2.5 Abordagem das canções

2.5.1 Afetividade e ativação da memória

Na interação entre o ouvinte e o discurso da canção, podemos pensar na relação da afetividade com a ativação da memória. A despeito das imagens expressas por temas e figuras, no nível do discurso da letra da canção, as canções, as músicas de maneira geral, têm a propriedade de tocar nossas lembranças, nossas memórias afetivas. Dessa sorte, ao refletirmos sobre o papel do ouvinte como coautor no ato de leitura auditiva, persiste o papel do imaginário – de um imaginário individual, particular de cada ouvinte, e um imaginário social coletivo, instalado no corpo sociocultural como memória dos usos, ou seja, potencialidades, por meio de práxis enunciativas. Propomos uma leitura da canção “O menino da porteira”, de Teddy Vieira e Luizinho, para pensar modos de afecção do sujeito por dispositivos rítmicos.

O Menino da Porteira

Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino De longe eu avistava a figura de um menino

Que corria abrir a porteira e depois vinha me pedindo "Toque o berrante, seu moço, que é pra eu ficar ouvindo" Quando a boiada passava e a poeira ia baixando

Eu jogava uma moeda e ele saía pulando:

"Obrigado, boiadeiro, que Deus vá lhe acompanhando" Pra aquele sertão afora meu berrante ia tocando Nos caminhos desta vida muitos espinhos eu encontrei Mas nenhum calou mais fundo do que isso que eu passei Na minha viagem de volta qualquer coisa eu cismei Vendo a porteira fechada, o menino não avistei Apeei do meu cavalo e no ranchinho à beira chão Vi uma mulher chorando, quis saber qual a razão "Veio Boiadeiro tarde, veja a cruz no estradão Quem matou o meu filhinho foi um boi sem coração" Lá pras bandas de Ouro Fino levando gado selvagem Quando passo na porteira até vejo a sua imagem O seu rangido tão triste mais parece uma mensagem Daquele rosto trigueiro desejando-me boa viagem A cruzinha no estradão do pensamento não sai Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais Nem que o meu gado estoure, que eu precise ir atrás Neste pedaço de chão berrante eu não toco mais

A primeira voz na canção é a do Renato Teixeira. Explorando notas mais altas, a interpretação em primeira pessoa vai contando a trajetória de um acontecimento na vida do ator boiadeiro. As notas das frases melódicas se sucedem gradativamente em graus conjuntos, oscilando entre descendências e ascendências, sem passagens bruscas de um registro a outro no campo da tessitura. Estas configurações têm como produto final os efeitos de previsibilidade e memória. Dessa sorte, o narrador do texto – simulacro do enunciador – tem o controle de seu fazer.

Vejamos a representação no diagrama abaixo dos dois primeiros versos:

Fig. 2 – Diagrama da melodia dos versos um e dois.

Observa-se que as notas são entoadas na parte superior (região médio-aguda). A melodia não apresenta uma variação na primeira metade do primeiro verso, depois é que atinge a nota mais aguda, descendo até a região média, para novamente subir e recomeçar do mesmo lugar:

trada

la es re de um Toda vez que eu vi java pe de Ouro meni no a Fino gura

fi De longe eu a tava a vis

Fig. 3 – Diagrama da melodia dos versos três e quatro.

Pouca variação na geometria do desenho melódico: até o termino do terceiro verso “Que corria abrir a porteira e depois vinha me pedindo”, permanece igual, a partir disso, ela entra numa descendência asseverativa com tonemas descendentes terminativos. Assim se encerra a primeira parte (estrofe). Podemos concluir que, até aí, tudo está no controle do narrador/ator, dentro de sua previsibilidade, reconhecemos o momento de exaltação da relação estabelecida com o outro ator, o menino, em estado euforizante.

As características da dicção denominada tematização se confirmam na normalidade da relação entre os atores, narrada na letra, como um relato pessoal. O boiadeiro tinha o auxílio do menino que, logo que o via, abria a porteira para o boiadeiro passar e depois era recompensado pelo feito, ou pela moda que recebia, ou pelo som do berrante que lhe era aprazível, ao passo em que abençoava o boiadeiro. Seja qual for o ponto de vista assumido, neste caso, do boiadeiro ou do menino, o instante é de conjunção de expectativas.

No desenho melódico da entoação dos versos da segunda estrofe, percebe-se que há um tensionamento dos dois primeiros versos, como mostraremos na Fig. 4; nos seus dois versos finais, o desenho da melodia (fig. 5) é idêntico ao dos versos finais da primeira estrofe (Fig.3). O momento de maior entusiasmo o menino coaduna com o instante exato de maior direcionamento ascendente da escala que modula assim os afetos num ganho de intensidade e esforço do corpo de quem canta, para que sustente a duração da sílaba “í” do hiato, na palavra “saía”. Os sintomas de uma modulação dos afetos começam a aparecer. Com os últimos dois diagramas a seguir representamos a linha melódica da canção.

vinha

pois Que corria abria a teira de me pe por dindo

Toque berrante seu mo

eu Co que é pra ficar ou vindo

Fig. 4 - Diagrama da melodia dos versos quinto e sexto.

Fig. 5 – Diagrama da melodia dos versos três e quatro.

O poder de atualização da enunciação traz o passado para o presente. Transmitindo, pela performance, as impressões enunciativas dos elementos emotivos, afetivos, sensoriais, já manifestos na composição (melodia e letra), cada nova interpretação pode suscitar no ouvinte um envolvimento afetivo, produzir afecção do seu corpo, quanto maior for a sua sensibilidade maior será o grau de intensidade de suas percepções. Deixar penetrar-se pelo som instrumentos e da voz, que manifesta os recobrimentos temáticos e figurativos no texto verbal que sempre conta algo, que a seu turno se vincula a uma narratividade, cujas nuances a materialidade da canção antecipa. Ou melhor, antes mesmo de a letra se tornar inteligível ao ouvinte, sensações são produzidas pela reverberação das ondas sonoras em seu corpo. Há um

ia

pulando sa

ia

baixando eu jogava uma eda e ele mo

Quando a boiada ssava e a eira pa po

vá lhe a que Deus compa

Obrigao coi deiro a nhando Pra aquele sertão afora

rratn meu be te ia to cando

cruzamento de dados transmitidos pela componente musical da canção e pela letra. Portanto, a correlação entre as formas que são geradas nas duas faces da canção produzem uma presença, e fazem sentido para o ouvinte.

Um ritmo se produz também pelo modo como o objeto se apresenta a nós. O som do berrante na introdução da canção, nesta versão analisada, já de início, evoca as figuras do boiadeiro e do gado. No trecho em que são entoados os versos “Apeei do meu cavalo e no ranchinho à beira chão / Vi uma mulher chorando, quis saber qual a razão”, uma tensão se instaura menos por uma variação na linha melódica do que por uma combinação de fatores nos arranjos da canção, como a diminuição dos ataques dos instrumentos de percussão, o trinado no violão de Chico Teixeira, o soar dos pratos da bateria e um moderado rufar dos tambores, criam uma atmosfera de suspense que introduz a surpresa do boiadeiro ao se deparar com a porteira fechada, e mais tarde ter a confirmação de que o menino falecera. Isso proporciona outra modulação afetiva, cria uma expectativa de que algo inusitado está por vir: eis a espera. Aí está o engajamento do ouvinte no ritmo e na imagem que a canção gera.

Presente no imaginário coletivo, no cenário das canções populares no Brasil, esta canção já teve inúmeras regravações por diferentes artistas, virou tema de filme com direito a duas produções, significativamente distintas e em épocas igualmente distintas. Os preenchimentos operados pelas figuras, por exemplo, boiada, cavalo, porteira, poeira, estradão, criam certa referencialidade, um cenário cujos traços podem ativar uma memória de infância passada em uma região do interior, pode despertar experiências esquecidas, circunstâncias de jogos de criança, uma cantiga que se entoava em situações das mais diversas. A remissão a um instante no passado, presentificando-o por meio de uma memória afetiva, trazendo para junto de mim uma presença que se produz e que se intensifica, mas que não posso determinar. Porque o imaginário emerge dum certo reconhecimento de virtualidades, no jogo da ficção, e igualmente opera aberturas, potencializa novas projeções dessas virtualidades.