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Em níveis profundos: sobre a letra da canção

1 Tensões e distensões: a canção caipira entre natureza e cultura

1.4 Canção (caipira), poesia, performance vocal

1.4.1 Em níveis profundos: sobre a letra da canção

Ressalta-se nesta letra um estado passional do sujeito enunciador. A figura do desejo revela-se na falta, ao passo que a denuncia. Há aí a configuração da disforia e da disjunção10 entre sujeito e seu objeto de valor (o amor, em última instância), instalando o percurso da busca pela conjunção e continuidade do vínculo profundo com esse objeto de valor. No plano narrativo, exercendo a função de destinado, o desejo impulsiona o sujeito da narrativa apresentada a querer e a agir, mesmo tomado por uma carga afetiva pungente.

Em tese querer estreitar os laços, diminuir a distância (produto de uma debreagem espacial: “Depois da curva da estrada” / “Que nasce lá no quintal/Da casa onde você mora”; e temporal: no passado durativo “Toda vez que passo lá”, no futuro enquanto potencialidade “vou...”) entre o “lá” – lugar dos valores –, e o “aqui” – espaço em que o “eu” está fechado em sua memória afetiva, na introspecção de seus pensamentos relembra sentir “o coração flechado” e “cercado de solidão”. A distância funciona como figura da interdição e confirmação da disjunção no espaço-temporal, além, é claro, de uma disjunção de expectativas entre os principais actantes da narrativa (sujeito e objeto): “Que você me ignora”. Mas a distância espacial pressupõe a duração – ao menos no aspecto temporal do pretérito imperfeito do indicativo “... toda vez que passo lá”, que expressa uma ação continuada, ou seja, sem princípio ou fim demarcados –, nesta a busca pela continuidade no percurso da ação do sujeito: “Vou contar para o seu pai/Vou contar pra sua mãe/Vou pintar a minha boca”.

10 Na teoria semiótica francesa, segundo o Dicionário de Semiótica (GREIMAS e COURTES, 2013), disforia uma das articulações da categoria tímica, responsável por instituir os valores negativos. A categoria tímica é articulada, aspectualmente, em disforia, euforia (termo positivo da categoria tímica oposto à disforia), comporta ainda um termo neutro, a aforia. Nota interessante sobre o vocábulo timia. Ainda segundo o Dicionário, a palavra provém do grego thymós,que significa “disposição afetiva fundamental”, o que se aproxima muito do conceito de Stimmung, explorado por Grumbrecht (2014). A partir da obra “Semiótica das Paixões”, de GREIMAS e FONTANILLE, estes e outros termos passam a vigorar nos estudos semióticos sobre os afetos. O termo disjunção, assim como a conjunção, é uma das articulações da junção. Trocando em miúdos, o espaço teórico da junção sugere o sentido de unidade do ser do sentido: é “a relação que une sujeito e objeto”; a disjunção representa a segmentação dessa unidade: a introdução de uma interrupção na continuidade; a conjunção é o oposto da disjunção: privilegia a retomada do vínculo entre sujeito e objeto.

Ao lado da predominância dos valores disfóricos, que promovem a falta, perceptíveis na superfície do texto verbal, tendem a aparecer os valores eufóricos contrabalançando as relações e preservando a noção de junção como termo complexo que requer um equilíbrio entre seus dois pólos. No caso da canção “Amora”, o sujeito engendra um contraprograma conjuntivo na terceira e quarta estrofes da letra, quando estabelece as ações que pode e sabe fazer para unir-se ao objeto de valor, ainda que mentalmente, ou seja, em pensamento.

Da imagem acima, reiteramos um jogo de energias geradoras de um ritmo em que transparecem continuidades e descontinuidades, desacelerações e acelerações no interior do texto, isto é, da canção como unidade de sentido – mostramos anteriormente, na análise da compatibilidade entre melodia e letra, que isso também ocorre nas duas componentes da canção. Em outras palavras, o ritmo absorve a extensidade regida e a intensidade regente.

No instante de ativação da memória (atualidade), tem-se a passagem da união/presença (virtualidade) à separação/ausência (realidade). Os valores descontínuos, selecionados pelo sujeito da enunciação, vêm à tona desde o princípio e fazem perdurar a retenção (continuação de uma descontinuidade/parada). Uma vez que se projetam os valores disfóricos no contexto das duas primeiras estrofes, temos no nível tensivo a contenção (interrupção/parada de uma continuidade). No nível modal-narrativo, a modalidade do ser (sujeito de estado, do sofrer). No nível discursivo, a distância espacial aparece como figura que concretiza o tema da solidão.

A terceira estrofe é paradoxal, porque, oscilando entre contenção e distensão (interrupção/parada de uma descontinuidade/parada), demonstra o engajamento do contraprograma conjuntivo, do ponto de vista do sujeito que tenta manipular as ações do pai (figura da proibição) e da mãe (figura da cumplicidade) na intenção de restabelecer o vínculo profundo virtualizado no desejo; ao passo que ressalta a ruptura, a falta, a distância, a rejeição: “Vou contar para o seu pai/Que você namora/Vou contar pra sua mãe/Que você me ignora”. Já na quarta estrofe, percebemos claramente a confirmação de uma transformação do sujeito do sofrer (“Sinto vir águas nos olhos/Sinto o coração flechado”) para o sujeito do agir (“Vou contar para o seu pai/Vou contar pra sua mãe/Vou pintar a minha boca”). Reaparece a configuração do espaço passional, que ora se fecha no “aqui”, ora encontra a abertura no “lá”, ao que fazemos corresponder, respectivamente, a vacuidade e a plenitude.

Retomando os valores eufóricos a seu favor, o sujeito empreende uma série de ações dando lugar a certa condição racional para transgredir as barreiras aí postas e entrar em conjunção com seu objeto de valor: ele vai tentar manipular o pai para proibir o namoro da amada com um outro; vai tentar manipular a mãe com o intento de conseguir sua cumplicidade quanto à conquista da moça. Evidentemente, se pensarmos segundo os atuais ditames sociais de comportamentos éticos e morais, principalmente concernentes à família como instituição social em contextos urbanos e seus arredores, isso talvez não faça o menor sentido. Todavia, emanam do texto traços culturais e históricos de um tempo e espaço em que se tinham certas coerções sobre a figura da mulher, tais como julgamentos axiológicos culturais, controles e repressões: com quem e quando poderia/deveria se casar. Assim o sujeito joga com a possibilidade de ganhar força numa espécie de “destinador coletivo”, resgatando a memória dos usos sob as variações do regime de sensibilidade e moralização, que são variáveis cultural e historicamente construídas.

Se a terceira estrofe encerra a possibilidade de junção plena por sua anfibologia, isto é, porque apresenta simultaneamente seus dois pólos, a disjunção e a conjunção, poderíamos dizer que na última estrofe da letra aparece um efeito de sublimação do desejo, pois nos parece que tudo se resolve metaforicamente no provar parte da amora ou “Do vermelho da amora”, em outras palavras, na simbiose do homem com a natureza, própria da experiência do homem do interior, representado nesta canção caipira.

Como derradeira ação associativa entre o doce da amora e o da “fruta do coração”, temos um limiar do sujeito cognitivo e pragmático, dotado de um saber e um sujeito estético, que acolhe no íntimo de si o “ressabio da imperfeição” – a impossibilidade de união perfeita com o objeto – e o ser passional. Marca textual dessa imperfeição é o partitivo, isto é, “vai pintar a sua boca com uma parte do vermelho da amora; não com todo o vermelho, ou no vermelho, o que também sugere uma totalidade”. A sanção do sujeito é (virtualmente) positiva. Todas as ações que mostram a competência do sujeito se projetam no processo mental de idealização conjuntiva, neste plano se realizam na não solução entre um sujeito pragmático, cognitivo e patêmico.