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A canção sob dois planos

2 Entre tematização, figuratividade e narratividade: o traço das relações que

2.3 A canção sob dois planos

Antes de começarmos falando propriamente do plano do conteúdo a partir já das análises, tentaremos demonstrar o que entendemos por plano de expressão e plano de conteúdo nas canções. Cabe esclarecer que não se trata de uma palavra final a respeito do assunto, antes de uma busca por deixar mais claro ao leitor os terrenos por onde trilharemos nossos caminhos de análise. Isso significa que nosso intuito é, sobretudo, facilitar a leitura do nosso texto, evitando desvios e confusões desnecessários no ato de leitura.

Na análise da canção “Amora”, no capítulo anterior, falamos sobre o projeto enunciativo das canções, articulados em projeto narrativo e projeto entoativo, respectivamente, recursos investidos na letra da canção e os que são engajados na componente musical, conforme Tatit (2010). Lembremo-nos que é a partir da combinação desses elementos, somados a uma mediação da voz que articula melodia e letra, que chegamos ao conceito de canção.

O plano de expressão deve ser compreendido como arranjo de elementos expressivos, materiais (formas e substâncias) que permitem manifestar um determinado conteúdo. O plano de conteúdo, como aquilo que se pode depreender através dos elementos selecionados e combinados no plano de expressão, ou seja, os efeitos de sentido resultantes desse arranjo. Em suma, o primeiro seria como o texto faz para dizer o que diz, e o segundo, aquilo efetivamente dito pelo texto.

Se a canção, como todo texto semiótico, é fruto da correlação entre os dois planos, temos de voltar nossas considerações tendo em vista os elos entre o texto verbal e o texto musical. Para tanto, não entendemos que cabe à componente musical corresponder ao plano de expressão, e à letra o plano do conteúdo; mas que certos recursos materiais ou substanciais, pertencentes a um e a outro, constituem o plano de expressão da canção. Na tentativa de deixar mais patente nossa proposição, engendramos o seguinte:

Canção Intersecção da música com a linguagem natural.

Plano de expressão Estruturação de elementos como: a realidade física (sons)

da fala; os elementos musicais formais de ordenação da matéria sonora (substância da expressão); recursos estilísticos expressivos de caráter poético da linguagem verbal, utilizados na composição da letra.

Plano de conteúdo O montante que resulta da combinatória engendrada no

plano de expressão, e que se apresenta como efeitos de sentido assimilados pelos sentidos e pelos processamentos cognitivos.

Fig. 1 – Tabela que estabelece uma síntese dos planos da canção.

Yara Borges Caznok (2008, p. 93) apresenta a seguinte reflexão a respeito dos efeitos na música provocados após a ligação com a poesia escrita em versos:

A fusão da música com uma requintada e elaborada poesia, cujo modelo eram os versos de Petrarca, tornou o madrigal um campo de experimentações infinitas no qual as mais diversas possibilidades de relação entre texto e música foram desenvolvidas. O anseio de tornar a construção musical à altura da qualidade e beleza do texto conduziu a música a um figuralismo tão acentuado que (...) certos padrões compositivos se tornaram comuns: escalas ascendentes e descendentes para descrever movimentos físicos e espirituais; dissonâncias e cromatismos para expressar tensões emocionais; contrastes rítmicos para traduzir sentimentos ou situações opostas; andamentos lentos ou rápidos para simbolizar, respectivamente, os estados de tristeza e de felicidade; grandes saltos para descrever quedas; melismas para caracterizar elementos naturais tais como um rio ou o vento, entre incontáveis outras imagens.

Ora, vemos a presença manifesta alguns artifícios formais e substanciais de expressão e conteúdo musicais. A matéria sonora é regulada, ordenada numa estruturação composicional (os padrões compositivos, a forma musical), cujos conteúdos assumem um caráter temático- figurativo, assim com acontece no texto verbal. Todavia, o que mais chama a nossa atenção é o fato de um conteúdo ser manifesto na e pela música. Há certa disseminação de valores semânticos e discursivos implicados na composição. Cabe, agora, saber quais conteúdos se

transmitem, ou melhor, que efeitos de sentido e de presença a música sugere e como proceder para uma descrição satisfatória.

No caso, especificamente, a canção é fruto da combinação ou conjugação de linguagens distintas. Por um lado a estabilização sonora operada pela forma musical, por outro a instabilidade da fala na voz que canta, no canto. A efemeridade da fala, isto é, dos sons da linguagem oral que são rapidamente convertidos em conteúdo semântico numa dada comunicação – em virtude duma função utilitária e da inteligibilidade – ganha perenidade pelo tratamento estético conferido à sua matéria sonora. Temos, portanto, uma tensão entre conservação estética da matéria sonora (substância da expressão) e os “efeitos de naturalidade da presentificação enunciativa”.

Embora nos ocupemos mais com o plano de conteúdo neste capítulo, não custa ressaltar que, para nós, correspondem ao plano de expressão da canção, além da melodia instrumental (componente musical), os elementos como melodia (entonação, tessitura) e dinâmica (duração, ritmo, acento) da fala, bem como a qualidade da voz (timbre, volume). Participam, portanto, elementos musicais, prosódicos e poéticos da palavra cantada. De igual modo, entendemos que o plano do conteúdo não se faz presente apenas na letra.

A voz – como suporte e extensão do corpo – de quem canta traz consigo a instância da enunciação, instala um eu, aqui, agora. Pensar o corpo da voz no corpo da canção, cuja materialidade envolve a princípio o componente musical (ritmo, harmonia e melodia), mas também elementos de melodia e prosódia, voz e corpo. (TATIT, 2010, 2012) O intérprete/enunciador precisa atualizar em sua performance as situações e os conteúdos virtualizados, revivendo “de verdade” o que se canta. O ouvinte/enunciatário espera ser “convencido” de que é verdadeiro o que lhe está dizendo o cantor. Então, do ponto de vista da enunciação se estabelecem contratos fiduciários, de confiabilidade entre o sujeito da enunciação (cantor/intérprete) e o enunciatário (ouvinte). A enunciação da canção é um ato promissivo de interação, pois possibilita as condições de existência e aparecimento dos sentidos como promessa, sempre como devir, ou, na formulação de Greimas (2002), “como tela do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, graças ou por causa de sua imperfeição, como uma possibilidade de além (do) sentido” (p.74).