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Umas das características fundamentais da ADC é a interdisciplinaridade, uma vez que esse aspecto garante à teoria, conforme postula Wodak (2004, p.236), “[...] uma compreensão mais completa de como a linguagem funciona, por exemplo, na constituição e na transmissão do conhecimento, na organização das instituições sociais, e no exercício do poder.”

Neste trabalho, essa propriedade torna-se especialmente relevante diante da necessidade de associar discursos ligados à mídia, ao gênero social e à hegemonia. Outra característica importante da ADC é o fato de suas pesquisas serem posicionadas criticamente, baseadas em problemas sociais reais, afinal, nas palavras da autora:

[...] a linguagem classifica o poder, expressa poder, e está presente onde há disputa e desafio ao poder. O poder não surge da linguagem, mas a linguagem pode ser usada para desafiar o poder, subvertê-lo, e alterar sua distribuição a curto e longo prazo. (WODAK, 2004, p. 237) [...] A ACD3 está interessada em como as formas linguísticas são

usadas em várias expressões e manipulações do poder. O poder é

3 No tocante à diferenciação entre terminologias, Análise Crítica do Discurso (ACD) e Análise do

Discurso Crítica (ADC); partilho do entendimento de Camilo (2016), que prefere o termo ADC, afirmando que, apesar da expressão portuguesa “análise crítica do discurso”, utilizada, por exemplo, no livro organizado por E. Pedro (1997); há uma razão que consolide o termo ADC, qual seja, a tradição brasileira no estudo do discurso. “[...] Só para ilustrar esse ponto, o livro de E. Orlandi A linguagem e seu

funcionamento foi publicado em 1983 (1ª ed.) Essa tradição acadêmica se consolidou no Brasil com a

sinalizado não somente e pelas formas gramaticais presentes em um texto, mas também pelo controle que uma pessoa exerce sobre uma ocasião social através do gênero textual (WODAK, 2004, p. 237). Tendo em vista uma reflexão sobre as representações construídas, ideologicamente, pela mídia, acerca dos papéis sociais de gênero; a ADC revela-se bastante pertinente, afinal, não estuda a linguagem como estrutura abstrata, e sim como um momento da prática social. Seu viés crítico é importante à minha pesquisa e diz respeito a uma abordagem dialética, textualmente orientada a alcançar o sentido do discurso, principalmente no que diz respeito a seus impactos nas relações assimétricas de poder que se constituem em lutas hegemônicas (FAIRCLOUGH, 2003).

A ADC estuda as construções ideológicas por meio do discurso. Sobre esse ponto, Fairclough (2016, p. 94), um dos precursores dessa teoria, propõe “[...] considerar o uso da linguagem como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis”, pois, “[..] o sujeito é um ator ideológico que constrói e é construído via processos discursivos”. As práticas sociais, por sua vez, são o lugar em que, nas palavras de Vieira & Resende (2016, p. 17), “[...] a linguagem se manifesta como discurso: como uma parte irredutível das maneiras como agimos e interagimos, representamos e identificamos a nós mesmos, aos outros e a aspectos do mundo por meio da linguagem. ”

Nesse sentido, Fairclough (2016) propõe um modelo tridimensional do discurso, e considera o evento discursivo como texto e como prática social. O primeiro trata da prática discursiva em sua interação como texto e o segundo aborda questões sociais. O autor considera o discurso em três implicações, quais sejam:

• um modo de ação sobre o mundo e sobre as outras pessoas, e de representação;

• uma relação dialética entre discursos e as estruturas de relações de poder que os constroem e que são construídas por eles;

• uma prática social usada para criar significados sobre o mundo. Fairclough (2003) propõe, ainda, o desenvolvimento de uma análise do discurso voltada à análise e à pesquisa social. O pesquisador se utiliza do termo ‘texto’ em seu sentido amplo, também utilizado neste trabalho. Para Fairclough (2003), o

conceito abarca textos impressos e escritos, cópias de conversas e entrevistas (faladas) e qualquer exemplo de linguagem em uso.

Outros conceitos importantes para essa teoria são ordens do discurso e eventos sociais, assim, com base no disposto por Paulo Roberto Gonçalves-Segundo (2018, p. 90), podemos distinguir esses termos da seguinte forma:

[...] se transpusermos as reflexões realizadas acerca de eventos, práticas e estruturas sociais para o domínio da linguagem, teremos as seguintes correspondências:

1. as estruturas sociais estariam no mesmo nível da abstração das línguas;

2. as práticas sociais se equiparariam às ordens do discurso; 3. os eventos sociais seriam os textos.

Isso posto, o autor afirma que podemos considerar a língua uma estrutura social dotada de inúmeras potencialidades e que pode ser utilizada para compor significados de mundo, entretanto essa utilização não é livre; existe uma coerção estrutural que orienta e restringe esse modo de ação sobre o mundo, uma vez que nos movimentamos em uma estrutura social que nos precede e nos constrange.

Os textos, por sua vez, como produtos dos eventos sociais, são únicos, tendo em vista as condições reais que tornaram sua existência possível. O liame que une o plano abstrato (língua) ao plano concreto (texto) são as práticas sociais, caracterizadas, no que diz respeito à questão discursiva, como ordens do discurso, “[...] formadas por modos sociossemióticos de agir (gêneros), de representar (discursos) e de ser (estilos).” (GONÇALVES-SEGUNDO, 2018, p. 93).

Destaco que discurso pode ser entendido em dois contextos, o primeiro é o que Gonçalves-Segundo (2018, p. 90) denomina “[...] atividade sociossemiótica humana que é um momento da prática social, responsável pela geração de sentido”; o segundo diz respeito a formas de representação da realidade. Importa ressaltar ainda que, de acordo com Silva (2015, p. 255):

[...] outros conceitos importantes para a ADC são os de prática discursiva e de prática social. A prática discursiva é composta de modo convencional ou criativo: reproduz a sociedade e pode transformá-la. A prática social tem várias orientações, e uma dela é a ideológica.

Considerando as questões relacionadas a ordens do discurso, Chouliaraki e Fairclough (1999) dividiram os momentos de prática social em quatro: i. discurso, ii. fenômeno mental (crenças, valores e desejos), iii. atividade material e iv. relações sociais; baseando-se no funcionalismo de Halliday. Essa articulação está disposta abaixo conforme, Resende (2017):

Figura 02 - Momentos da prática social segundo Chouliaraki e Fairclough (1999)

Fonte: Informações retiradas de RESENDE,2017, p. 14

Ao propor três significados do discurso (acional, representacional e identificacional), Fairclough (2003), baseando-se na linguística sistêmico funcional; afirma que o discurso se apresenta como: i. Gênero, ii. Discursos e iii. Estilos, considerados meios, de certa forma, constantes, de agir, representar e identificar. Ressalto que a análise empreendida no presente trabalho abordará os tipos de relação textual mencionados.

No tocante às análises linguísticas delineadas por meio da ADC, Vieira & Resende (2016, p. 23) informam o seguinte:

[...] a ADC, então, ao mesmo tempo rejeita análises linguísticas que não se mostrem relevantes para a crítica social e exige que a crítica social oriunda de pesquisas nesse campo seja baseada em análises

linguísticas situadas. É por isso que se pode classificar a ADC como análise de Discurso Textualmente Orientada (Fairclough, 2001). O propósito das análises em ADC é, portanto, mapear conexões entre escolhas de atores sociais ou grupos, em textos e eventos discursivos específicos, e questões mais amplas, de cunho social, envolvendo poder.

Tendo em vista essa perspectiva crítica, esta pesquisa se mostra relevante ao mapear representações de homens e mulheres, em um contexto de violência de gênero, para refletir acerca das repercussões dos discursos hegemônicos, relacionados a papéis sociais de gênero, que constroem e legitimam essa estrutura dada, mas passível de transformação. A respeito desse aspecto, Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 67) dispõem que a análise crítica é dialética, e tem o objetivo de demonstrar como o discurso funciona na prática social, tendo em vista seu impacto nas diferentes lutas hegemônicas e nas relações de dominação.

Chouliaraki e Fairclough (1999) identificam, ainda, a ADC na modernidade tardia, conforme proposto por Giddens (1991). Os autores, ao tratarem da vida social como prática, afirmam que esta não é habitual, ligada a tempos e lugares específicos. As práticas sociais tratam de uma construção que dura toda uma vida e se constitui em um ponto de conexão entre as estruturas abstratas e os eventos concretos. Essas práticas são dotadas de reflexividade, o que significa que seu uso resulta no uso da linguagem, e que essas construções discursivas, a respeito das práticas sociais, são partes de alguma prática.

Esse conceito, como propõem os autores, pode sustentar relações de dominação, pois faz parte de construções ideológicas, que nada mais são que práticas edificadas por meio de perspectivas particulares de mundo, e que eliminam todas as visões contrárias às suas, de acordo com seus interesses e a ignorância alheia. Dessa forma, é possível concluir que as práticas discursivas ideológicas se caracterizam por estruturas de assimetria de poder, em que uns dominam determinadas práticas e subjugam outros que não as detêm.

Ao considerar ADC como uma teoria interdisciplinar, que se preocupa com as questões ideológicas presentes nos textos sobre as diversas relações sociais, podemos associá-la a conteúdos voltados ao gênero social, local de profunda assimetria de poder.

Sob esse viés, Lazar (2007) articula um estudo acerca das práticas discursivas feministas que, segundo a autora, é motivado pelo desejo de emancipação e transformação social. Lazar (2007) afirma que uma ADC feminista é bastante pertinente nos dias atuais, quando questões associadas a gênero, poder e ideologia se tornaram muito mais complexas e sutis. Sendo assim, seu objetivo é refletir e trazer à luz as formas com que questões camufladas, associadas ao gênero e ao poder hegemônico, são produzidas, legitimadas e negociadas em diferentes contextos e comunidades.

A ADC feminista se interessa pela forma como ideologias sobre gênero e relações de poder, nesse contexto, são produzidas e negociadas ou, ainda, contestadas nas representações realizadas em meio às diversas práticas sociais. A reflexividade, fenômeno da modernidade, proposta por Giddens (1991), também faz parte dessa teoria, uma vez que entender as práticas que subjugam as mulheres pode servir à construção de novas práticas que as libertem. Essa visão feminista da ADC serve de forma profícua às análises propostas neste trabalho, uma vez que congrega a criticidade da ADC às questões de gênero social abarcadas por esta pesquisa.