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Agôn e alea no jogo; semelhança e hierofania no sagrado

No documento O SAGRADO NO ROMANCE (páginas 106-109)

As semelhanças são produzidas pela natureza ao longo do tempo. Algumas, as não sensíveis sequer são, por vezes, descobertas. O homem, que se ampara na faculdade mimética, as realiza indefinidamente sem qualquer perspectiva de consciência plena ou controle absoluto. René Girard poderia ser o autor intelectual destas frases iniciais, mas é no conceito da doutrina das semelhanças de Walter Benjamin que ora nos inspiramos.

No romance “O jogador”, a riqueza literária dostoievskiana, em uma sequência de passagens de um mesmo episódio, apresentam-se exemplificados tanto características comuns ao jogo como conceitos filosóficos que auxiliam a teoria literária. No capítulo 5, pela primeira vez, Polina revela sua contrariedade com o Marquês Des Grieux, chamando-o de canalha e informando Aleksiei sobre a hipoteca dos bens do General, sem, no entanto, apresentar valores. Em virtude disso, Polina decide jogar para ganhar dinheiro

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Conforme a obra “Curso de Linguística Geral” de Ferdinand de Saussure – Editora Cultrix (1995).

a fim de livrar-se de, pelo menos, de parte da conta uma vez que é enteada do General. Ao ponderar a sua vontade, discute com Aleksiei:

– Tudo isso é absurdo – disse ela com repugnância, interrompendo-me. – Eu, ao contrário, fico admirada por você estar assim alegre. Ficou contente com o quê? Será porque perdeu o meu dinheiro no jogo?

– Para que me deixou perdê-lo? Eu lhe disse que não podia jogar por conta alheia, sobretudo para você. Vou obedecer, sejam quais forem as suas ordens; mas o resultado não depende de mim. Avisei bem que não daria certo. Diga-me: está muito aborrecida pelo fato de ter perdido tanto dinheiro? Para que precisa de uma quantia tão grande?

– Para que essas perguntas?

– Mas você mesma prometeu-me explicar... Escute: estou plenamente convencido de que, depois de começar a jogar por minha conta (e eu tenho doze friedrichsdors), hei de ganhar. Então, leve quanto quiser.

Ela teve uma expressão desdenhosa.

(DOSTOIÉVSKI, 2004, p. 44)

Nesta passagem, fica evidente o agôn, o espírito de competição que se estabelece entre os dois potenciais jogadores. Ela diz ironicamente da eventual alegria dele por tê-la feito perder; ele devolve, responsabilizando-a por deixá-lo jogar. Se esse impulso é um traço evidente, não menos significativa é a impulsão psicológica alea na sequência do diálogo:

– Como assim? – perguntou. – A sua esperança não era do mesmo gênero? Há duas semanas, você me falou longamente da sua certeza absoluta de ganhar aqui na roleta e procurou convencer-me a que não o considerasse um doido; estava, então, brincando? Mas, lembro-me, falava com tanta seriedade que de modo nenhum se poderia tomar aquilo por uma brincadeira.

– É verdade – respondi pensativo. – Até agora, estou plenamente certo de ganhar. Confesso-lhe, até, que você acaba de me sugerir a pergunta: por que a minha perda de hoje, tão horrível e sem sentido, não deixou em mim qualquer dúvida? Apesar de tudo, estou absolutamente convicto de que hei de ganhar, apenas comece a jogar por minha conta.

– Mas, por que tem essa certeza?

– Palavra que não sei como lhe responder. Sei apenas que preciso ganhar, que é, igualmente, a única saída para mim. Eis, talvez, por que eu tenho esta impressão de que devo infalivelmente ganhar.

Alea é identificada, especialmente, quando Aleksiei encerra, dizendo que

é preciso infalivelmente ganhar. “Em clara oposição ao agôn, numa decisão que não depende do jogador, (...) se trata mais de vencer o destino do que um adversário” (CAILLOIS, 1990, p. 36-37), o que se explica exclusivamente pela sorte em que “o destino é o único artífice da vitória.” (CAILLOIS, 1990, p. 37).

De algum modo, este longo diálogo é preparatório para um desfecho importante do ponto de vista da construção psicológica do personagem central da narrativa. Lembramos, contudo, que a nossa dissertação, em momento algum, trilhou a análise dos diversos aspectos técnicos e estratégicos empregados pelo gênio russo na elaboração do romance. Toda a nossa preocupação está voltada para a identificação do sagrado no texto literário “O jogador” de Fiódor. Assim, passamos a transcrever uma última passagem deste episódio entre Aleksiei e Polina:

– Concordo, até, que não possuo boas maneiras, nem também qualquer espécie de qualidades. Declaro-lhe isso agora. Nem me preocupo, sequer, com quaisquer qualidades. Agora, tudo se paralisou em mim. Você mesma sabe a razão disso. Não tenho na cabeça qualquer pensamento humano. Há muito tempo não sei o que está acontecendo no mundo, tanto na Rússia como aqui. Eu passei, por exemplo, por Dresden, e não me lembro mais como ela é. Você mesma sabe o que me absorveu. Visto que eu não tenho nenhuma esperança e, a seus olhos, sou um zero, digo-lhe francamente: vejo você em toda parte, e o resto me é indiferente. Não sei por que e de que modo eu a amo. Sabe você que talvez nem tenha qualidades? Imagine que nem sei se é bonita de rosto. O seu coração, certamente, é mau, e a inteligência, destituída de nobreza; isto é muito possível.

– Talvez pretenda comprar-me com dinheiro – disse ela – justamente por não acreditar na minha nobreza?

– Quanto foi que pensei em comprá-la com dinheiro? – gritei.

– Você ficou confuso e perdeu o fio do discurso. Se não pensa em comprar-me, pretende adquirir com dinheiro a minha consideração.

(DOSTOIÉVSKI, 2004, p. 49)

O desfecho deste episódio em que identificamos agôn e alea, impulsões psicológicas inerentes ao jogo, nos faz avançar mais, agora em direção ao conceito de Walter Benjamin sobre a semelhança. A percepção da semelhança dá-se em um relampejar. Depois da demorada intervenção de Aleksiei, quando ele termina qualificando Polina como “nem sei se é bonita de rosto” (DOSTOIÉVSKI, 2004, p. 50) e de coração mau, minimizando, ainda, as suas inteligência e nobreza, Praskóvia deduz que a aproximação dele dá-se,

especialmente, por dinheiro. E, no instante em que ela percebe a semelhança da atitude de Aleksiei com a atitude do Marquês Des Grieux, que deliberadamente só a quer pela eventual herança da avó, Polina chama-o de confuso, identificando que Aleksiei foi flagrado em seu sentimento mais íntimo. Duas considerações complementares para corroborar o raciocínio: antes um pouco, em passagem não transcrita, Aleksiei havia discorrido longamente sobre as diferenças entre os russos e os franceses, apontando o quanto estes eram cínicos e interesseiros; no momento decisivo da conquista de Aleksiei – que ocorrerá mais adiante na narrativa –, ele interromperá a aproximação para jogar e ganhar, praticamente esquecendo o seu grande amor por Polina. Ora, se a própria narrativa valida a perspicácia de Polina em momento diverso, quando a realidade ainda não se impunha e nem havia se apresentado para analisar objetiva e subjetivamente a atuação do seu pretendente, significa que o gênio russo, por meio de seu narrador, criou uma circunstância em que é possível afirmar que os seus personagens, alheios ao vínculo histórico da descoberta de tal teoria, são capazes de servir de exemplos preciosos para a compreensão do conceito de semelhança não sensível. E se é verdade que aí está um belo exemplo – o russo repete por semelhança o francês – podemos inferir que, “enquanto investigadores de antigas tradições, devemos contar com o fato de que certas configurações sensíveis tenham sido dotadas de características miméticas de que hoje não podemos nem mesmo suspeitar” (BENJAMIN, 2012, p. 118). Não é coerente, então, supor que o pensamento europeu, russos e franceses, é o mesmo e exercido por semelhança nas relações amorosas, por exemplo, no século em que se insere Um Jogador? Mais: não podemos assim entender que as semelhanças sensíveis e não sensíveis, supondo “que exista, no todo, uma direção unitária no desenvolvimento histórico dessa (da) faculdade mimética” (BENJAMIN, 2012, p. 118), são inequívocas hierofanias, manifestações perceptíveis do sagrado?

No documento O SAGRADO NO ROMANCE (páginas 106-109)